segunda-feira, 20 de outubro de 2008

0611) É Carnaval! (4.3.2005)




(BT e Tide)

Lá vem de novo essa história de carnaval fora de época, micarande, micaroa, carnatal, recifolia. Não vejo graça nessas festas, e me desculpem os amigos que não sabem passar sem elas. Para certas coisas na vida, sou um conservador incorrigível. Não por simples saudade do passado, mas porque o que era festa amadorística virou indústria, e em alguns casos virou gangsterismo econômico, que ao que parece é o destino final de toda indústria na casa-de-mãe-joana que é este país. Criou-se um conceito de Carnaval onde você se diverte, mas paga caro por isto.

Carnaval pra mim é bagunça, é surrealismo do cotidiano, é happening dadaísta. 

Respeito mas dispenso aquele show-da-churrascaria-Plataforma que virou o desfile das Escolas de Samba. Não gosto de festinha fechada a céu aberto, com cachê, crachá e cordão de isolamento. Carnaval de trio é o velho carnaval dos Clubes aristocráticos invadindo a coitada da rua, já que os clubes vivem às moscas. O pessoal endinheirado fecha a rua e sai brincando, e se pobre chegar perto tem os seguranças para afugentar. 

Isso não é carnaval fora de época, é uma festa fora de si.

Quando meus pais já estavam velhos, com os filhos todos criados e morando fora, o carnaval deles se resumia a uma tocaia solerte. Meu pai ficava lendo no terraço, minha mãe na cozinha administrando as coisas. De vez em quando parava um carro e um amigo deles subia a escada até o terraço, para um dedo de prosa. Minha mãe vinha, havia aquela troca de cumprimentos, ficavam por ali, jogando conversa fora. 

Meu pai perguntava: “E tu, Fulano, tás brincando?” Quando o incauto respondia que sim, sua sorte estava selada. Meu pai fazia um sinal imperceptível, minha mãe pedia licença e ia lá dentro. O papo prosseguia, sobre assuntos variados, até que Mãe vinha lá da cozinha, às vezes ajudada pela empregada, trazendo um enorme caldeirão-de-fazer-buchada cheio dágua, que era despejado sobre a cabeça do visitante. 

O sujeito quase enfartava do susto, ficava tirando água dos olhos, apalpando o cigarro, a carteira e as roupas empapadas, enquanto Dona Cleuza e Seu Nilo se abraçavam com ele, pulando, às gargalhadas: “É Carnaval! É Carnaval!”

Carnaval é bagunça. Um dos melhores carnavais que já brinquei foi o de Olinda entre 1978-1983, quando a cidade ainda não tinha virado um imenso mictório com orquestra. Era o tempo em que a gente fazia um bloco com dez violões e duzentas latas vazias, e brincava três dias sem parar. 

O cara podia se fantasiar de índio peruano e passar o carnaval inteiro batendo num tambor inaudível pendurado ao pescoço. 

Ou então se vestir de mulher, sair pra tomar cachaça, e dois dias depois perceber que ainda estava com a mesma roupa. 

Ou então pegar um coco-verde, começar a jogar bola com outros bêbos, e vir driblando a multidão da Rua do Amparo até a Praça do Jacaré, ida e volta, a noite toda, sem que ninguém me tomasse a bola. Não me perguntem como, nem por quê. É Carnaval.




0610) O Rock, a Direita e a Esquerda (3.3.2005)




Para muita gente estes termos designam dois partidos políticos, mas na verdade eles expressam algo que vai muito além da política. São visões do mundo que impregnam tudo, da Estética à Religião. 

Tentando resumi-las da maneira mais sintética possível, eu diria que a Direita acredita que as Elites devem governar as Massas, e a Esquerda crê que as Massas devem governar as Elites. 

Claro que, numa arena inflamada como a da política, termos como “elite” e “massa” acabam ganhando conotações pejorativas ou auto-glorificatórias.

