quinta-feira, 5 de março de 2020

4556) Minhas Canções: "Virou Areia" (5.3.2020)



Nas canções existem idéias que vão passando de uma para outra, feito espíritos que reencarnam. A idéia X ganha forma na canção A, mas fica uma forma meio incompleta, meio desordenada, na base do “ainda não é bem isso”, e pode ser que depois ela tome uma forma diferente na canção B, ficando mais parecida consigo mesma.

“Virou Areia” foi composta em janeiro de 1990 (o manuscrito está datado, num caderno) numa ida de Lenine à minha casa, na ladeira da Tavares Bastos. “Estou com uma levada de samba,” anunciou ele ao chegar. “E eu estou com uma idéia: virou areia”, disse eu. Duas ou três horas depois a música estava pronta.

A idéia, de minha parte, vinha de bem antes, de uns martelos alagoanos que eu escrevi ainda em Campina Grande, dez anos antes disso, em que uma das estrofes dizia:

Contemplei a Pirâmide do Egito
monumento de um grande faraó;
vi o vento fazendo virar pó
os seus blocos enormes de granito.
Decifrei o hieróglifo escrito
nos papiros do grande soberano;
e entendi na mensagem desse arcano
que a Pirâmide também já está perto
de rolar nas areias do deserto,
nos dez pés de martelo alagoano.

A idéia dos grandes monumentos desmoronando devido à erosão já estava aí, mas voltou com força total quando me ocorreu a frase “virou areia”, com sua aliteração simples mais forte, e sua sonoridade em “Ô – Ê” que imediatamente me sugeriu o refrão de um samba.



Não foi meu primeiro samba com Lenine, porque um ano antes já tínhamos composto República dos Viralatas para o bloco Suvaco do Cristo (“Foi ela / a primeira tentação / que molhou a minha mão / na fonte do pecado...”). Mas achamos que a música tinha ficado boa, e a inscrevemos pouco depois na FAMPOP (Feira Avareense de Música Popular), de Avaré (SP), um festival de excelente nível onde Lenine tinha sido campeão no ano anterior com o “Samba do Quilombo”.



A música ficou em terceiro lugar; foi gravada em seguida por grupos como o MPB-4 (no álbum Sambas da Minha Terra) e o Batacotô. Ganhou uma versão em inglês da cantora Dionne Warwick, que passou algum tempo morando no Rio de Janeiro e gravou um disco (Aquarela do Brasil) só com músicas brasileiras.

Essa versão de Ms. Warwick foi contestada por algumas pessoas, levantando mais uma vez a lebre milenar de que uma versão não corresponde nunca à letra original. Não corresponde mesmo, e não pode, nem é preciso. Uma versão poética não é (na minha opinião e na minha prática) uma tradução verso-a-verso da letra original. É uma expansão das idéias gerais e do sentimento da canção original, num tom e num espírito próximos aos que foram usados pelo autor.

É quase impossível pegar uma letra em outro idioma e fazer com que na nossa língua ela diga exatamente a mesma coisa, tendo o mesmo número de sílabas e as mesmas acentuações tônicas – que na canção, que é cantada, têm muito mais importância do que num poema lido numa página. Pode-se fazer? Pode, sim, como se pode escrever um romance sem usar a letra “E”. Mas pra quê esse trabalho todo, se é muito mais interessante o desafio de criar uma letra nova em português, dizendo algo parecido?

Nas minhas versões, procuro dizer coisas parecidas com o que o original disse, mas, frequentemente, usando outras imagens, outras comparações, etc.  Repito: uma boa versão não repete a letra original: ela a amplia, a estende.

Acho que a minha gravação preferida deste samba (até o momento acho que são 7 ao todo) foi a que Lenine fez ao vivo no seu show Lenine In Cité (em Paris), com a baixista cubana Yussa e o percussionista argentino Ramiro Musotto.



************


Virou Areia
(BT + Lenine)

Cadê a esfinge de pedra que ficava ali?
Virou areia, virou areia.
Cadê a floresta que o mar já avistou dali?
Virou areia, virou areia.
Cadê a mulher que esperava o pescador?
Virou areia.

Cadê o castelo onde um dia já dormiu um rei?
Virou areia, virou areia.
E o livro onde o dedo de Deus deixou escrita a lei?
Virou areia, virou areia.
Cadê o sudário do salvador?
Virou areia.

(Areia) A lua batendo no chão do terreiro
(Areia) O barro batido subindo no ar
(Areia) Menino sentado na beira da praia
(Areia) Fazendo com a mão um castelo no mar...

