quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

5134) Dicionário Aldebarã XXVII (18.12.2024)

 


(ilustração: Moebius)


O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.
 
Laupinn – Estilo arquitetônico de colunas para edifícios públicos, com colunas redondas, triangulares, quadradas, pentagonais e assim por diante, de acordo com a função do edifício. 
 
Atskont – Sistema de plantar roçados que em geral envolve umas três pessoas em fila indiana: a primeira cava um buraco, a segunda despeja sementes ali, e a terceira cobre sementes com terra, enquanto cantam baixinho uma música qualquer cuja cadência os ajuda a trabalhar em sincronia. Usa-se geralmente com um adulto acompanhado de duas crianças, para acostumá-las à rotina do trabalho. 
 
Cartunth – A sucessão de soluções improvisadas (ou “gambiarras”) que alguém providencia enquanto não resolve um problema qualquer. Soluções que acabam produzindo outros problemas colaterais, e requerendo novos improvisos, os quais se acumulam numa cadeia de situações difíceis de explicar a quem chegou agora. 
 
Akank – Terrina larga que se costuma colocar em cima da mesa durante o dia, entre as refeições, recolhendo pedaços de comida que não merecem ir para o lixo: frutas pela metade, biscoitos partidos, sanduíches incompletos, fatias de queijo da semana passada, tudo que pode ser comido sem problemas mas que em geral se perde porque fica misturado a comidas mais novas e mais atraentes. 
 
Willykunks – Um conjunto de técnicas usadas pelos estudantes para “colar” ou “filar” nos exames, e que envolvem uma infinidade de recursos: papeluchos dobrados e escondidos na roupa ou no cabelo, fórmulas copiadas na pele por baixo das roupas, etc. 
 
Vollcrep – A sensação de recordar um fato relativo a uma pessoa e ser capaz de recuperar na memória várias emoções e opiniões diferentes sobre essa pessoa, antes mesmo de lembrar quem é. Provoca descrições como: “Me disseram para entrar em contato com alguém, que não lembro agora: só sei que é uma pessoa que conheço desde a infância, de quem já me afastei por discussões tolas, voltei a ter amizade mas não consigo confiar totalmente nela, ou nele.” 
 
Guiombs – Uma espécie de lesma coriácea capaz de se alimentar de praticamente qualquer coisa digerível. Os aldebaranes as usam para ajudar na limpeza de pratos, tigelas, copos e outros utensílios após uma refeição, bem como das mesas e pia da cozinha. Elas engolem e digerem tudo que seja orgânico (cascas de frutas, migalhas, de pão, etc.), facilitando o trabalho posterior de limpeza. Algumas famílias  se afeiçoam a elas e costumam deixá-las sobre a mesa durante a refeição, alimentando-as  com ossos, farofa, etc. 
 
Hagazz-hagizz – A consciência de ter um compromisso social importante para cumprir, e  hesitação entre o interesse de comparecer, pelos prováveis resultados positivos para a vida profissional e pessoal, e o desejo de ficar em casa entregue a alguma tarefa banal que exija muito pouca energia íntima. 
 
Anspruch – A curiosa sensação de esperar por alguma coisa longamente, até por muitos anos, e no momento de satisfazer esse desejo perceber que essa expectativa tinha se tornado uma parte essencial de sua vida, e não vale a pena trocá-la por uma satisfação que, a esta altura, não passa de um anticlímax. 
 
Azunkerd – O estado de tensão psicológica de uma pessoa introvertida que precisa estar presente a um evento cheio de gente (uma festa de família, uma confraternização de trabalho, etc.) e fica dividida entre sensações opostas: a angústia da rejeição, quando percebe que ninguém dá importância à sua presença, e a angústia do julgamento, quando alguém se aproxima e tenta estabelecer contato. 
 
Egugs – Pequenos pratos comestíveis, feitos de farinha-doce torrada e prensada, servidos à sobremesa, com doces, mel, etc., que molhando o prato o tornam mais fácil de mastigar. 
 
 




domingo, 15 de dezembro de 2024

5133) A estética do Rolando Lero (15.12.2024)




 
Umberto Eco, no ensaio “Elogio do Monte Cristo” (1984) (em Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Nova Fronteira, trad. Beatriz Borges) comenta a curiosa linguagem desenvolvida por autores de romances-folhetim do século 19, tomando Alexandre Dumas por exemplo típico. 
 
Dumas desenvolveu nesses romances uma maneira caudalosa de narrar, com um excesso de palavras, de descrições, de diálogos. Mas isso não se deve a uma riqueza verbal típica do Barroco renascentista de Rabelais ou do Barroco caribenho-moderno de Lezama Lima, nem do Barroco tecno-político de Thomas Pynchon, Neal Stephenson ou David Foster Wallace. 
 
A verbosidade de Dumas tinha outro formato. Ao invés de um excesso de informação, proporcionava a reiteração redundante de uma informação já transmitida ao leitor. 
 
Diz Umberto Eco, à pág. 141: 
 
Dumas escrevia assim por razões de dinheiro, recebia tanto por linha e precisava esticar. Sem contar que, enquanto escrevia a duas mãos o Monte Cristo, estava ao mesmo tempo redigindo La Dame de Montsoreau, Le Chevalier de Maison Rouge, Les Quarante-Cinq. (...)



(Auguste Maquet, em foto de "Nadar") 

 
É bom notar que a expressão acima “a duas mãos” seria, mais precisamente, “a quatro mãos”, porque Dumas escreveu muitas dessas obras, inclusive o Monte Cristo, em parceria com Auguste Maquet (1813-1888), a quem descrevia a ação e as peripécias das cenas futuras, deixando ao parceiro a tarefa de as transferir por extenso para a página. (A discussão sobre que trechos eram de um ou do outro é gigantesca.) 
 
Eis que assim se explicam aqueles que, em outra ocasião, chamei de “diálogos de empreitada”, onde os interlocutores, fazendo um parágrafo a cada fala, dizem-se durante uma ou duas páginas falas de puro relacionamento, como dois desocupados num elevador. (...)
 
