quarta-feira, 24 de maio de 2017

4237) "Suje-se gordo!" (24.5.2017)





(Machado, por Fernão Campos)


É um daqueles contos-não-contos de Machado de Assis, onde ele (ou um “eu” pretextual) conta o que lhe foi contado por um amigo, no intervalo de uma peça chamada A Sentença ou o Tribunal do Júri. Esse amigo narrador diz-lhe que já presidiu júris no passado e que não gostou da experiência, citando o preceito do Evangelho: “Não queirais julgar para que não sejais julgados”.

O narrador diz, com saborosos detalhes, o que foi o julgamento de um rapaz, “um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel”. Ele comenta a atuação do advogado, do promotor, lembra que o acusado admitia o crime, apenas atribuía a uma terceira pessoa, que não quis nomear, a iniciativa e o benefício do delito, para “acudir a uma necessidade urgente”.

E conta que no júri havia um sujeito ruivo, chamado Lopes, que “parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente”. O júri condena o rapaz por onze votos contra um, mas mesmo assim o Lopes continua inquieto, “e disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos”. Não se corre tal risco, com um placar de 11x1, mas o ruivo Lopes continua indócil, e brada:

– O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

O rapaz é condenado, o tempo vai se passando, e aquela frase não sai da memória do narrador. Suje-se gordo!  A princípio ele fica embasbacado, mas logo explica a expressão: “era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada”.

E muito tempo depois nosso narrador está de novo num júri, e quem se senta no banco dos réus, agora mais magro, mas igualmente ruivo? O mesmíssimo Lopes de antes, portando o mesmo sobrenome, sendo agora acusado de “uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis”, o que nem um pouco lhe tira o sossego:

Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.

E nesse momento, vendo as esmagadoras provas acumuladas (inclusive “uma carta de Lopes que fazia evidente o crime”) o narrador é assaltado pela lembrança da famosa frase.

“Suje-se gordo!”. Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!”. Queria dizer que um homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

E o narrador machadiano, com a melancolia de sempre, relata que nem todos viram com os olhos dele os autos e os fatos: “Votaram comigo dous jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua”.

Um é condenado por um desfalque de duzentos mil réis, outro é absolvido por um golpe de cento e dez contos. Parece familiar?

A Justiça, ao contrário do que se diz, não é cega: seus olhos são tão sadios e tão afinados com a vontade que só enxergam o que querem enxergar. O próprio narrador do conto reconhece que qualquer coisa pode ser interpretada de modo diferente, dependendo de que lado do muro estejamos.

[O rapaz dos duzentos mil réis] disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena: o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

(...)

[O Lopes] ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

De fato, não importa muito o que esteja gravado nos autos ou que seja alegado por um réu. A sentença que proferimos é uma questão de identificação ou repulsa à primeira vista. Lemos ali o que já estávamos prontos para ler.

Nosso atavismo emocional e social nos empurra para o gesto instintivo de condenar uns e absolver outros, e depois dessa decisão tudo se resume a ter alguma retórica inventadora de motivos. O ruivo Lopes estava mais magro, anos depois, mas isso não o impediu de sujar-se gordo, com “a grossura da soma”, e impor respeito ao júri.

Ia esquecendo: o conto é de Relíquias de Casa Velha, de 1906.








domingo, 21 de maio de 2017

4236) "No tempo de Almirante" (21.5.2017)



Poucos caras são tão interessantes na Música Popular Brasileira da primeira metade do século 20 quanto Almirante (1908-1980), que foi cantor, compositor, produtor musical, redator e produtor de programas de rádio, grande pesquisador. Chamava-se Henrique Foreis Domingues; eu sempre pronunciava “Forêis” esse sobrenome dele, mas mudei a pronúncia ao ver esse trecho de uma carta em verso escrita para ele por Aloísio de Oliveira, então (em 1943) morando nos EUA:

(...)
Se eu soubesse mais cedo
que pra você escrever
tivesse que aparecer
um caso de compaixão
que falasse ao coração
do meu amigo Foreis,
eu já teria arranjado
teria falsificado
uma porção de Josués.