Uma das classificações mais divertidas do pensamento da Direita e da Esquerda é a de Quaderna, o protagonista do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, comentando as brigas ideológicas de seus mestres Clemente e Samuel:

“De modo semelhante, tomavam, furiosamente, partido em tudo. A Sociologia era da Esquerda, e a Literatura fortemente suspeita de direitismo. O “riso satírico e a realidade” eram da Esquerda, a “seriedade monolítica e o sonho”, da Direita. A Prosa era da Esquerda e a Poesia, da Direita; mas, mesmo ainda dentro do campo da Poesia, tomavam partido, pois a lírica era considerada “pessoal e subjetiva, e portanto direitista e reacionária”, enquanto que a satírica, “social e moralizante, didática” era considerada progressista e da Esquerda.

A Natureza, com “a luta pela vida, dura e cruel, com a selvageria, a desordem, a sobrevivência do mais forte e as marcas que ainda guardava do Caos e do negrume”, era da Direita. A cidade, “organizada, baseada no progresso, no trabalho e na máquina”, era da Esquerda.

Do ponto de vista social, o sexo masculino, mais forte, dominador e explorador do outro, era da Direita, e o sexo feminino, explorado, fraco, ressentido e revoltado, da Esquerda. Mas, do ponto de vista do gosto, o sexo masculino, sóbrio e despojado, era da Esquerda, enquanto o feminino, com o amor pelos tecidos e pelas jóias, era da Direita. E assim por diante, em tudo e por tudo”. (Folheto 34)

É uma sátira, claro, mas distinções deste tipo podem ser multiplicadas a tal ponto que parecem pertencer a um movimento instintivo da mente humana. Servem para qualquer coisa. 

Se os padrinhos de Quaderna fossem versados em rock-and-roll, por exemplo, o elitista Samuel diria que o rock é de Esquerda, porque expressa o primitivismo musical das massas urbanas, o nivelamento-por-baixo da arte de combinar letra e música, e a rebeldia-sem-causa de adolescentes incomodados com a autoridade paterna. 

E o marxista Clemente diria que o rock é de Direita, porque expressa os interesses das mega-corporações da indústria fonográfica, a lavagem cerebral de-cima-para-baixo promovida pelos meios de comunicação, e a promessa de enriquecimento fácil desviando a juventude da verdadeira luta política. 

Os Beatles (comportadinhos, condecorados pela Rainha) são de Direita, e os Rolling Stones (sujos, mal-educados, agressivos) são de Esquerda. 

E assim por diante, em tudo e por tudo.





sábado, 18 de outubro de 2008

0609) Escrevendo sonhos (2.3.2005)




(Entr'acte, René Clair, 1924)

Em seus Notebooks, Nathaniel Hawthorne anotou para si próprio (e para quem interessar pudesse) a seguinte tarefa: 

“Escrever um sonho, que deverá se assemelhar ao perfil de um sonho verdadeiro, com todas as suas inconsistências, suas excentricidades, sua falta de propósito – e que no entanto tenha uma idéia central a percorrê-lo de ponta a ponta. Desde o início do mundo até este ponto tão avançado de sua história, um texto assim jamais foi escrito”.

Muita gente há de discordar desta afirmativa final. Para os críticos, a linguagem desconexa, híbrida, aparentemente insensata do último livro de James Joyce (Finnegans Wake) não é nada mais que a sintaxe do sonho transposta para a narrativa verbal. 

Muitos outros experimentos da literatura de vanguarda podem reclamar a mesma condição. O ano passado em Marienbad, de Robbe-Grillet, filmado por Alain Resnais, é uma narrativa que tem do sonho as recorrências inexplicáveis, a amnésia generalizada, a ambientação asfixiante, a impressão de desenraizamento.

O cinema, principalmente o cinema surrealista, chegou perto do que propunha Hawthorne. 