Dumas faz isso em todos os seus livros. Eco transcreve um longo exemplo tirado de Os Três Mosqueteiros:
 
-- Não – disse d’Artagnan - , não, confesso-o, não foi o acaso que me pôs no vosso caminho; vi uma mulher bater à porta de um amigo meu...
--- De um amigo seu? – interrompeu Mme. Bonacieux.
-- Certamente, Aramis é um dos meus melhores amigos. 
-- Aramis? Que é isso? 
-- Ora! Quereis dizer-me que não conheceis Aramis? 
-- É a primeira vez que ouço pronunciar esse nome. 
-- Mas então é a primeira vez que vindes a esta casa? 
-- Certamente.
-- E não sabíeis que era habitada por um jovem? 
-- Não.
-- Por um mosqueteiro?
-- Realmente não.
-- Então não era ele que vínheis visitar? 
-- Nem por sonho. Como viu, a pessoa com quem falei é uma mulher. 
-- É verdade, mas essa mulher é uma amiga de Aramis. 
-- Nada sei sobre ela.
-- Mora com ele.
-- Isso não me diz respeito.
-- Mas quem é?
-- Oh! Este não é um segredo meu. (...) 



E nesse ritmo seguem-se páginas e mais páginas, pagas ao autor por linha, o que tem como consequência estética a criação de tais diálogos entrecortados, um ping-pong verbal que só de vez em quando reproduz a velocidade de uma conversa normal, e está ali apenas para encompridar conversa. 
 
As publicações populares pagavam por linha, mas já no século 20 esse critério evoluiu para número de palavras, ou por número de caracteres – medidas mais exatas. A cada sistema, correspondem técnicas específicas, como na piada do diálogo entre tradutores: 
 
Tradutor 1 – Como você traduz “again”?...
Tradutor 2 – Depende. Se me pagam por número de palavras, “outra vez”. Se pagam por número de caracteres, “novamente.



(Marlise Neyer)

 
Contratos altamente vantajosos eram firmados com os autores de maior sucesso. Marlise Meyer, no clássico Folhetim – Uma História (Companhia das Letras, 1996), observa:
 
Com o sucesso, Dumas assina com Le Siècle um contrato de colaboração exclusiva: 100 mil linhas por ano, a um franco e meio a linha. Para multiplicar o rendimento, Dumas encontra o diálogo monossilábico e introduz uma série de figurantes pouco loquazes. Donde, a partir de certo momento, precaução dos diretores de jornal: a linha tem de ser completa, e Dumas acaba matando vários personagens tornados inúteis. (pág. 61)
 
Umberto Eco confessa que por essas e outras teve que largar no meio uma encomenda da editora Einaudi para traduzir o Monte Cristo ao italiano, e pela primeira vez considerou a sério esses gigantescos diálogos enche-linguiça. O que fazer? Ser fiel ao original? Ser fiel ao leitor? 
 
Que deveria fazer o tradutor para responder a um desafio de tal espécie? Se traduz ao pé da letra, sua dignidade se rebela, a mão hesita em repetir sem motivo a mesma palavra, a mesma expressão pré-fabricada, poucas linhas depois; o tédio exigiria que pulasse, enxugasse, encurtasse. (p. 144) 
 
Surge a questão ética da fidelidade ao autor, mas neste ponto o escritor italiano invoca, com pragmatismo, a necessidade de saber quem é o autor, o que buscava com sua escrita, em que condições trabalhava, que tipo de concessões fazia, que tipo de novas concessões (desta vez ao tradutor) estaria disposto a fazer. 
 
Por acaso Dumas não era um autor que trabalhava em colaboração? E por que não, então, em colaboração com um seu tradutor cem anos depois? Dumas por acaso não era artesão pronto a modificar seu produto de acordo com as exigências do mercado? E se o mercado agora lhe pedisse uma história mais enxuta, não seria ele o primeiro a autorizar cortes, encurtamentos, elipses? (pág. 144)


 
(manuscrito de Alexandre Dumas)
 
 
 




quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

5132) Monte Cristo e a vingança (12.12.2024)



Um dos grandes sucessos do cinema francês recente é a nova adaptação de O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas. Mais uma entre tantas, porque esta é uma das narrativas de aventuras mais populares que existem. Publicada em folhetim entre 1844-1846, é a obra mais bem sucedida de Dumas, juntamente com Os Três Mosqueteiros (1844). 

 

Não é um livro qualquer; eu diria que em mais de um sentido é um livro essencial, e invoco o testemunho de um intelectual insuspeito, o grande Umberto Eco: 

 

O conde de Monte Cristo é, sem dúvida, um dos mais apaixonantes romances já escritos e, por outro lado, é um dos romances mais mal escritos de todos os tempos e de todas as literaturas. 

(“Elogio do Monte Cristo”, em Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Nova Fronteira, 1989, trad. Beatriz Borges, pág. 140) 

 

Falei “intelectual insuspeito”, mas não é bem o caso, pois Eco é suspeitíssimo. Grande admirador de romances policiais, de ficção científica, de histórias em quadrinhos, de folhetins oitocentistas, o nobre professor de Semiótica sabia trazer para o debate modernista ou pós-modernista as obras que lhe davam prazer, e forçava o colegiado a dedicar-lhes tempo e atenção. 



Monte Cristo é provavelmente um livro que merece as duas avaliações de Eco. Nunca o li por completo, embora já tenha possuído umas duas ou três edições diferentes. É aquele livro em que você lê 300 páginas e aí percebe (como diz um amigo meu) “que mal conseguiu sair da Rodoviária”. A viagem vai ser longa. 

 

O filme francês, escrito e dirigido por Matthieu Delaporte e Alexandre de La Patellière, tem três horas (ou pouquinho menos) de duração, e omite partes inteiras do romance – por exemplo, as aventuras de Edmond Dantès entre o momento em que encontra o tesouro, e o momento em que, anos depois, ostentando o nome de Monte Cristo, desembarca em Paris para mostrar que a vingança é um prato que se serve frio. Ou (mais de acordo com sua época) é uma dívida que se faz crescer com o fermento dos juros compostos. 