E a onda que se ergueu e que passou
virou areia...
Nasceu no mar e na terra se acabou
virou areia...

Cadê a voz que encantava a multidão?
Virou areia, virou areia.
Cadê o passado, o presente, e a paixão ?
Virou areia, virou areia.
Cadê a muralha do imperador?
Virou areia.


**********

Lenine In Cité:

Gravação “Batacotô”, Lenine no vocal:

Gravação MPB-4:

Gravação de Juca Novaes:
https://www.youtube.com/watch?v=nvLWwazkO_g

Gravação Dionne Warwick:




"Virou Areia"
(versão de Dionne Warwick)

Oh where are the pyramids
That stood in Egypt land?
Virou areia, virou areia

And where are the trees the grass
And all the earth has grown?
Virou areia, virou areia

Oh where are all hopes
And dreams of all mankind
Virou areia, virou areia

What happened to the dreams
Of castles, queens and kings
Virou areia, virou areia

The hand of God has written
That all men are free
Virou areia, virou areia

And where is the savior for us all
Virou areia

Areia - the moon wants to hide
All the sorrow we've caused the earth
Areia - we've gone through
The layers Of air and sky
Areia - the land is so tired
That it won't give birth
Areia - the trees and the grass will all die

We have got to change this old m.o.
Virou areia
If not it's back to sand we all will go
Virou areia

Cadé a voz que encantava a multidão
Virou areia, virou areia
Cadé o passado o presente e a paixão
Virou areia, virou areia
Cadé a muralha do imperador, virou areia

The moon wants to hide all the sorrow
We've caused the earth
Barro batido subindo no ar
The land is so tired it won't give birth
Fazendo com a mão um castelo no mar
Onda que se ergueu e que passou
Virou areia
If not it's back to sand we all will go
Virou areia

Tell me where are all the people
Who thought as one
Virou areia, virou areia

It's our responsibility
To get things done













segunda-feira, 2 de março de 2020

4555) A arte do paradoxo (2.3.2020)




O paradoxo é uma das mais sutis figuras de estilo, e consiste basicamente em dizer ao mesmo tempo uma coisa e o contrário dela.  É uma frase que detona a si mesma, que se contradiz com firmeza e em voz alta. 

Parece um contra-senso mas, dito da maneira certa (e lido da maneira certa) acaba parecendo a única maneira correta de dizer aquilo.  Carlos Drummond faz a narradora do seu “Caso do Vestido” dizer às filhas:

Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno. 

É uma contradição? Sim e não.  O mundo é grande o bastante para que as pessoas vão embora e nunca mais regressem, mas também é pequeno o bastante para que as pessoas voltem a se encontrar. 

O uso desta imagem ganha reforço para o leitor habitual de Drummond, que no “Poema de sete faces”, já no seu livro de estréia, dissera:

Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração.

E depois, em “Mundo grande” aduziu:

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores. 

Desse modo, termos como “grande” e “pequeno” tornam-se relativos, maleáveis, quase intercambiáveis.  Tudo é grande e pequeno ao mesmo tempo.

O paradoxo deixa claro para o leitor que leituras ao pé da letra são arriscadas; que é preciso negar a meras palavras qualquer valor absoluto; que numa frase dessa natureza a mesma palavra pode estar sendo usada com dois sentidos diferentes. 

Para as pessoas que insistem na interpretação ao-pé-da-letra de tudo que ouvem (aqueles que Nelson Rodrigues chamava “os idiotas da objetividade”), um paradoxo é um erro, um contra-senso.  Quando Carlos Drummond diz: “Ganhei (perdi) meu dia”, o leitor-ao-pé-da-letra sente-se na obrigação de perguntar: “Mas afinal, ganhou ou perdeu?”


(G. K. Chesterton)

A Inglaterra nos fins do século 19 foi um ambiente literário fértil para o paradoxo.  O romancista e ensaísta G. K. Chesterton (1874-1936) foi um dos que o cultivaram com mais brilho.  Em seu livro Ortodoxia está a frase famosa: “Um louco não é um homem que perdeu a razão.  O louco é um homem que perdeu tudo, exceto a razão”. 

Chesterton mostra um louco como alguém que perdeu o sentido real das coisas, mas não a capacidade de raciocinar.  A razão do louco é “uma razão sem raízes, uma razão no vácuo”.  Ou seja: razão sem princípios morais.  Aliás, foi também Chesterton quem disse: “Se não Deus não existisse, não existiriam os ateus”.