Aloísio fazia parte do Bando da Lua e estava nos EUA acompanhando Carmen Miranda, uma das grandes amigas e parceiras musicais de Almirante. Pouca coisa que aconteceu de importante na música radiofônica das décadas de 1930 em diante não teve Almirante por perto. Foi também grande parceiro (e depois biógrafo) de Noel Rosa, seu companheiro do famoso “Bando de Tangarás”.

Em 1930 Almirante compôs (com Homero Dornelas) e gravou o samba “Na Pavuna” – uma gravação histórica. Ao que se diz, foi a primeira música gravada no Brasil utilizando as percussões típicas do samba (tamborim, surdo, pandeiro, cuíca, etc.).  Nenhum produtor musical ou técnico de som da época admitia que esses instrumentos fizessem acompanhamento – era só orquestra ou instrumentação “delicada”. “Na Pavuna” foi um sucesso fenomenal, tão importante quanto o primeiro samba gravado, o “Pelo telefone” de Donga e outros.

“Na Pavuna” (gravação original):

Outros sucessos gravados por Almirante fazem parte de qualquer antologia do samba ou da marchinha brasileira:

“O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa e Kid Pepe)

“Touradas em Madri” (Braguinha e Alberto Ribeiro):

Gavião Calçudo” (Pixinguinha e Cícero de Almeida):

Sem falar nesta marchinha, que todo torcedor do Treze já cantou:

Marcha do Grande Galo” (Lamartine Babo e Paulo Barbosa):

A biografia No tempo de Almirante – uma história do Rádio e da MPB, de Sérgio Cabral, Pai (Ed. Francisco Alves, 1990) me chegou pelas mãos do parceiro musical Alfredo Del-Penho. Traz em 400 páginas um imenso material sobre esse personagem bem humorado, humano, incansável, que era chamado “A Mais Alta Patente do Rádio Brasileiro”. Almirante surgiu e cresceu com o rádio, e a ele, talvez mais do que à música, dedicou sua vida inteira, trabalhando em todas as grandes emissoras da época.

Interatividade é uma palavra que muita gente conheceu depois da Internet, mas era uma das grandes armas do rádio, que pedia insistentemente colaborações, críticas, informações, participação de todo tipo dos seus ouvintes, através do correio. Ouvintes enviavam letras, partituras musicais, recortes de jornais e revistas, para terem seus nomes citados nos programas que acompanhavam fielmente.

Almirante reuniu um espantoso arquivo de informações mandadas do Brasil inteiro para seus programas de variedades, como “Curiosidades Musicais”. Ainda em vida, ele repassou esse arquivo para o Governo Estadual, que criou com este material o atual Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro.

Numa carta de 1940 a Celestino Silveira (pág. 192-193 do livro), Almirante explica essas suas décadas de atividade:

(...) Comecei, então, a fazer o programa sobre todos os assuntos. O título a tudo permitia. Como a Nacional é uma estação de grande penetração  no nosso interior, passei a pedir colaborações dos ouvintes. Graças a isso, pude mostrar pelo Rádio belezas musicais do Brasil inteiramente desconhecidas, coisas que ninguém até hoje teve a iniciativa de fazer com a insistência com que eu faço. Foi assim que consegui fazer irradiar temas folclóricos que nunca tinham sido mostrados pelo Rádio. Cito, como exemplo, as cantigas de roda dos estados, pregões do Rio e dos estados, melodias de trabalho, cantigas e rezas para defuntos, rezas para chamar chuva, melodias de Natal e de Reis, cantigas de cegos e muitas outras. (...) Todos os meus colaboradores, desde o que me enviou a cantiga mais valiosa, até o que me informou o fato mais insignificante, sempre tiveram os seus nomes citados no programa.