O exemplo clássico é Um cão andaluz de Buñuel, mas filmes como Entreato de René Clair ou, nos tempos recentes, algumas experiências de David Lynch têm algo do clima ominoso dos sonhos, em que as imagens e as situações nos produzem emoções que desconhecemos em nós mesmos, emoções que não têm uma justificativa, que não são o medo, a repulsa, a irritação ou a curiosidade que experimentamos numa situação regida pela lógica e pelo bom-senso. 

Na literatura, o discurso é forçosamente encadeado por cláusulas, pelos “porquês” e os “comos” da sintaxe, o que dá uma aparência de lógica às situações mais desconexas. No cinema, o que temos é sensorialidade pura (imagem + som), presentificação de ambientes e de situações sem tentativa ou possibilidade de explicá-los.

No século 19, quando o Realismo literário foi considerado por muita gente uma espécie de triunfo final, de “Fim da História” na literatura, grande parte da literatura fantástica optou pelo sonho como o álibi principal para os eventos impossíveis que narrava. Depois de passar por uma série de peripécias, o protagonista, nas últimas linhas, acordava de volta em sua poltrona ou sua cama. 

Machado de Assis é um que recorreu repetidamente a este artifício – o exemplo mais famoso e mais brilhante é o episódio do hipopótamo, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Sonhos, delírios, alucinações, foram um pretexto para justificar os passeios dos personagens pelos guetos interditos do Fantástico. 

O trecho de Machado, aliás, é uma resposta curta mas cabal à provocação de Hawthorne. E se destaca na obra do autor carioca, que sempre foi uma obra clássica, racionalista, governada por uma lógica implacável. Brás Cubas, seus emplastros e seu hipopótamo são um bendito alívio, uma sombreada trégua de maluquice no sol causticante de tamanha lucidez.






0608) Tradição e brodagem (1.3.2005)



Alguns pontos em comum entre o que chamamos de Tradição Oral (no universo do “folclore”, “cultura popular”, etc.) e o que chamamos de Cultura Virtual (a cultura do mundo digital, da Internet, etc.).

Primeira coisa: o Anonimato Coletivista. Ambas as culturas existem dentro de um “corpus” coletivo, um universo criado em conjunto por milhares ou milhões de pessoas que não se conhecem, e que não precisam se conhecer. O individualismo da produção cultural urbana, industrial, moderna, não vigora nem no universo das culturas tradicionais nem no recente universo da cultura virtual. Isto tem aspectos negativos, como a freqüência com que obras criadas por um indivíduo são apropriadas e assinadas por outro, ou então falsamente atribuídas a um terceiro. Antigamente, não era rentável pegar um livro publicado por alguém e republicá-lo com o nome do usurpador. Hoje, com meia dúzia de cliques isto é possível, a custo zero. O livro não é fisicamente impresso, mas pode circular na Rede com a falsa atribuição de autoria.

Por outro lado, a simples existência de uma cultura coletiva anônima tem um enorme valor sociológico, mesmo que não tenha valor estético. É possível saber com mais riqueza e mais nitidez o que uma comunidade de pessoas pensa. E a perda de importância da autoria individual tem, como contrapartida positiva no aspecto psicológico, a criação de novos conceitos de generosidade, desprendimento, compartilhamento fraterno.

Segunda coisa: a Tradição antiga se valia acima de tudo da autoridade paterna, da credibilidade dos antepassados. Os participantes dessa cultura se sentiam imbuídos da missão de preservar algo que lhes tinha sido transmitido pelos pais, avós, bisavós. Havia uma linha vertical de herança que precisava ser mantida. Na Cultura Virtual de hoje, existe um rompimento com essa tradição vertical, que é substituída por uma fraternidade horizontal. O usuário sente-se devedor de seus contemporâneos, e não de seus ancestrais. Ele não é mais formado pelo exemplo paterno, mas pelo exemplo fraterno dos “brothers”, da “rapaziada”, da “galera”.

Terceira coisa: tanto a Tradição quanto a Cultura Virtual se preocupam mais com o conceito de Processo do que com o de Obra. Um embolador-de-coco e um sampleador de MP3 estão mais preocupados em fruir o prazer criador de manipular do que em cristalizar uma obra pronta e acabada onde “não precisa mais mexer”. É de “mexer na obra” que eles gostam; é do processo de ficar criando e recriando. O gosto de fazer conta mais do que o orgulho pela obra feita.