 

Não custa nada fazer um breve resumo do enredo. Edmond Dantès é um jovem marinheiro que se envolve sem querer nas intrigas políticas da época de Napoleão. Três homens se unem para destruir sua vida: Danglars (por inveja profissional), Villefort (que teme o testemunho de Dantès sobre fatos que presenciou) e Morcerf (que quer a noiva dele). 

 

Dantès é jogado num calabouço no castelo de If, onde passa cerca de 14 anos. Ali, faz amizade com um prisioneiro, o Abade Faria, que lhe ensina idiomas, ciências, filosofia; e lhe dá as indicações para desenterrar um tesouro que está oculto na ilha de Monte Cristo. Dantès foge da prisão, apossa-se do tesouro, e torna-se um dos homens mais ricos da Europa, agora com novo nome e nova identidade. 



(A Ilha de Monte Cristo)

 

O filme se concentra na parte mais dramática do romance: o modo como o misterioso Monte Cristo (o próprio Dantès, irreconhecível) torna-se amigo de Danglars, Villefort e Morcerf e envolve os três numa teia de gentilezas e parcerias. E de repente eles veem, com perplexidade e terror, o mundo desabar sobre suas cabeças. 

 

O filme tem uma narrativa bastante rápida, comprimindo a história talvez até demais. A personagem de “Haydée” (Anamaria Vartolomei) parece cair do céu, e sua presença só fica explicada no final. Além disso, o roteiro dá destinos diferentes a vários personagens, o que certamente terá feito muitos “dumistas” incendiarem as redes sociais francesas. 

 

Paciência. O cinema nunca foi muito respeitador com os desfechos oficiais das obras literárias. Maldo que ainda vou ver alguma adaptação de Hamlet em que o príncipe enforca o criminoso e sobe ao trono, e um Romeu e Julieta em que os dois pombinhos casam-se e são felizes para sempre. 

 

Afora isto, O Conde de Monte Cristo é o típico filmão de sucesso, com excelente direção de arte, fotografia, locações. 



Quem quiser encarar o romance, tem ao seu dispor a edição de bolso dos Clássicos Zahar, na tradução de André Telles e Rodrigo Lacerda (premiada com um Jabuti), com 1.662 páginas. 

 

Mas, o que causa a crítica ambivalente de Umberto Eco ao romance? Como é que um livro pode ser assim tão “apaixonante” e tão “mal escrito”? 

 

Eco poderia ter explicado melhor que “bem escrito” e “mal escrito” são conceitos entrelaçados, que convivem bem na mesma obra. Um livro pode ser composto de parágrafos impecáveis e estar cheio de personagens tediosos. Pode ter excelentes diálogos e uma trama idiota (ou vice-versa). Pode ser chatíssimo de ler mas recheado de lições políticas importantes; pode ter episódios emocionantes e ser cheio de erros na descrição do ambiente ou da época que aborda. 

 

No ensaio que citei acima, “Elogio do Monte Cristo” (de 1984), Umberto Eco examina essa contradição – um livro com qualidades indiscutíveis e defeitos propositais, defeitos em que o autor, Alexandre Dumas, forçou a mão para obter alguma vantagem. 

 

Diz Eco:

 

O Monte Cristo peca por todos os lados. Cheio de palavras ocas, descarado ao repetir o mesmo adjetivo a uma linha de distância, exagerado ao acumular esses mesmos adjetivos, capaz de iniciar uma divagação sentenciosa sem conseguir concluí-la, porque a sintaxe não se mantém, e assim procedendo e ofegando durante vinte linhas, é mecânico e desajeitado ao esboçar os sentimentos: seus personagens ou fremem ou empalidecem, ou enxugam grandes gotas de suor que escorrem pela testa ou, balbuciando com uma voz que nada mais tem de humana, levantam-se convulsivamente da cadeira e tornam a cair, com o autor preocupando-se sempre, obsessivamente, em repetir que a cadeira em que caíram era a mesma em que haviam sentado um segundo antes. (pág. 141) 

 

São os erros de Dumas, e os erros de todo mundo que escreve às pressas e não revisa – porque é um folhetim, e as páginas manuscritas têm que ser levadas às carreiras para a gráfica. São os erros de quem ganha por número de palavras ou de linhas, e por isto estica o texto, esmera-se em descrições de salões ou alcovas, espicha diálogos o mais que pode, sem trazer informação nova (Eco transcreve um exemplo hilário tirado dos Três Mosqueteiros, às páginas 141-143). 

 

Escrever assim é escrever mal, mas Dumas escrevia bem num outro plano, numa escala mais ampla que não a do detalhe. Escrevia “bem” na invenção de peripécias aventurescas, ou na reconstituição delas – tal como Shakespeare, ele colhia muitos dos seus argumentos em textos alheios ou registros de época. 



Quem livra a cara dele neste aspecto é a inesquecível Marlise Meyer, que conhecia o folhetim tão bem quanto Eco, e ressalva: 

 

Dumas descobre o essencial da técnica do folhetim, mergulha o leitor in media res, diálogos vivos, personagens tipificados, e tem senso do corte de capítulo. Não é de espantar que a boa forma folhetinesca tenha nascido das mãos de um homem de teatro. A relação do folhetim com o melodrama que domina então, ao mesmo tempo que o drama romântico, é estreita. Coups de théâtre múltiplos, sempre espantosos, chutes de rideau hábeis. Diga-se aliás que tanto o folhetim quanto o melodrama têm a ver com a forma romanesca que precede o folhetim em termos de popularidade: o chamado romance negro, ilustrado por Ann Radcliffe, e o romance na linhagem de Richardson, que lança o par jovem virtuosa e seduzida (Pamela) e o cínico sedutor (Lovelace). 

(Folhetim: Uma História, Companhia das Letras, 1996, pág. 60) 

 

Alexandre Dumas escrevia bem – na articulação de situações dramáticas, dos conflitos de interesses, dos segredos, das ameaças, das mentiras que precisam ser sustentadas, das traições, das duplicidades, das manobras de poder dentro da vida social ou familiar, do choque entre interesses pessoais e o momento político ou econômico...  

 

Neste aspecto, autores como Dumas, Balzac, Flaubert têm olho esperto, conhecimento das manobras políticas e da natureza humana: mas do ponto de vista da percepção psicológica e do trato da palavra, pode-se argumentar que Balzac escreve melhor que Dumas, e Flaubert melhor que ambos. (E talvez Proust melhor que Flaubert, etc. etc.) 