(Oscar Wilde)

Contemporâneo de Chesterton, Oscar Wilde (1854-1900) foi um desses intelectuais que frequentam a alta sociedade e sempre têm na ponta da língua uma frase espirituosa.  Muitas vezes seu improvisos de maior sucesso eram incorporados às suas peças teatrais, que faziam mais sucesso ainda.  Ali ele celebrizou paradoxos famosos como “Sou capaz de resistir a tudo, menos a uma tentação” ou “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”, ou ainda “Só há duas tragédias na vida: não conseguir o que se quer, e consegui-lo”. 

A linguagem literária usa a contradição criativa – e os aforismos, epigramas e frases de efeito que as pessoas trocam no seu dia-a-dia, em festas, reuniões sociais, etc., são linguagem literária, mesmo que surjam em conversas de salão, e não em livros escritos.  São fragmentos de literatura oral, improvisados, desvinculados de uma estrutura maior (conto, poema, etc.), mas sua função é literária. 

Quando ocorrem em obras literárias propriamente ditas, reconhecemos ali um modo de dizer as coisas que ecoa nossa linguagem cotidiana, onde a função afetiva pesa mais que a função denotativa. 


(Guimarães Rosa)

Vemos em Guimarães Rosa frases como “Tudo o que é bom faz mal e bem” (“Esses Lopes”) ou então “Nem alegre nem triste, apenas o oposto” (“Palhaço da boca verde”).  Esta última nos remete de imediato para o verso famoso de Cecília Meireles, que Rosa decerto conhecia: “Não sou alegre nem triste: /  sou poeta”.  A formulação de Rosa é linguisticamente mais precisa, e entrega o jogo, por assim dizer. O contrário de “alegre” só é “triste” de um certo ponto de vista.  O que Rosa nos sugere é que existe um modo de ser (“Insensível”? “Sereno”? “Cerebral”?) que é o oposto da tendência a alegrar-se e entristecer-se.

O paradoxo pode servir também para relativizar conceitos subjetivos, como faz Nelson Rodrigues quando diz que “o dinheiro compra tudo, inclusive amor sincero”.  É como se dissesse que a existência do dinheiro e a do amor sincero são incompatíveis, que as duas coisas não podem existir no mesmo mundo. 

Já Vinícius de Morares dizia do amor: “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.   A infinitude não é entendida aqui como a não-cessação do sentimento, e sim como uma intensidade tal de sentimento que o faz prolongar-se, de outra maneira, mesmo depois que cessa de existir.  É uma idéia retomada por Drummond quando diz: “Eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo / mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata” (“Eterno”), ou “deixaram de existir, mas o existido / continua a doer eternamente” (“Destruição”). 

Na prosa, o paradoxo serve frequentemente para a ironia, o sarcasmo ou outra forma de linguagem crítica, usada para desvendar ou desmascarar contradições alheias. 

Na poesia lírica, serve muitas vezes como revelação da contradição íntima do poeta, que quer ao mesmo tempo duas coisas conflitantes, ou que se vê forçado a admitir duas emoções incompatíveis.  O paradoxo lírico revela que somos contraditórios, que nossa mente se divide com facilidade, que nossos sentimentos (e mesmo os nossos princípios morais) estão frequentemente em choque uns com os outros.  E se a literatura não reproduzir isto, quem o fará?





(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, Ed. Segmento, São Paulo, # 58, agosto de 2010.)












sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

4554) O Klingon e as atividades sem propósito (28.2.2020)




O que é uma atividade sem propósito?

Um sentido possível: uma atividade que provavelmente não terá utilidade para ninguém. Exemplo: alguém desenhar um triângulo em cada poste elétrico, quando andar pelas ruas.

Dois: uma atividade meio boba, realizada apenas por diversão ou desfastio. Exemplo: alguém anotar as formas que vê nas nuvens do céu: camelo, castelo, baleia, chapéu...

Três: uma atividade que pode até vir a ser útil, mas a própria pessoa que está fazendo não sabe para que serve. Exemplo: alguns ramos da Matemática Pura.

A civilização humana foi construída através de projetos conscientemente concebidos e executados, mas há muita coisa feita sem nenhum propósito específico e que com o tempo acabou se tornando útil, sem que ninguém tivesse previsto.

Um exemplo muito conhecido, e que sempre me volta à memória, é o de Thomas Edison, ao inventar o fonógrafo. Ele considerava que a gravação da voz humana seria utilíssima para o estudo de idiomas, o que não deixa de ser. Usar os discos fonográficos para a reprodução (e a venda em massa) de canções populares foi uma utilização que só lhe ocorreu bem depois. Não fazia parte do mundo em que ele vivia.

Quando o fonógrafo “foi pras ruas”, logo foram encontradas outras utilidades para ele.