Quarta coisa: o que caracteriza tanto a Tradição quanto a Cultura virtual é a posse dos meios de produção. Podem ser rudimentares ou de fundo-de-quintal; mas são seus. Um cordelista que imprime seus folhetos no quarto dos fundos compartilha o mesmo espírito do roqueiro que grava seu disco num Cakewalk, queima 150 CDs e sai vendendo na porta dos shows de rock. Nova roupagem para uma liberdade antiga.

0607) Uma lenda oriental (27.2.2005)



Diz uma antiga lenda oriental que na época da dinastia T’sin, havia um rei despótico que gastava de modo perdulário, prendia e torturava os críticos do seu regime, e roubava o Tesouro público. O rei subira ao trono cercado de expectativas, pois fora um príncipe inteligente, amado pelo povo. Depois que passou a governar de modo desastroso, um grupo de nobres reuniu-se, conspirou, e juntou exércitos para enfrentar o tirano. Houve uma guerra sangrenta. O tirano foi morto, e os nobres elegeram, para substituí-lo, o nobre Li H’sien. Este era um homem íntegro, mas, assim que subiu ao trono, começou a se comportar de modo muito parecido com o antecessor. Perseguiu os antigos aliados, construiu palácios para seus parentes, cercou-se de bajuladores, e botava na cadeia quem falava mal dele.

Os nobres agüentaram isso durante alguns anos, aí juntaram-se novamente, desencadearam outra revolução, executaram Li H’sien e colocaram no trono o general Hsui-Pen, um homem valoroso, simples, de julgamentos serenos e caráter firme. Poucos anos depois, o general tinha transformado a corte num verdadeiro bordel com orgias intermináveis, além de promover a execução de dissidentes, e a invasão militar das províncias vizinhas. Os nobres, já desesperados, sem saber o que fazer, foram queixar-se ao Budista Tibetano. O Budista Tibetano deu uma baforada do seu narguilê, pensou, pensou, aí disse: “Olha, eu, se fosse vocês, tocava fogo era naquele trono. Todo mundo que se senta lá fica assim.”

Gostou da lenda oriental, caro leitor? Se gostou, obrigado, porque acabei de inventá-la. Não, não me elogie. A imaginação e a criatividade pouco contribuíram para a sua execução. O que mais me valeu foi a memória, o hábito de ler jornais, e algumas décadas de vida debruçado na janela por onde o mundo vive passando e só Carolina não vê. Para os que se debruçam nessa janela, o mundo traz surpresas cíclicas. Se são cíclicas, talvez não devessem ser surpresas, porque a repetição nos deixa prevenidos. Mas é que o mundo não se repete em círculos, como supunha Nietzsche, mas em espirais: cada vez que uma coisa acontece, acontece num ponto diferente da vez anterior.

O filme Viva Zapata, de Elia Kazan, mostra Marlon Brando no papel de um camponês mexicano que se revolta. Um dia eles vão protestar algo junto ao tirano local e este, enraivecendo-se , pergunta: “Você! Como é seu nome?!” Ele responde, intimidado: “Zapata. Emiliano Zapata.” Os anos se passam, Zapata entra na luta armada revolucionária, vira líder e herói, mas descobre que é mais fácil deflagrar Revoluções do que mantê-las. Depois que vira presidente do México, um dia uns camponeses vão ao palácio reclamar de alguma coisa. Ele se irrita com um dos queixosos, e diz: “Você! Como é o seu nome?!” Aí na mesma hora o episódio antigo lhe vem à memória, e ele se cala, confuso, percebendo a inversão dos papéis. Pois é. O problema é o trono, presidente.