 

“Escrever” envolve níveis diferentes de criação, e nem todo mundo é igualmente bom (ou ruim) em todos. 

 

a)      A concepção “macro”, de situações humanas, de personagens, de histórias interessantes com fases sucessivas de interesse renovado, ou seja, manter um certo suspense, uma certa surpresa, uma bem-vinda imprevisibilidade nos fatos narrados; 

b)      A arte de compor os trechos menores (capítulos ou parágrafos) colocando em cada um o necessário para fazer “cair a ficha” na mente do leitor; 

c)       A habilidade para compor e alternar trechos de ação física, trechos de reflexão, de descrição, de interpretação dos fatos narrados, etc. 

d)      A habilidade para revelar sua narrativa através de frases bem articuladas, que produzam iluminação, revelação no leitor (informação nova); 

e)      Escolha de vocabulário de acordo com o que a narrativa pede – elevado, plebeu, rebuscado, abstrato – mas sempre a palavra precisa e nova, em vez do clichê desgastado que todo mundo já ouviu (as frases-feitas, os lugares-comuns que confundimos com “realismo”). 

 

Ninguém é igualmente bom em todos estes “aplicativos”, e ninguém é bom o-tempo-inteiro em qualquer um deles. Num mesmo livro de um autor podem ser encontrados exemplos contrastantes. 

 

O veredito de Umberto Eco mostra que para ele Dumas é excelente nos itens a, b e c, e fraco nos itens d e e. De modo que é preciso relativizar, e muito, esse conceito meio simplório de “bem escrito” versus “mal escrito”. O próprio Eco encaminha essa discussão, admitindo que mesmo com todos os defeitos de escrita do Monte Cristo ele é fã do livro. 

 







segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

5131) A queda de Ícaro (9.12.2024)

 

 
Wystan Hugh Auden foi um dos grandes poetas da língua inglesa do século 20. Para mim, leitor distante, tem a mesma importância de um T. S. Eliot.  Assinava-se W. H. Auden, seguindo essa moda britânica de usar duas iniciais e um sobrenome. Os dois tinham temperamentos diferentes, e alguns elementos poéticos em comum.
 
Biograficamente, foram de certa forma o avesso um do outro: Eliot (1888-1965) era um norte-americano que migrou para a Inglaterra, um ambiente sisudo e engravatado onde se sentia mais à vontade. O inglês Auden (1907-1973) era mais cosmopolita e extrovertido, e fez o percurso inverso, fugindo da Europa para os EUA às vésperas da II Guerra Mundial.
 
Acho que o primeiro poema de Auden que li, numa antologia de bolso, foi um dos mais conhecidos dele: “Musée des Beaux Arts”, no qual ele comenta a queda de Ícaro, o personagem mitológico que voou com asas postiças mas aproximou-se muito do sol e acabou caindo – o calor derreteu a cera que lhe prendia as asas.
 
O poema de Auden descreve a cena, mas dando, por assim dizer, um passo atrás, para se distanciar: descreve um quadro de Brueghel (“Paisagem com a queda de Ícaro”) que retrata o episódio mitológico. Cria, de certo modo, uma “construção em abismo”. Alguém poderia transformar o poema de Auden numa canção. E depois alguém poderia usar essa canção (com seus versos e sua melodia) para criar um balé. E depois outra pessoa poderia produzir um filme documentando (ou ficcionalizando) esse balé... As possibilidade, como sempre, são infinitas.



(Ícaro, no canto inferior direito do quadro)

 
O quadro de Brueghel mistura a lenda mitológica com uma ambientação realista. Ícaro, o personagem mais importante, está quase sumido no canto inferior direito. Brueghel mostra como mesmo os fatos mais momentosos, aqueles que serão lembrados e recontados por milhares de anos, ocorrem num ambiente humano, misturado a detalhes banais.
 
O Realismo (na pintura, na literatura, etc.) se baseia nessa percepção – de que nada acontece num vácuo.  Cada narrativa célebre ocorreu de mistura a outras narrativas menores, que se perderam.
 
O poema aparece na ótima edição bilingue da poesia de Auden (Poemas, Companhia das Letras, 1986, trad. José Paulo Paes e João Moura Jr.). Há outras traduções na Web, inclusive um trabalho meticuloso e bem argumentado de Alexandre Bruno Tonelli (UFRJ), “W. H. Auden em tradução: o verso livre de “Musée des Beaux Arts”.
 
Fiz esta tradução com algumas pequenas interferências. (Não, não é uma “tradução livre”: nenhuma tradução é livre, ou talvez todas o sejam por igual.) Quebrei algumas linhas que me pareceram longas demais (as palavras em português são em geral compridas demais comparadas ao inglês).
 
Auden não usa um esquema regular de rimas; a rima aparece em seu texto quase como por um acaso, caída do céu como o próprio Ícaro. Deixei que a versão em português ficasse aberta a essas casualidades, com eventuais rimas internas brotadas da própria língua, em diferentes pontos do texto.





******** 
 
 
No Museu de Belas Artes
(W. H. Auden – trad. BT)
 
Sabiam tudo sobre o sofrimento,
os Antigos Mestres; como ele se mistura
à condição humana;  como acontece
enquanto alguém almoça, ou abre janelas,
ou apenas caminha sem pensar;
como, enquanto os idosos aguardam
cheios de reverência e paixão
o miraculoso parto, sempre haverá
crianças, que nem se importam com isso,
patinando no lago à beira do bosque;
eles nunca esqueceram
que mesmo o martírio mais tremendo
acaba acontecendo em um recanto, algum lugar encardido
onde os cachorros vão levando
suas vidinhas de cachorros, e o cavalo do torturador
esfrega o traseiro inocente no tronco de uma árvore.
 
No “Ícaro” de Brueghel, por exemplo: como todas as coisas
dão as costas ao desastre, e o lavrador
pode até ter escutado o mergulho, o grito impotente,
mas para ele era um acidente sem importância; o sol
brilhou nas pernas brancas que sumiam na água
esverdeada; e aquele navio de luxo deve ter avistado
algo incrível, um rapaz caindo do céu,
mas estava indo para outro lugar
e continuou velejando em paz.
 