Embora o utilitarismo pareça mandar no mundo, grande parte de nossas atividades mais sérias e mais exigentes se dá sem que a gente imagine para que aquilo vai servir algum dia. 

Ocorre na Matemática, por exemplo: um matemático do século 19 inventa uma forma de organizar certos cálculos, capazes de lidar com números complexos, etc.  Não sabe para que pode servir, mas sabe que funciona. No século 20, um físico ou um biólogo ou um economista se depara com um problema complicado, mas que é possível reduzir a números: e descobre que o modo ideal de calcular aquilo fora inventado cem anos antes, praticamente “no escuro”.


(Minkovski e Einstein)

Ocorreram fatos assim na carreira de Einstein, se não me falha a memória. Ele próprio admitia que seus recursos matemáticos eram limitados, pelo menos para se igualarem ao alcance espantoso de suas intuições sobre o universo físico. Há um episódio em que o matemático Minkovski veio publicamente em socorro dele, exibindo cálculos que ele próprio, Minkovski, tinha desenvolvido, cálculos capazes de confirmar matematicamente o que Einstein estava descobrindo.

Quando as teorias de Einstein sobre as distorções do espaçotempo começaram a “estourar as costuras” da Geometria vigente, chegaram às mãos dele as chamadas geometrias não-euclidianas de Lobatchevsky (1793-1856) e de Riemann (1826-1866), que até então muita gente considerava apenas curiosidades, façanhas intelectuais sem serventia coletiva.

É como se os matemáticos dissessem: a Natureza, o mundo físico, tem um zilhão de processos que não somos capazes de avaliar, de calcular, de controlar. Mas quando inventamos um tipo de cálculo ou de controle lógico, mais cedo ou mais tarde ele acaba sendo visto como a melhor descrição de algo que acontece nos átomos, ou nas células do corpo.


Ou nos processos econômicos. Lembro o filme Uma Mente Brilhante (“A Beautiful Mind”, Ron Howard, 2001) com Russell Crowe, onde ele faz o matemático John Nash, que era esquizofrênico e genial. Algumas fórmulas propostas por Nash só se revelaram úteis, para o estudo da Economia, muitos anos depois de publicadas, quando ele já estava meio mergulhado na doença. Sua teoria dos jogos não-cooperativos, descrita em um trabalho de 1950, lhe valeu o Prêmio Nobel de Economia 44 anos depois.

É como se a Matemática produzisse respostas e estas ficassem arquivadas à espera da pergunta correspondente. O que faz sentido, se virmos o trabalho científico com os olhos de Einstein, para quem o que faltava à Ciência não eram respostas certas, mas perguntas novas. Muitas dessas perguntas (ele deve ter pensado) iriam ter respostas já prontas, descobertas importantes mas que até então ninguém sabia para que servia.

Um exemplo em que sempre penso como “atividade inútil” é a criação de idiomas artificiais, tão classificativos e cheios de regras que ninguém se daria o trabalho de entender sua gramática. Paulo Rónai dedicou o livro Babel e Anti-Babel (Ed. Perspectiva, São Paulo) a esses indivíduos meio excêntricos, dos quais o mais bem sucedido parece ser o Dr. Zamenhof, que criou o Esperanto.


O idioma Klingon surgiu de maneira diferente: foi inventado com o propósito de mostrar como falavam os alienígenas Klingon na série “Star Trek”, e foi falado pela primeira vez no filme Star Trek: The Motion Picture (1979). Está claro que para os produtores e todos os artistas envolvidos a língua klingon tinha um propósito muito claro. Era um detalhe a mais de verossimilhança para encorpar um universo ficcional. Como a linguagem dos elfos criada por Tolkien em O Senhor dos Anéis.

The Klingon Dictionary foi publicado em 1985 por Marc Okrand, o linguista contratado peça produção de “Star Trek” para inventar o idioma daqueles alienígenas de testa gigantesca.  Desde então, o Klingon Language Institute já publicou traduções em klingon de obras clássicas como Hamlet, A Epopéia de Gilgamesh e o Tao Te King.

Uma linguagem sem povo, à espera de quem a utilize.









terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

4553) A Idade da Burrice (25.2.2020)




Já devo ter escrito aqui neste blog a respeito do Darwin Award, um prêmio humorístico que todo ano é concedido, simbolicamente, a pessoas que morrem acidentalmente por terem cometido uma enorme burrice.

O nome do prêmio alude à Teoria da Evolução, de Darwin, e sugere, com certo sarcasmo cruel, que a Humanidade evolui assim: os muito burros acabam se matando de tanta burrice, e os menos burrinhos (nós) sobrevivemos.