0606) É negócio pra homem (26.2.2005)


(desenho de Saul Steinberg)

Uma das balelas que mais me irritam na jângal de clichês do nosso cotidiano é a história de que tarefas intelectuais, racionais e lógicas são mais adequadas à mente masculina, e que as mulheres são mais propensas às tarefas que envolvem a sensibilidade, a emoção e o afeto. Nunca escutei sandice maior na minha vida, e se eu fosse mulher me dedicaria a combater isso com uma veemência que faria a Al-Qaeda parecer um Clube Dominical de Dominó. Fico imaginando como é que uma mulher (estou falando uma mulher de verdade, e não uma zumbi maquiada) escuta uma coisa dessas e não pega-em-armas.

De vez em quando ouço uma mulher dizendo; “Eu não consigo usar computador. É coisa pra homem. Essas coisas são frias, lógicas, matemáticas, mas eu lido é com a emoção.” A primeira coisa que me vem à mente é que essa cidadã é incapaz de pagar uma conta ou passar um troco, porque não tem atividades mais lógicas e matemáticas do que estas. Uma mulher que diz uma coisa assim é incapaz, a meu ver, de dirigir um automóvel. E no entanto, os motoristas mais rápidos que conheço são todos homens (porque dirigem emocionalmente), e as motoristas mais confiáveis que conheço são mulheres (que dirigem com o juízo). E o que dizer de cuidar do orçamento de uma casa, comprar material escolar, organizar uma festa, preparar um almoço? São atividades onde a emoção e a afetividade só interferem marginalmente. São atividades lógicas e matemáticas (medir quantidades, determinar espaços, formar grupos homogêneos, planejar alternativas...), ou será que eu fiquei doido?

Existe coisa mais intelectual do que receita culinária? Uma mulher que não gosta de coisas lógicas é incapaz de distinguir o que são “250 gramas” ou “2 colheres e meia” de algo, ou de interpretar corretamente instruções sutis como: “Sal e pimenta a gosto” ou “Levar ao forno até dourar”. E não venham me dizer que quem faz isso é a “sensibilidade”, a “intuição feminina”. Sensibilidade e intuição são processos intelectuais, e sua única relação com o mundo emotivo é que só recorremos a eles quando estamos movidos pela emoção, geralmente a ansiedade por não ter obtido sucesso seguindo os processos convencionais. A intuição é um livro sem título na lombada, mas as instruções que contém são de ordem intelectual.

Existe coisa mais fria e lógica do que fazer tricô ou crochê? Folheei alguns álbuns de instruções dessas nobres artes, e dei graças à Providência que me fez nascer varão, levando meu pai a me ensinar o xadrez. Se eu tivesse nascido mulher, minha mãe ia querer me ensinar tricô, e minha vida intelectual seria abortada no nascedouro. Tiro o chapéu para as mulheres que tricotam calmamente, agulhas em punho, enquanto falam da vida alheia. Aquilo ali é mais difícil do que consertar placa-mãe. Minhas caras amigas, a mente humana é formatada nos cinco primeiros anos. Cuidando a tempo, tudo é possível. Até mesmo um homem aprender tricô.

0605) A idéia na poesia (25.2.2005)





(Carlos Drummond de Andrade)

Foi Ezra Pound quem difundiu a idéia de que a Poesia consiste basicamente em três elementos misturados: Música, Imagem e Idéia. 

Quando se fala em Idéia, muita gente pensa logo que se trata da “mensagem” do poema, ou seja, “aquilo que o poeta quis dizer”. 

Quero lembrar que a poesia não é uma charada, algo que tem uma resposta oculta que cabe ao leitor descobrir com a ajuda de pistas espalhadas ao longo do texto. 

O Poeta chega e diz: “O animal na torre da igreja encontra-se doente. Duas e duas!” Silêncio respeitoso e perplexo entre a multidão. Aí o crítico de poesia da Academia Francesa pede a palavra e responde: “O animal, tatu. Na torre da igreja, sino. Encontra-se doente, tá tussino.” Palmas, vivas, chapéus voam pelo ar. Não, amiguinhos, poesia não é assim.