 
***********
 
Musee des Beaux Arts
W. H. Auden
 
About suffering they were never wrong,
The old Masters: how well they understood
Its human position: how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.
 
In Breughel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water, and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.
 



(W. H. Auden) 





sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

5130) As grandes ilusões: a guerra (6.12.2024)



 
O websaite Belas Artes À La Carte está exibindo há algum tempo um clássico que eu nunca tinha visto: La Grande Illusion (1937) de Jean Renoir. 
 
O diretor, que era filho do pintor Auguste Renoir, é um dos grandes mestres de sua geração de cineastas. Alguns filmes dele tornam-se melhores a cada revisão, como A Regra do Jogo (1939), O Crime de Monsieur Lange (1936), A Carruagem de Ouro (1952). 
 
A Grande Ilusão é um filme de guerra que deixou uma marca considerável no gênero. Roger Ebert observou que elementos do filme de Renoir foram copiados em Fugindo do Inferno (os prisioneiros escondendo a terra da escavação do túnel) e em Casablanca (os franceses cantando a Marselhesa, desafiadoramente, na cara dos oficiais alemães). 



(Pierre Fresnay, como o oficial francês, e Erich von Stroheim, como o alemão) 


O filme compartilha, com certa nostalgia e perplexidade, aquela noção antiga de que a guerra é uma espécie de esporte entre cavalheiros. É uma das noções mais contraditórias e absurdas que existem, no meu entender das coisas (que é um entender muito pessimista, reconheço). 
 
A I Guerra Mundial, época em que A Grande Ilusão está ambientado, era uma dessas guerras que herdaram o espírito esportivo e cavalheiresco da época medieval. Uma época em que duques, barões, príncipes, viscondes se encontravam num banquete, comiam, bebiam, cantavam juntos, faziam ameaças mútuas repletas de gargalhadas – e no dia seguinte vestiam a armadura e destroçavam-se uns aos outros. 



O primeiro episódio desse tipo que me desconcertou, em plena adolescência, foi um capítulo de Conan Doyle, “De como os Trinta de Josselin enfrentaram os Trinta de Ploermel”, em seu magnífico O Escudeiro Heróico (“Sir Nigel”, 1906). 
 
O livro é ambientado durante a Guerra dos Cem Anos. Nesse trecho, Doyle descreve os desafios entre os cavaleiros aquartelados nesses dois castelos (os ingleses em Ploermel, os franceses em Josselin). 
 
Acontece que, justo nesse momento, os reis da Inglaterra e da França acertam uma trégua provisória.  A partir dessa data é proibido guerrear.  Decepcionados, os cavaleiros se reúnem para beber juntos (mais ou menos no clima entre oficiais alemães e prisioneiros franceses do A Grande Ilusão), mas começam as provocações de parte a parte e eles resolvem driblar a trégua promovendo um “mero” torneio de armas, com 30 guerreiros de cada lado. 
 
Ou seja – não será um ato de guerra, será um torneio esportivo. 



(O Combate dos Trinta)
 

O encontro se torna uma verdadeira carnificina. Doyle se baseou num episódio histórico, o “Combate dos Trinta”, ocorrido em 26 de março de 1351, quando os nobres guerreiros dos dois países, segundo um cronista da época, “comportaram-se tão valentemente como se fossem os próprios Roldão e Oliveiros” – o que mostra o quanto a valentia da literatura de cordel já vem de longe. 
 
Diz Conan Doyle em 1906, na introdução de Sir Nigel, defendendo esta mistura surrealista de brutalidade guerreira e refinamento aristocrático: 
 
Sei que alguns destes incidentes podem parecer repulsivos e brutais ao leitor moderno. É inútil, contudo, desenhar o Século Vinte dizendo que é o Catorze. Aquela foi uma época mais severa, e os códigos de moral, especialmente no que tange à crueldade, eram muito diferentes. Não há no presente texto nenhum incidente que não tenha confirmação nos fatos concretos. O encanto da Cavalaria reside na superfície da vida, mas por baixo dela havia uma população semi-selvagem, feroz e animalesca, pouco afeita à piedade e à misericórdia. Era uma Inglaterra crua, rude, cheia de paixões elementares, e redimida apenas por virtudes elementares. E foi como tal que me dispus a retratá-la. (trad. BT) 
 
Mais de cinco séculos transcorrem entre a guerra descrita por Conan Doyle (século 14) e a guerra descrita por Jean Renoir (a I Guerra Mundial). Durante todo esse período, não sei se aumentou ou diminuiu o controle da ética sobre a necessidade de matar e destruir. Toda guerra tem “códigos de conduta”: em tais circunstâncias o conflito deve ser suspenso; tais e tais armas não podem ser usadas; tais e tais comportamentos não serão tolerados; os conflitos devem ocorrer dentro de regras aceitas de parte a parte; e assim por diante. 
 
Pelo que me lembro (não tenho mais o livro) Johann Huizinga explora com detalhes este tema no capítulo “O Jogo e a Guerra” do clássico Homo Ludens (1938). 
 
Uma cena de A Grande Ilusão é bem típica desse conceito cavalheiresco de guerra. Os prisioneiros (oficiais franceses) estão preparando uma comprida corda para fugir pelo muro. Aproximam-se os alemães encarregados da revista. O francês agarra a longuíssima corda e a pendura do lado de fora da janela. O oficial alemão pergunta: “Dá sua palavra de honra de que aqui nesta cela não há nenhum instrumento de fuga?”, o francês diz: “Sim” – com um leve sorriso. Ele está sendo honesto – o instrumento de fuga não está na cela, está pendurado do lado de fora. 
 
Esse conceito da guerra como um esporte entre cavalheiros é, pelo que se percebe, a “grande ilusão” mencionada no título. 




Nos conflitos recentes entre Israel e o grupo libanês Hezbollah, o Mossad e o Exército israelense (segundo o New York Times) foram os responsáveis pela explosão de milhares de pagers (ou bips) e de walkie-talkies, meios de comunicação um tanto antiquados que o Hezbollah usava para evitar o rastreamento via celular, internet, etc. 
 