Não é uma tese cientificamente comprovável, até porque muitos dos “inteligentes-4-estrelas” imaginam que são “inteligentes-5-estrelas” e acabam se metendo em complicações das quais não conseguem mais sair. And so it goes, diria Kurt Vonnegut Jr.  Vida que segue.


Hoje em dia, nas redes sociais, existe uma verdadeira conspiração de pessoas inteligentes contra as pessoas burras. Exemplos concretos de burrice-alheia são fotografados, compartilhados, escarnecidos. Por que? Provavelmente porque ver a burrice alheia nos dá a ilusão de que somos inteligentes. “Ah, isso aí eu não faria nunca, eu não sou tapado a esse ponto!...” 

E existe, em muitas dessas críticas ou gozações, um indisfarçável tom de superioridade social. Mangar de quem é burro é tão divertido quanto mangar de quem é pobre. Ficamos nos sentindo ora um Ludovico Sabetudo, ora um Tio Patinhas. 


A burrice é perigosa, mas igualmente perigoso é quando o esnobismo social nos dá prazer em ridicularizar uma pessoa que compra um produto pensando que era outra coisa, que não entende como um Banco funciona, que pede um prato num restaurante e se horroriza quando ele é servido, que vai para o exterior e se assombra porque lá não falam o seu idioma, que destrói um aparelho por não fazer idéia de como ele é usado, que não sabe pôr o cinto de segurança no avião...


Esta página no link abaixo enumera algumas dessas mancadas. Muitas delas inadmissíveis. Outras, eu próprio poderia cometer por distração, ou por burrice mesmo. (Eu não sei trocar uma resistência de chuveiro, não sei pregar um botão, não sei andar de bicicleta, não sei plugar os periféricos do meu computador – tenho que pedir a alguém.)

(As fotos que ilustram este texto são dessa página.)

Vejo nos “Comentários Da Internet” a esse tipo de páginas (já li dezenas delas) um ranço de desprezo, quase de ódio, pelas pessoas burras. Um fato bobo que poderia ser apenas engraçado acaba gerando um sentimento diferente, frases tipo “ é bom que morra mesmo”, etc.

Lembro das comédias do cinema mudo, das trapalhadas em que se metiam O Gordo e O Magro, ou Buster Keaton, ou mesmo Os Três Patetas. Eles praticavam bobagens absurdas o tempo inteiro, demoliam casas, desconjuntavam automóveis, infernizavam jantares, pela sua absoluta incapacidade de fazer funcionar a coisa mais simples.


O cinema vinha abaixo de risadas, mas eu sempre senti nessas risadas um viés de simpatia. Pode ser projeção emocional minha, que tenho um gene samaritano. Mas eu sentia naquele cinema cheio de adultos e de crianças ums simpatia instintiva por aqueles desastrados. Um riso sem desprezo. Como quando nos divertimos ao ver um filho pequeno, um neto, tentando uma pequena façanha motora e não conseguindo, ou atrapalhando palavras que ainda não conhece direito. Rimos daquilo, mas é um riso de compreensão, de acolhimento afetivo, não de menosprezo.

Não vou me deter aqui nesse desprezo, que é o vinagre universal dos nossos tempos. Quero falar mesmo é da burrice, se é burrice a palavra adequada.

Talvez a palavra mais certa seja justamente “inadequação”. As pessoas vivem em mundos sociais diferentes, e quando passam de um para o outro faltam-lhes as informações necessárias para se adequarem ao outro. Quando saem da sua “bolha”, da sua “zona de conforto”, nada funciona do mesmo jeito, e o mundo não as preparou para isso. Preparou para que vivessem atrás de cancelas, de grades, de rotinas.


Essas pessoas “burras” irão mesmo se auto-extinguir, como sugerem os gozadores por trás do Darwin Award? Não acredito. E lembro aqui um dos meus filmes preferidos, Idiocracia (Mike Judge, 2006).

A premissa de Idiocracia, exposta logo nas sequências iniciais, é de que o mundo do futuro vai ser inteiramente povoado por idiotas, pela simples razão de que as “pessoas inteligentes” se programam para ter 1 ou 2 filhos, e os idiotas continuam tendo dúzias. O filme é uma comédia escrachada, e não há que exigir verossimilhança científica numa proposta como essa. Idiocracia é apenas uma fábula escrachada, no estilo Monty Python.

O problema é outro. Esse mundo do ano 2505 é asustadoramente parecido com o de hoje, porque os absurdos que vemos na tela são meras extrapolações de coisas que acompanhamos em nosso dia-a-dia. Cada alfinetada ali dói pra caramba. Há um escracho contínuo com a publicidade, a televisão, as corporações, os governos, a ciência, a política, o show-business... Nada escapa. Ninguém sobrevive.