Os programas sobre assuntos como o dos instrumentos exóticos (já feito) e o de pios de caça e o da música dos ruídos (ambos ainda por acabar) me fazem perder um tempo inacreditável. Basta que eu diga que o dos instrumentos rústicos tomou-me o ano inteiro. Um ano a fio reunindo elementos, um ano convocando instrumentistas curiosos, tocadores de violino de uma corda só, de flautas e clarinetas de bambu, de folhas de árvore, de lápis nos dentes e os legítimos berimbaus de cuia.

Dessa curiosidade, aliada à possibilidade de recolher e de divulgar, surgiu uma das mais interessantes amizades e parcerias de Almirante – com Luís da Câmara Cascudo, o grande folclorista natalense. À primeira vista parece uma dupla improvável, o cantor de sambas e o etnólogo livresco. Mas os dois pertenciam à mesma espécie, a do pesquisador autodidata, que recolhe informações, estuda, vasculha, pergunta, assedia, junta material, enche estantes e mais estantes de informações que não interessam a ninguém da sua época.

Cascudo, em suas raras idas ao Rio, ia ver no auditório os programas de Almirante. De volta a Natal, mandava-lhe cartas como esta, de 1964 (pág. 338-339):

(...) Desejava, Almirante, dois documentos partidos de suas garras:
a)      Uma batucada legítima. Música e letra devem ser sem interesse (?), mas estou precisando de informação limpa e clara, como você sabe dar aos peticionários jagunços do meu tope e feição provinciana.
b)      Uma embolada. Música e basta uma amostra dos versos, não todos. Apenas refrão e um versinho característico. 
Esse é o choro... Sim. Uma pergunta que tem engasgado os técnicos e proprietários do assunto. Para você, o que é que diferencia choro de samba, ou, como diz o povo, chorinho de sambinha?
Solicito que Vossa Magnificência responda esse peditório, a fim de que o solicitante não fique com os dedos no ar e a máquina aberta num indeterminado compasso de espera. No mais, querido Almirante, receba o afeto que se encerra neste peito não senil.

O rádio o tornou uma figura íntima do Brasil inteiro, uma referência de cultura popular como a televisão transformou, décadas depois, figuras como Rolando Boldrin ou Téo Azevedo. Estudiosos como Renato Almeida escreviam para consultá-lo, como nesta carta de 1940 (pág. 196):

Uma coisa que quero lhe perguntar: o que se chama ‘samba de partido alto’? E, mais uma pergunta: o choro tem três partes, quais são elas? Desculpe essas caceteações, mas você é uma das raras pessoas a quem a gente pode se dirigir no Brasil. E um pedido final: você pode mandar-me aquele sambinha da Penha, que cantou no programa de ontem? E, com os votos de um felicíssimo 1940, lhe mando um abraço muito agradecido e afetuoso.

E até um romancista do porte de Érico Verissimo, fazendo pesquisa para um romance de época, lhe escrevia em 1950 (pág. 258-259):

Tomo a liberdade de pedir-lhe uma série de informações de que estou necessitado para o segundo volume do meu romance O Tempo e o Vento – “O Retrato” – e que cobrirá o período entre 1909 e 1945.
a)      Pode dar-me o nome de algumas músicas de dança mais populares entre 1910 e 1915?
b)      E das modinhas, lundus, etc. do mesmo período?
c)       Quais os discos mais populares da famosa Casa Édison, do Rio de Janeiro?
d)      Pode fornecer-me a letra da canção “Talento e formosura”?
e)      E da cançoneta cujo estribilho é “Varre varre, minha vassourinha”?
f)       Quando começou a voga de “O luar do Sertão”?
g)      E a de “Caraboo”?

Como você compreenderá, essas coisas – danças, canções, etc. – ajudam a criar atmosfera e a marcar o tempo. Como um pobre pagamento por essa sua colaboração, estou lhe remetendo um exemplar do primeiro volume de O Tempo e o Vento – com um abraço do seu fã Érico Verissimo.