O Alto Comissário das Nações Unidas Para os Direitos Humanos, Volker Turk, declarou à imprensa: 
 
Usar milhares de indivíduos simultaneamente como alvos, sejam eles civis ou membros de grupos armados, sem ter uma idéia de quem está de posse dos aparelhos manipulados, nem de sua localização ou do seu entorno no momento do ataque, viola as leis internacionais dos direitos humanos, e, na medida em que se aplica, a legislação humanitária internacional. 
 
Ou seja: mesmo que não estejamos mais na Idade Média com seus salamaleques cavalheirescos, a guerra não é um vale-tudo. A guerra tem limites. 
 
La Grande Illusion lembra em muitos momentos outro filme clássico de Jean Renoir: La Règle du Jeu, uma história em que ele compara o comportamento amoroso de patrões e empregados, num fim-de-semana festivo numa mansão. Aristocratas daquele tempo se divertiam caçando perdizes ou caçando raposas. Na caçada esportiva, havia regras, e não há como não pensar que a guerra para eles não era uma atividade muito diferente. 
 
No fim das contas, a grande ilusão de todos é tentar manter a guerra – a matança deliberada de pessoas –  como uma espécie de jogo, com regras, como se fosse um passatempo, ou no máximo como aqueles duelos de espada onde bastava um arranhão para que “a honra estivesse satisfeita”. 
 





terça-feira, 3 de dezembro de 2024

5129) Sete pontes (3.12.2024)




1
As Três Pontes de Teholualc, no sul do México, sobre o rio Colondras, surgiram de uma em uma. Séculos atrás os montanheses criaram uma ponte de cordas para possibilitar a passagem de um lado para o outro. Nem todos, contudo, eram fisicamente capazes de fazer a travessia, e um potentado local financiou a construção de uma ponte de madeira, firme, segura, a poucos metros da primeira.  Acontece que os mais jovens preferiam a ponte antiga e sua insegurança, e deixavam a de madeira para as pessoas idosas. Ora, alguns trechos da ponte mais nova, construída com árvores de má qualidade, começaram a apodrecer. Surgiu então o desejo de uma ponte de pedra, até porque o comércio da região aumentava, e com ele o tráfego de carroças para o outro lado do rio. A terceira ponte foi feita; agora, era a ponte de madeira que começava a receber o interesse aventureiro dos mais jovens. As três pontes estão hoje abertas e acessíveis a qualquer pessoa. Quando uma família viaja em grupo, ao chegar ali todos se desejam boa sorte e se separam, cada qual atravessando a ponte que mais lhe convém. 
 
2
Na cidade do Sêrro (MG) chama a atenção dos visitantes um casarão erguido quase à beira de um precipício, tendo num dos andares superiores uma comprida ponte de madeira que se alonga no vazio e de repente se interrompe, como se deixada inconclusa. Ali morou a família do capitão-mor Anteu Covilhã de Burgos, dono de minas e de cativos, senhor-de-terras temido na região, e que um dia foi emboscado e morto a foiçadas. Algum tempo depois, seu fantasma passou a assombrar a família, surgindo várias noites por ano, caminhando pelo corredor com pesadas botas e batendo na porta dos quartos com o rebenque, sem deixar ninguém dormir. Missas, novenas, aspersões com água benta, nada impediu seu retorno periódico, a abalar o sono dos parentes; até que D. Ermengarda, a jovem viúva, tomou a decisão de arregimentar pedreiros, demolir a parede do final do corredor e construir ali a ponte de madeira, prolongando o corredor até o abismo. Ponte por onde o fantasma, na vez seguinte, seguiu caminhando até o final, deu o derradeiro passo, e se esfumou no vazio. A ponte está ali até hoje, e o fantasma nunca mais apareceu. 
 
3
Alímbria, fortaleza medieval situada num platô nos montes Apeninos, só pode ser acessada com a travessia de uma ponte. Para dar tempo aos guardas de examinarem bem os que se aproximam, foi erguida uma torre de observação, e a ponte, depois de alargada, foi coberta com as paredes de um labirinto, onde todo recém-chegado precisa avançar lentamente enquanto é vigiado do alto pelos guardas. Com o tempo, o trânsito foi aumentando, a ponte foi sendo alargada, o labirinto ficou mais complexo; hoje há gente que mora nele, e desistiu de chegar à fortaleza. 
 
4
A ponte que conduz ao mosteiro de Kanerlin, na Romênia, tem cerca de quarenta metros de extensão, por sobre uma fenda rochosa com mais de cem de profundidade. A ponte consta, na verdade, de duas plataformas que se projetam uma ao encontro da outra, de ambos os lados do abismo – mas não se tocam. Existe entre elas um espaço vazio que deve ser transposto, com certo risco de vida, por qualquer pessoa que pretenda chegar ao mosteiro ou retirar-se dele. É neste ponto que os relatos variam e tornam-se contraditórios, porque, segundo se tem apurado ao longo dos anos, um homem (o mosteiro é vedado a mulheres e crianças) que se dirige ao mosteiro vê diante de si uma abertura de cerca de um metro até a continuação da ponte, espaço que pode ser transposto com apenas um pequeno pulo, ou uma passada mais larga. Por outro lado, um visitante ou um ex-noviço que pretenda regressar ao mundo profano atravessa a primeira metade da ponte mas então (todos os relatos concordam nesse ponto) veem a continuação dela situada a distâncias que vão de cinco a dez metros, espaço que só pode ser transposto com um grande salto, com o risco de cair no despenhadeiro – o que faz muitas pessoas, surpreendidas por essa discrepância inesperada, repensarem seu projeto de vida, e questionarem-se intimamente se de fato vale a pena o risco de perder a vida para voltar ao mundo. 
 