A gente tem a tentação de voltar àquelas queixas apocalípticas de sempre – falhamos como civilização, o projeto da Humanidade deu com os burros nágua, etc.

Nesse mundo futuro, no entanto, a gente percebe que a burrice não é um defeito pessoal, uma limitação das pessoas, algo como um ouvido surdo ou um olho vesgo. A burrice social é o resultado de séculos de emburrecimento planejado. Um processo que em algum momento alguém achou que seria necessário – para manter as massas sob controle. Multidões burras, trabalhando feito escravos e se dopando com produtos de má qualidade disputados a tapa.

Só que havia uma porção de variáveis não-previstas, e o sistema que programou a burrice foi engolido e digerido por ela. A burrice social virou um vírus incontrolável. O Sistema deu sem querer um tiro no pé, que gangrenou.

O futuro com que Idiocracia nos ameaça é o prolongamento lógico do sistema atual, no qual se supõe que as pessoas serão capazes de passar mais mil anos trabalhando 12 horas por dia, comendo cheetos com Coca-Cola e votando em quem lhes dizem para votar. Não vão. Como se diz por aí, é mais fácil destruir um planeta do que acabar com o capitalismo. Ou evitar que ele se suicide.











sábado, 22 de fevereiro de 2020

4552) Luis Buñuel, 120 anos (22.2.2020)



Luis Buñuel (22.2.1900 - 1983) 


“É incontestável que [os norte-americanos] possuem o senso do cinema a um grau muito mais elevado que nós.” (1927) (Kyrou, 81)



“De todos  os seres vivos que encontrei, Federico [Garcia Lorca] é o primeiro. Não falo nem do seu teatro nem da sua poesia, falo dele. A obra-prima era ele, parece-me mesmo difícil imaginar alguém parecido.” (Suspiro, 171)


(Lorca e Buñuel)

“Sou materialista, no entanto isto não quer dizer que recuse a imaginação, a fantasia, ou mesmo a existência de certas coisas inexplicáveis. Racionalmente, não acredito que um homem que perdeu as mãos possa fazê-las crescer de novo, mas posso agir como se acreditasse, pois o que me interessa é o que acontece depois.” (Objects, 183)



“Pessoalmente, não gosto de música nos filmes, acho que é um elemento covarde, uma espécie de truque, salvo em certos casos, naturalmente. (...) Considero-a como um elemento parasita, que serve, principalmente, para valorizar cenas que não têm, aliás, nenhum interesse cinematográfico.” (Kyrou, 111)



“Um refugiado chileno deu do México uma definição patusca: ‘É um país fascista atenuado pela corrupção’”. (Suspiro, 232)



“Na cena da sala em El, quando o protagonista recebe a mulher que se tornará sua esposa, inseri um meio-close-up de uma mulher que na verdade pertencia a uma sequência anterior, com outro cenário e outro figurino. Ninguém jamais percebeu.” (Objects, 51)



« [Numa entrevista em 1956] – Vai filmar La Femme et le Pantin [o livro que resultou em Este Obscuro Objeto de Desejo]?  – Sim, quando tiver encontrado uma atriz capaz de fazer o papel principal: uma mocinha sensual, virginal e demoníaca.” (É o papel que no filme, de 1977, foi interpretado por duas atrizes.) (Kyrou, 98)



“O mistério, elemento essencial de toda obra de arte, falta em geral nos filmes. Autores, realizadores e produtores têm grande cuidado em não perturbar nossa tranquilidade, deixando fechada a maravilhosa janela da tela sobre o mundo libertador da poesia.” (Kyrou, 86)


(Um Cão Andaluz)

“As heresias me interessam assim como todos os inconformismos do espírito humano me interessam, seja na religião, na cultura ou na política. Um grupo cria uma doutrina, e milhares de indivíduos aderem a ela. Então, alguns dissidentes começam a surgir, pessoas que acreditam em tudo que aquela religião prega, exceto um ou dois detalhes. São punidos, são expulsos do grupo, perseguidos, e tem início então uma porção de guerras sectárias nas quais as pessoas cujas crenças diferem apenas um pouquinho tornam-se mais odiadas do que o inimigo comum.” (Objects, 192)


(Belle de Jour)

“A digressão é a minha maneira natural de contar, um pouco idêntica ao romance picaresco espanhol. (...) Começo uma história, abandono-a imediatamente para fazer um parêntesis, que me parece mais atraente, e depois esqueço o meu ponto de partida e fico perdido.” (Suspiro, 181)