Almirante entrou na minha vida quando eu tinha cerca de 8 anos, mas não foi através da música. Foi através do seu programa radiofônico de histórias de assombração, “Incrível! Fantástico! Extraordinário!” – mas este é um assunto ao qual voltarei noutro dia.








quarta-feira, 17 de maio de 2017

4235) As invenções de Kafka (17.5.2017)



Uma biografia recente de Franz Kafka, escrita por Reiner Stach, tem o interessante título de Isto é Kafka? 99 Descobertas. Quando parecia que tudo já havia sido escrito sobre o profeta do mundo irracional do século 20, parece que Stach conseguiu desencavar um número respeitável de fatos a seu respeito.

Não devemos esquecer, também, que por motivos burocráticos e jurídicos uma parte considerável do que Kafka escreveu continua (pasmem!) inédita até hoje. Papéis que ele deixou a cargo de seu amigo Max Brod não foram publicados porque há uma kafkeana batalha judicial em torno deles. Já escrevi a respeito aqui, em “O moído de Kafka”:


Um artigo em The Paris Review sobre a biografia de Stach traz um comentário interessante. O biógrafo teria levantado informações sobre duas “invenções” de Kafka, duas idéias que ele teve para ganhar dinheiro, que explorou em conversas e cartas com amigos, mas que, por um motivo ou outro, não prosperaram.

A primeira dessas idéias ocorreu a Kafka e seu amigo Max Brod entre agosto e setembro de 1911, quando os dois viajavam pela Europa. Kafka pensou em criar um guia de viagem intitulado Billig (“Barato”), dando dicas aos viajantes a respeito de hotéis, transportes, restaurantes, pontos turísticos, etc., que era possível percorrer sem gastar muito dinheiro.

Magino eu que em 1911 fazer turismo na Europa era coisa de rico, aqueles ingleses ou alemães que viajavam de trem ou de navio levando quinze malas de roupas, como a gente vê em Morte em Veneza, nos filmes de James Ivory ou nos livros de Henry James. A idéia dos dois amigos era estender esse privilégio aos menos abonados.

Há um documento, quase todo na caligrafia de Brod, mas com a colaboração de Kafka, em papel timbrado de um hotel em Lugano (Suíça), escrito em setembro de 1911, e diz:

(...) Nossa era tão democrática já proporciona todas as condições para viagens fáceis para qualquer lugar, mas isto é algo que passa praticamente despercebido. Nossa tarefa é coletar estas informações a torná-las conhecidas de modo sistemático. (...)  Muito pouco disto aparece nos guias de viagens. (...) Nós nos dirigimos àqueles que consideram viajar algo muito caro, seja por equívoco, seja por má informação, e que se mantêm em regiões próximas de suas próprias cidades (que têm a sua beleza, mas já são demasiado conhecidas). Queremos fornecer informações sobre outros destinos que custam o mesmo que essas estações de verão, possivelmente incluindo também custos de transporte.

Eles dão algumas dicas sobre a organização dos seus possíveis Guias:

Nada de geografia minuciosa; apenas as rotas. (...) Indicamos apenas um hotel, e outros em ordem descendente, para o caso de aquele estar lotado. (...) [Na caligrafia de Kafka:] Não é para viajantes nem muito rápidos nem muito lentos, mas para um grupo mediano. Desvios são mais fáceis, uma vez que é sempre possível fazer adições num plano bastante preciso. (...)

Outrs dicas registradas pelos dois, em anotações rápidas:

Não temer a moeda errada. Concertos gratuitos. Dias mais baratos (p. ex., galerias de arte) no fim de viagens mais caras. Onde conseguir ingressos grátis como as pessoas locais. Navios a vapor, segunda classe. Não temer a terceira classe na Itália. Cor local. Reforma dos mapas do país e da cidade?