5
Em Baixaverde/Reunión, duas cidades gêmeas na fronteira Brasil/Argentina, a linha demarcatória passa pelo centro comercial, mas ao se afastar dali é coberta pela Ponte Suspensa, construída pela família Sá-Pereyra, na forma de um arco suave com uma extremidade em cada país. A ponte é coberta de mosaicos criados pelos irmãos gêmeos León e Lucas Sá-Pereyra, o primeiro nascido numa ambulância na Argentina e o segundo numa maternidade brasileira. Tendo estudado vários anos na Europa (Roma, Amsterdam, Barcelona), os irmãos se especializaram na criação de murais e painéis de mosaicos, que utilizaram em numerosas obras na Europa e nas Américas, e principalmente nesta ponte, no lugar de origem de sua família. A ponte utiliza como painéis laterais mosaicos em 3-D (“como os retângulos de uma barra de chocolate”, explica León, o mais bem-humorado dos dois) cujo aspecto e colorido mudam de acordo com o ângulo de visão do observador. Assim, quem cruza a ponte na direção da Argentina  acompanha ao longo desses trinta metros o desfile de rostos de argentinos ilustres – rostos que se transformam em brasileiros, para o pedestre que caminha no sentido contrário, rumo ao nosso país. Assim, tem-se a impressão de ver o rosto de Diego Maradona transformar-se no de Caetano Veloso (ou vice-versa), o de Erico Verissimo virar o de Adolfo Bioy Casares, as feições de Astor Piazzolla tornarem-se as de Moacyr Scliar, a imagem de Angelica Gorodischer fundir-se à de Fayga Ostrower, e outras surpresas. 
 
6
Cambises II, em sua campanha de conquista da Líbia, recorreu a um grupo de engenheiros espartanos que lhe forneceram o conceito de ponte articulada, capaz de ser desmontada e conduzida em carroças durante a campanha, e ser rapidamente construída quando necessário. Diante de um rio ou de uma falha no terreno, os soldados persas rapidamente encaixavam as tábuas, mediante um engenhoso sistema de protuberâncias, cavidades e cavilhas que firmavam as peças no devido lugar. O ponto de partida da ponte era fixado no chão com postes profundamente fincados, e à medida que as tábuas eram encaixadas umas às outras a ponte avançava sobre o abismo, até chegar ao lado oposto e ali também ser fincada. Após a passagem da tropa, a ponte era desmontada e conduzida em carroças até o obstáculo seguinte. 
 
7
No município de Jandirópolis, sul da Bahia, o governo federal iniciou em 1975 a construção de uma ponte que ligaria dois planaltos contíguos, encurtando em mais de 50 km a distância entre a sede do município e o trevo que conduzia a Salvador. A construção foi iniciada com fanfarras e celebrações, mas crises políticas e reformas ministeriais deixaram o projeto em banho-maria. Da ponte projetada, ficou pronta apenas a parte inferior da estrutura, dezoito pilares verticais, paralelos, dois a dois, de ponta a ponta. Quando ficou claro que dificilmente o governo retomaria uma obra tão dispendiosa, a população local mobilizou-se e, escalando as pilastras, improvisou gambiarras arquitetônicas de toda sorte, construindo passagens horizontais em que os pilares são unidos por tábuas, troncos de árvore, postes de cimento descartados, tubulações metálicas furtadas a uma represa próxima, placas de acrílico amarradas umas sobre as outras. E a população atravessa por ali.  


sábado, 30 de novembro de 2024

5128) "A Diplomata": mulheres no comando (30.11.2024)



 
Acho que ainda não escrevi aqui sobre esta ótima série do Netflix, cuja primeira temporada assisti no ano passado. Estou vendo agora a segunda, que é ainda melhor.
 
A série acompanha a embaixadora Kate Wyler (Keri Russell) e seu marido Hal (Rufus Sewell) depois que ela é nomeada embaixadora dos EUA no Reino Unido. O casal tinha servido em missões diplomáticas no Oriente, e estavam os dois acostumados a uma maneira de viver, digamos, mais informal e mais pragmática. E de repente, lá estão os dois em pleno “circuito Elizabeth Arden”, tendo que aderir aos numerosos fricotes e rapapés do cargo. 



 
O fato de que o casal está em crise e que ela está sendo cotada para assumir a vice-presidência dos EUA traz para a história uma dimensão de conflito a mais. E de “manutenção da imagem pública” – essencial para a sobrevivência política. Os personagens de Nelson Rodrigues costumavam “calçar as sandálias da humildade”; os de Debora Cahn (a criadora da série) não sobrevivem sem o black-tie da hipocrisia. 
 
Debora Cahn tem no currículo (como roteirista e/ou produtora) séries respeitadas como Homeland (2011-2020), Grey’s Anatomy (2005-...) e The West Wing (1999-2006)
 
O saudoso dr. Ulysses Guimarães dizia que a arma do político é a saliva, e isto faz com que una narrativa desse tipo precise mostrar o tempo inteiro pessoas falando, negociando, divergindo, conspirando, mentindo, desmascarando, interrogando... 
 
O diálogo é a arma principal dessas tramas, até porque cada pessoa diz coisas totalmente opostas, dependendo do lugar onde se encontra e da pessoa com quem fala. 
 
O filme-de-política e o filme-de-diplomacia têm uma interface interessante com o filme-de-espionagem. Nunca sabemos quem é o espião infiltrado, quem é o informante secreto, quem é o traidor, quem é o colega que joga cascas-de-banana à nossa frente, quem é o carreirista que quer o nosso cargo, quem é o mentiroso contumaz que planta verde para colher maduro. 
 
Kate Wyler é uma personagem interessante porque é uma mulher esperta, inteligente, de raciocínio rápido, um tanto idealista (até onde é possível manter algum idealismo dentro do lamaçal de interesses que é a política), disposta a conversar e a negociar com todo mundo.  
 
Por outro lado, ela é jovem, é ainda um tanto “verde” na carreira. O fato do marido ser calejado e lhe dar orientações o tempo todo tanto ajuda quanto atrapalha. Aqui e ali ela é chamada por alguém de “caipira”, pela relativa inexperiência, e pelo modo desmazelado como cuida da própria aparência. Ela é bonita e atraente, mas veste qualquer coisa, não usa maquiagem, o cabelo parece o de Madame Min, e não tem paciência para as “coisas de mulherzinha”. 
 