“É precisamente esta a natureza do surrealismo: nem tudo precisa ser surrealista num quadro de um pintor surrealista, basta um pequeno detalhe, que pela lógica não podia estar presente ali.” (Objects, 109)


(Max Ernst)

“Em dezenove ou vinte filmes, tenho três ou quatro francamente maus, mas em nenhum deles fraudei meu código moral. Ter um código é pueril para muitas pessoas, mas para mim não. Sou contra a moral convencional, os fantasmas tradicionais, contra o sentimentalismo, contra toda essa sujeira moral da sociedade introduzida no sentimentalismo. Evidentemente, fiz maus filmes, mas sempre moralmente dignos.” (Kyrou, 103)



“No México, fui um dia convidado a visitar as instalações [de uma escola de cinema]. Apresentaram-me quatro ou cinco professores, entre eles, um jovem corretamente vestido, que corava quando falava. Pergunto-lhe o que ensina e ele responde-me: ‘A semiologia da imagem clônica’. Por minha vontade, tê-lo-ia assassinado.” (Suspiro, 243)



“Os sonhos são uma continuação da realidade, da vida desperta. Num filme eles só têm valor se não anunciarmos: ‘Isto é um sonho’. Porque então o espectador dirá: ‘Ah, eis um sonho. Não é algo importante.’ O público fica desapontado e o filme perde seu mistério, seu poder de perturbar as pessoas.” (Objects, 212)



“Passei horas deliciosas nos bares. O bar é para mim um local de meditação e recolhimento sem o qual a vida é inconcebível.” (Suspiro, 45)


(com sua esposa, Jeanne)




Fontes:

Objects of Desire – Conversations with Luis Bunuel, José de la Colina & Tomás Pérez Turrent, New York, Marsilio, 1992.

O Meu Último Suspiro, Luis Buñuel, Lisboa, Distri, s/d.

Luis Buñuel, Ado Kyrou, Rio, Civilização Brasileira, 1966











quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

4551) Algumas notas sobre "O Irlandês" (19.2.2020)





O Irlandês (“The Irishman”, 2019), de Martin Scorsese, é como se fosse o líquido de um mesmo barril servindo para encher uma garrafa nova. Quem já viu filmes de gangster envolvendo os nomes de Scorsese, De Niro, Pesci, Pascino, Keitel e mais alguns outros pode ter certeza de que vai ver “um pouco mais daquilo mesmo”.

É o cinemão de Hollywood naquilo que tem de mais eficaz, e eu vi de uma assentada só, com pequenas paradas para pesquisar na Wikipedia nomes e fatos. É um resumo de décadas da vida política e da crônica policial dos EUA. Não senti o tempo passar. O filme não é longo. Poderia ser reduzido? Sim. Qualquer filme pode ser reduzido e ganhar mais tensão narrativa. Qualquer um, inclusive A Saída dos Operários das Fábricas Lumière.

A primeira coisa que me chamou a atenção nos primeiros vinte minutos, foi que o músico Robbie Robertson (“The Band”) escolheu dois baiões para caracterizar o espírito dos anos 1950 nos EUA. Ouvimos ao fundo, em cenas de restaurante ou de loja, “El Negro Zumbón”, conhecido aqui no Brasil como “Baião de Anna”, que é, curiosamente, um baião italiano.  Rômulo e Romero Azevedo já tinham me mostrado na trilha sonora de Os Boas Vidas (1953) de Fellini.

O baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira varreu os anos 1950 de ponta a ponta, tendo sido, como nesse exemplo, não só tocado mas imitado na Europa. No filme “Anna” (1951), de Alberto Lattuada, é Silvana Mangano, cheia de charme e de “el bayón”, que canta “El Negro Zumbón” numa cena digna das cenas de boate nas chanchadas da Atlântida.


O outro baião de O Irlandês é o “Delicado”, de Waldir Azevedo, que a orquestra de Percy Faith, num arranjo muito bom, levou ao primeiro lugar da parada musical norte-americana:

Scorsese é um diretor de “cinemão” e não abre mão disso. O filme talvez tenha precisado de 3 horas e tanto porque, ao contrário de outros thrillers seus, é baseado em personagens reais. Em casos assim, o roteirista e o diretor consultam estantes inteiras de livros de referência e em geral sentem-se na obrigação de fazer ressalvas e esclarecimentos sobre fatos políticos reais: a campanha de Kennedy, o escândalo de Watergate, a invasão frustrada da Baía dos Porcos, o sumiço de Jimmy Hoffa...