Um poema não é uma charada ou uma adivinhação, cujo objetivo é achar a resposta. 

Uma poema não é uma fábula de Esopo ou de La Fontaine, que existe para ilustrar um princípio moral do tipo “Quem tudo quer, tudo perde”. 

Um poema não é uma piada, cujo objetivo é provocar uma gargalhada com a última linha. 

Ou melhor, um poema até pode ser isso tudo, mas provavelmente não será um bom poema, e em todo caso não é com essa finalidade que a poesia existe, ou que a própria noção de Idéia existe na poesia.

Em muitos casos a Idéia de um poema é uma história que ele conta, e essa história pode ser ilustrativa de uma visão do mundo político, filosófica, ou uma mera opinião do autor. Isso não empobrece um poema. 

“O Operário em Construção” de Vinícius de Morais, é um bom exemplo de poema inteiramente voltado para transmitir ao leitor uma mensagem política clara e inequívoca, e que mesmo assim é um grande poema, por ter outras qualidades além dessa idéia (é um poema rico em Música e em Imagem, por exemplo). 

http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-operario-em-construcao 

A obra de Brecht e de Maiakóvski é o melhor exemplo de que pode-se fazer poesia política de alta qualidade. Os dois, no entanto, são a exceção, não a regra.

Um poema ganha em sutileza e permanência quando conta uma história mas essa história não se fecha, não se resume numa frasezinha aconselhatória. 

O que é “O Caso do Vestido”, de Drummond? 

http://www.releituras.com/drummond_vestido.asp

Um poema contra o adultério? A favor do adultério? A favor do castigo? A favor do perdão? Quem saberá jamais? O poema se inicia com as filhas perguntando à mãe “o que é aquele vestido pendurado ali”. A Mãe lhes conta a história de como o marido a abandonou por outra mulher, e depois acabou voltando. O vestido é isto? O poema é isto? 

Cada vez que relemos poemas como este ou como “Desaparecimento de Luísa Porto”, “O Padre e a Moça”, “Morte do Leiteiro”, vemos uma história ser contada, e cada resposta se abre em mil novas perguntas. 

Um poema é um gerador de idéias. Ou é um instrumento potencializador das idéias mais presentes em nossa memória no momento da leitura – de tal modo que, quando o relemos, pensamos coisas diferentes das que pensamos nas vezes anteriores.





quarta-feira, 15 de outubro de 2008

0604) As Kenningar (24.2.2005)




Jorge Luís Borges comenta em vários ensaios uma curiosa formação lingüística que ele aprendeu na poesia da Islândia, e que são as chamadas “kenningar” (ao que parece, é “kenning” no singular, “kenningar” no plural). 

O ensaio mais didático, e mais acessível ao leitor brasileiro, é “As kenningar”, no volume História da Eternidade (Ed. Globo). 

As kenningar são epítetos obrigatórios que os poetas da Islândia utilizam para descrever tudo, desde uma paisagem até um animal, desde uma arma até um veículo. São símbolos obrigatórios, por assim dizer, ou metáforas verbais consagradas a tal ponto pelo uso e pela tradição que espera-se de um poeta que volte a usá-las, que as conheça e respeite, que as repita, que crie variantes.

Borges nos fornece naquele ensaio uma longa lista de kenningar cuja compilação, confessa ele, lhe proporcionou “um prazer quase filatélico”. Alguns exemplos: “tempestade de espadas” significa batalha, “repouso das lanças” quer dizer paz, “lua dos piratas” é o escudo, “país dos anéis de ouro” é a mão, “o suor da guerra” é o sangue, “o irmão do fogo” é o vento. 

Os poetas islandeses repetiam as expressões antigas e criavam novas – a enumeração de Borges registra dez imagens desse tipo para dizer “espada”.

O que são as kenningar? Para mim, são clichês, são lugares-comuns. Não digo isso em tom pejorativo, mas para tentar equacionar essa duas qualidades aparentemente contraditórias, a fagulha poética e a cansativa repetição. O excesso de uso embota a lâmina da linguagem, e eis aqui uma boa kenning em língua portuguesa, não é mesmo? 