A atriz dá um banho, criando essa personagem tensa, motivada, obcecada, de cabeça elétrica, capaz de meter os pés pelas mãos, reconhecer o erro em questão de segundos, sacudir a poeira e seguir em frente, como um atacante do futebol que perde um gol feito e volta correndo para marcar o contra-ataque, sem ficar com mimimi. 



(Rufus Sewell, como "Hal Wyler") 

 
Gosto de Rufus Sewell, que foi um excelente vilão em O Ilusionista (Neil Burger, 2006) e em O Homem do Castelo Alto (série de Frank Spotnitz, 2015-2019). Aqui, ele faz o papel ambíguo de quem não é vilão, mas é capaz mentir como quem dá um drible. E de, digamos, tomar certos atalhos éticos para facilitar as coisas. Hal Wyler é o que Zózimo Barrozo do Amaral chamava “uma raposa felpuda”. Alguém que é íntimo dos corredores do poder, está em dia com todas as intrigas e contra-intrigas, tem controle sobre os próprios escrúpulos, e sabe exatamente do que os vilões são capazes – alguém que “é da tribo, e conhece os caboclos”. 
 
O roteiro tem o cardápio dramático de histórias assim. O mundo da alta política se presta ao melodrama porque nele existe a mesma concentração de Poder (sobre vidas humanas, sobre fortunas, etc.) que havia em grandes vilões como Dr. Mabuse, Fantômas, Fu-Man-Chu, Prof. Moriarty... só que agora elevados a uma potência muito maior. São decisões e conflitos que não podem simplesmente derrubar um governo ou mandar gente para a cadeia – podem provocar uma nova Guerra Mundial. 
 
Andei peruando o que os críticos (e os diplomatas de verdade) comentam por aí. 
 
Os críticos elogiam (e eu concordo) a narração segura, veloz, que mal dá tempo da gente respirar. As tramas são bem articuladas, há surpresas e puxadas de tapete (geralmente verossímeis) a cada episódio. O elenco é muito bom. Os diálogos, excelentes. 
 
Os diplomatas criticam (com razão) as muitas liberdades que os autores tomam em relação ao assunto. “Nunca que na vida real da diplomacia aconteceria algo assim”, dizem eles. “Situações romantizadas”, “simplificação de uma realidade complexa”, “concessões ao gosto popular em detrimento da fidelidade aos fatos”. 
 
Se colocarmos esses dois conjuntos de opiniões num liquidificador, o que teremos é, no fim das contas, a essência do melodrama. O melodrama consiste em pegar uma realidade que o público seja capaz de reconhecer (mesmo sem conhecimento dela em primeira mão) e exagerar seus aspectos dramáticos até chegar a esse paradoxo – é um conjunto de exageros, em benefício da dramaticidade narrativa, que distorce uma realidade mas ela continua reconhecível. 
 
O melodrama é uma caricatura. Os críticos estão certos em perceber que tudo ali é distorcido em favor da emoção, do suspense, do mistério, do susto, das revelações psicológicas, da revelação do lado ridículo e do lado sinistro da alma humana. 


 
Os diplomatas (e mil outros profissionais) têm sua parcela de razão quando dizem que aquele retrato não é fiel à realidade. É muito raro que um retrato desse tipo, no cinema e na narrativa em geral, seja fiel. Porque não é um retrato – é uma caricatura. 
 
Raymond Chandler, um criador de melodramas com sucesso de crítica e de público, sabia disso. Sabia o quanto num romance assim (ou num filme) o realismo é apenas aparente. (Todo realismo narrativo é apenas aparente – mas esta é uma discussão filosófica que fica para oytra hora.) 
 
Numa carta para a agente literária Bernice Baumgarten, em 11 de março de 1949, Chandler explicava: 
 
O material do escritor de mistério é o melodrama, que é um exagero da violência e do medo muito além do que alguém experimenta normalmente na vida. (Estou falando “normalmente”: nenhum escritor jamais chegou perto da vida nos campos de concentração nazistas.)  Os meios que ele emprega são realistas no sentido de que coisas assim acontecem a pessoas como aquelas em lugares como aqueles; mas o realismo é superficial; o potencial de emoção é exagerado, a compressão de tempo e de espaço é uma violação das probabilidades, e embora tais coisas aconteçam, elas não acontecem com tal rapidez e dentro de limites lógicos tão estreitos a um grupo tão reduzido de pessoas. (trad. BT)
 
O romancista (tal como o roteirista de cinema/TV) é forçado a comprimir, simplificar, fazer vista grossa a processos lentos e complicados da vida real. Quantas vezes vemos gente se queixando de que nos filmes há sempre um táxi para atender um aceno, e as contas são pagas sem a perda daqueles longos minutos de passar troco, passar cartão, etc. 
 
Quando personagens reais (políticos, etc.) aparecem numa história, não se pode interromper a narrativa principal para “fazer jus” ao Figurão – ele diz as falas que tem para dizer, e desaparece. 
 
É utópico exigir de histórias assim uma verossimilhança rigorosa – embora, ao mesmo tempo, isso tenha que ser cobrado toda vez. Roteiristas e produtores precisam ser tão fiscalizados quanto empresários e políticos. São todos humanos, todos parecidos. 



(Raymond Chandler)
 

Mesmo quando essas narrativas são elogiadas, nem sempre o são pelos motivos certos. O próprio Chandler se sentia incomodado quando alguém super-valorizava sua atitude, como nesta carta para o editor do Harper’s Magazine, Frederick Lewis Allen, em 7 de maio de 1948:
 
Aqui estou eu agora, na metade de um novo romance sobre Marlowe, divertindo-me um pouco (até empacar de novo) e de repente me aparece esse tal de Auden e diz que estou escrevendo sérios estudos a respeito de um ambiente criminal. E agora fico olhando para cada coisa que escrevo e dizendo a mim mesmo: Lembre-se, meu velho, isso tem que ser um sério estudo de um ambiente criminal. Você está sendo sério? Não. Isso é um ambiente criminal? Não, somente a corrupção mediana da vida, com o ângulo melodramático um pouco exagerado, não porque eu seja maluco pelo melodrama em si, mas porque sou realista o bastante para conhecer as regras do jogo.
 


(Debora Cahn, criadora da série, e Keri Russell, "Kate Wyler")