Lidar com fatos extensamente discutidos e documentados sempre aumenta um roteiro. Numa história inventada, foi isso e pronto. Numa história real, a cada segundo alguém ergue o braço questionando o que viu na tela.

Jimmy Hoffa, por exemplo, é um crime insolúvel, um dos desaparecimentos mais famosos dos EUA, juntamente com os de Ambrose Bierce, o Juiz Crater, e outros. A versão do filme é aceitável: foi morto e cremado às escondidas, e fim. Uma adaptação dirigida por Danny DeVito e escrita por David Mamet, em 1992, Hoffa, sugere um final igualmente plausível para o personagem, interpretado por Jack Nicholson.

Outro gangster notório mostrado no filme é Joey Gallo, abatido a tiros de revólver num pequeno restaurante onde comemorava seu aniversário num pequeno grupo. Ao ser alvejado, Gallo correu para a rua, para desviar o tiroteio da mesa onde estava a família. Gallo mereceu uma canção de Bob Dylan, escrita com Jacques Levy, “Joey” (no álbum Desire, 1976).

A canção é esta:

Desire foi um álbum em que Dylan voltou a fazer canções contextualmente políticas: “Hurricane”, defendendo um boxeador acusado de assassinato, e “Joey”, celebrando esse mafioso, em versos que lhe renderam muitas críticas. Dylan chegou a afirmar que os versos eram todos de seu parceiro musical na época, Jacques Levy, cujas letras celebravam seus próprios heróis, que nem sempre Dylan admirava. Outro exemplo disso é “Catfish”, em homenagem a um craque do beisebol, gravada por Dylan nessa mesma época mas só lançada em 1991.

O filme não tem novidades, como também não tem defeitos que me incomodem. Talvez não tenha a movimentação de, digamos, Os Intocáveis de Brian de Palma. Mas apesar de Scorsese ser bom diretor de cenas de ação ele é muitas vezes, em filmes até bem diferentes entre si, um acompanhador de opções feitas por alguns personagens ao longo da vida. Ele acompanha e mostra como esses destinos ficam muitas vezes a um fio da destruição, e quando menos esperamos o herói está calvo, octogenário, uma cadeira de rodas numa casa de repouso.

O cinema deu aos mafiosos um charme que eles talvez nunca tenham tido, por isso eles talvez convivam sem muita tensão com essas obras que os apontam como criminosos frios, cheios de cobiça. Os mafiosos de Manhattan tentam ter estilo, tentam apresentar lendas pessoais e narrativas próprias que lhes deem uma dimensão maior. Nisso, criminosos acabam reproduzindo os rituais e as etiquetas dos cidadãos de bem. Criminosos gostam de se sentir importantes, gostam de banquetes de homenagem, gostam de posses e formaturas, da concessão de títulos, gostam das cerimônias de aceitação mútua entre poderes que disputam uma área. Jantares no capricho, discursos, medalhas de honra-ao-mérito, placas comemorativas, elogios incessantes, tudo isso cimentando publicamente a foto-da-nuvem dessa turbulência permanente que é a luta pelo poder, pelo comércio ilegal, pelos mercados locais.

Gente que vive para o poder gosta de cultivar esses hábitos, para impressionar círculos concêntricos da opinião pública: festanças, boca livre, uma orquestra, um mafioso septuagenário cantando “Al Di La”. Tudo isso ajuda a tecer os equilíbrios estratégicos, as convivências no-limite, as ameaças constantes, as alianças de olhos bem abertos.

Numa das últimas cenas, alguns homens estão num carro em movimento pela cidade. Um deles avisa que o banco de trás está molhado porque ele teve que ir buscar um peixe. Isso desencadeia entre eles uma discussão que gira em círculos, e que ninguém consegue fechar. Que peixe era? Como assim, comprou um peixe sem saber o que era? Era para um amigo? Que amigo? Seu amigo entende de peixe?

Bandidos, sejam eles milicianos, mafiosos, yakuzeiros, ou membros da Strange Magnificence, vivem num clima permanente de paranóia, de desconfiança. Veem uma ameaça em cada objeto, em cada frase, em cada pessoa que surge numa esquina. Bandido vive da traição (convidar um cara para um encontro secreto de líderes, com tudo já pronto para a execução sumária, por exemplo) e quem disso usa disso cuida. Que mancha é essa? Peixe? Que peixe?

O poema de Bertolt Brecht, “A Máscara do Mal”, diz (na tradução de André Vallias):

Pende em minha parede um talhe japonês
máscara de um demônio maligno, dourada.
Compadecido eu vejo
as veias estufadas na testa, mostrando
como é estafante ser maligno.