Cada metáfora desse tipo nos provoca um choquezinho-elétrico agradável nos nervos sensíveis à poesia, quando a encontramos pela primeira vez, mas com cada repetição o efeito decai em proporção geométrica. O clichê fica oco, vazio, mera repetição mecânica, e irrita o leitor mais calejado, que está tropeçando nele pela centésima vez.

Existem kenningar de segundo grau, que são combinações mais complexas de fórmulas já existentes; daí dizer-se que os reis generosos ou perdulários são “os que desprezam a neve do posto do falcão”, porque o “posto do falcão” é a mão, e a “neve da mão” é a prata: os reis generosos distribuem a prata como se ela não tivesse valor. 

Diz o órfão-platense-do-Prêmio-Nobel (tá vendo? A gente pega o jeito rapidinho): “Lua-dos-piratas é uma fórmula que não se deixa substituir por ´escudo´ sem perda total. Reduzir cada kenning a uma palavra não é isolar uma incógnita: é anular o poema.”

As kenningar não são estranhas ao processo espontâneo de fabricação de clichês em nossa língua brasileira, e não me refiro às elucubrações literárias, mas à língua das esquinas, dos botequins e dos radinhos de pilha. 

Todos nós sabemos que quando o esquadrão da Gávea adentra o tapete verde do templo do futebol, é para ensinar ao onze cruzmaltino, pó-de-arroz ou da estrela solitária como se pratica o esporte bretão dentro das quatro linhas.





0603) Júnior Baiano (23.2.2005)



Sou um fã incondicional de Júnior Baiano. Semana passada, no jogo River x Flamengo pela Copa do Brasil, ele produziu outra obra-prima: o lateral do River cruzou uma bola da ponta direita, ele subiu sozinho e testou para o fundo da rede do Flamengo. No intervalo, explicou aos microfones que a bola ganhou efeito e acabou batendo no seu rosto, o que, no entanto, não diminui o mérito. Existe algum tipo de mérito no sujeito que marca um gol contra com tamanha convicção. “Convicção” é a palavra-chave para entender Júnior, que, como grande parte dos baianos, é um sujeito plenamente convicto de que tudo que venha a fazer é bom e está certo.

O futebol não teria a mesma graça sem esses jogadores imprevisíveis, incontroláveis, que fazem um gol de placa e no instante seguinte dão uma “cheirada” daquelas da chuteira voar para fora do campo. Muitas lendas já se criaram com esses personagens folclóricos: Fio Maravilha, Cafuringa... No Flamengo, o mais recente foi o impagável lateral-direito Maurinho, o dos carrinhos que iam parar no fosso e chutes a gol que ameaçavam as cabines de rádio. No dia de sua melhor partida pelo Flamengo, aplaudido em massa pela torcida, acabou encarregado de bater um pênalte no último minuto de jogo, para coroar sua grande atuação. Adivinha o que aconteceu.

Júnior Baiano tem uns rompantes de violência que condeno. Não precisava. Mas é difícil você convencer um crioulo de 1,90m de altura a deixar a violência em casa. É como sugerir a Luma de Oliveira que saia à rua de burka. Júnior Baiano tem técnica, tem lucidez, é um grande zagueiro. Só não tem mais vez na Seleção porque Parreira já dispõe de dois que são tão destrambelhados e imprevisíveis quanto ele: Lúcio e Roque Júnior. O Baiano tem dois episódios que não esqueço. Um foi num remoto Flamengo x Botafogo, quando o Fla fez 2x0 no primeiro tempo e ele foi até o banco do Botafogo e jogou a camisa na cara do técnico, com quem tinha tido atritos em outras épocas. Foi o que bastou para mexer com os brios alvinegros: o Botafogo voltou com tudo no segundo tempo e empatou o jogo.

Outro episódio foi o pênalte que ele cometeu num jogo da Copa de 98, quando o Brasil perdeu por 2x1, pênalti tão bem feito que só quem viu foram o juiz e um câmara da TV sueca que estava atrás do gol. Foi talvez por causa deste pênalti que ele perdeu a vez na Seleção, e não pelas tesouras-voadoras que são sua especialidade nos momentos em que já tem cartão amarelo.

Não, o que celebro em Júnior Baiano não é a violência, é a imprevisibilidade. Cada investida sua é um lance de dados, que jamais abolirá o acaso, o mistério, o inesperado. E a melhor medida de sua vocação é o olhar ingênuo e perplexo quando os repórteres de campo vêm lhe perguntar sobre o gol de bicicleta ou o tapa no juiz. Para ele, é tudo a mesma coisa, é tudo futebol, é tudo parte do mesmo milagre que, como tantos Iniciados, ele pratica sem compreender.

0602) A música na poesia (22.2.2005)




(Robinson Jeffers)

Um comentário de Robinson Jeffers nos anos 1930 sobre os rumos da poesia em sua época pode nos ajudar a entender melhor o que acontece na poesia de hoje. Numa introdução a uma de suas coletâneas, ele afirmava que os poetas estavam buscando a originalidade 

“...indo cada vez mais longe numa direção que talvez lhes tivesse sido indicada pelo sonho já ultrapassado de Mallarmé, uma poesia divorciada da razão e das idéias, e aproximando-se cada vez mais da música. Parece-me que Mallarmé e seus seguidores, renunciando à inteligibilidade a fim de se concentrar na música da poesia, transformaram num beco estreito o que era uma larga avenida; as idéias sumiram, agora a métrica sumiu, as imagens irão sumir; em breve, até as emoções reconhecíveis acabarão sumindo também.”

A poesia consta basicamente de três entidades a que Ezra Pound chamava de “logopéia”, “fanopéia” e “melopéia”, se bem que eu prefiro chamá-las respectivamente de “idéia”, “imagem” e “música” (não ficou mais claro?). Lidar com estes três elementos é difícil, mas fica mais difícil ainda quando a gente não sabe que eles existem. 

O que Jeffers critica (com severidade excessiva, acho) em Mallarmé e seus seguidores é o fato de que nesses poetas o que importa é “a música, acima de todas as coisas”, a sonoridade multicor das vogais e das consoantes, o jogo intrincado das sílabas fortes e sílabas fracas sugerindo diferentes ritmos para um mesmo verso, as ressonâncias culturais e psicológicas do som de uma palavra evocando o som de outras como se fossem várias sombras projetadas por um mesmo objeto.

Existem poemas assim, e poetas assim. Jorge Luís Borges ironizava os poemas de Edgar Allan Poe, dizendo que ele tinha sido conhecido como “o poeta do retintim”, da sonoridade fácil (talvez por causa de “The Bells”), mas mesmo sem entender uma só palavra de um poema como “Ulalume” qualquer sujeito com veia poética capta naquelas sons todo o clima ominoso de presságio, toda a fatalidade guardada naquela paisagem sombria. Música e imagem fazem deste um grande poema; quanto à idéia, ainda hoje é tema para debates.

Escolhi a citação de Jeffers para o artigo de hoje porque vivemos uma situação inversa. Hoje em dia, a poesia parece muito voltada para a idéia: ou é desabafo afetivo, ou elucubração existencial, ou crítica social. 

Ela dá atenção às imagens apenas quando precisa de metáforas para transmitir seu conteúdo, e, quanto à música... nada, ou muito pouco. A maioria dos poetas parecem ser “auditivamente prejudicados”. O que predomina é, disparado, a Idéia. Escreve-se poesia para falar de um determinado assunto, de preferência em verso livre e sem rima (para dar menos trabalho). 

O poema que mais se vê por aí é o veículo de uma idéia, mas não constitui um objeto verbal com existência sensorial própria. 

Misturar música, imagem e idéia é como misturar café, açúcar e leite. Quando um dos três aumenta muito, a mistura desanda.