Era um projeto embrionário, ainda na fase de rascunho, como se vê – aquelas páginas em que a gente vai anotando tudo que se conversa, todas as pequenas idéias nascidas da troca de impressões, e que podem depois ser desenvolvidas ou não.

Infelizmente, o projeto de Brod e Kafka – que seria algo como um Europa a 10 dólares por dia daquela época – nunca se concretizou.

A segunda invenção não chega a ser invenção, apenas a anotação rápida de uma idéia; mas seu interesse é por ser algo um pouco mais ficção científica. Em 1913, Kafka teve a idéia da criação de um mecanismo reunindo duas tecnologias que bem ou mal já existiam: o telefone e a máquina de ditar (uma espécie de gravador), também chamada “parlógrafo”.

O escritor certamente teve sua curiosidade despertada devido ao fato de sua noiva na época, Felicia Bauer, trabalhar na filial de Berlim da empresa Carl Lindstrom AG, “onde ela estava encarregada da divulgação do parlógrafo, uma máquina de ditar. Bauer inclusive apareceu num filme de propaganda que Lindstrom produziu e distribuiu.”  No filme, ela é vista durante alguns segundos manipulando um parlógrafo e uma máquina de escrever.

Dizia Franz, escrevendo par a noiva:

A invenção de um cruzamento entre o telefone e o parlógrafo certamente não deve ser difícil. Tenho certeza que depois de amanhã você vai me comunicar que o projeto já alcançou sucesso. Claro que isto teria um impacto enorme nos escritórios editoriais, agências de notícias, etc.

Mais difícil, mas também possível, sem dúvida, seria uma combinação entre o gramofone e o telefone. Mais difícil porque a gente não entende direito o que diz um gramofone, e um parlógrafo não pode pedir a ele que fale com mais clareza. Uma combinação entre o gramofone e o telefone também não teria grande significação de um modo geral, mas para pessoas como eu, que receiam o telefone, seria um alívio. O problema é que pessoas como eu temem também o gramofone, de modo que não seria uma grande ajuda.

A propósito, seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si. Mas, minha querida, a combinação do parlógrafo com o telefone tem absolutamente que ser inventada.

O artigo informa que isto de fato já tinha acontecido, com o “Telefonógrafo” patenteado por Ernest O. Kumberg em 1900, invenção que não foi pra frente por ser cara e trabalhosa.

Aqui, o artigo da Paris Review:


Mas para quem lê Kafka fica uma pequena nostalgia de imaginar como ele poderia ter explorado literariamente, num dos seus microcontos de página e meia, esta preciosa idéia como ponto de partida:


(...) seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si.







sábado, 13 de maio de 2017

4234) Ser mãe (13.5.2017)



(Ela, "a Marquesa")

Ser mãe é ter na parede um quadro com a foto do Padre Cícero e enfiar na moldura, num ritual protetor, dezenas de retratos 3x4 de pessoas conhecidas, parentes ou não, crentes ou não.

Ser mãe é gostar de escutar Agostinho dos Santos, Capiba, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Gal Costa, Altemar Dutra.

Ser mãe é botar água-pra-café no fogo às duas da manhã.

Ser mãe é ler escondido as cartas que o filho recebe das namoradas e dias depois abordar um assunto qualquer como se aquilo tivesse caído do céu no seu colo.

Ser mãe é dizer pro malcriado: “Ah, tá prendendo o choro? Pois vai apanhar até chorar”, e dizer depois: “Agora vai apanhar até parar”.

Ser mãe é contar a história de quando era garota na fazenda, e a porteira do curral caiu por cima dela enterrando-a na lama, e as vacas passaram por cima, e quando arrancaram a porteira e a tiraram dali ela estava inteira e viva, mas passou uma semana tirando terra do caroço do olho.

Ser mãe é receber um poema pelo correio e responder em versos.

Ser mãe é gostar de ler romances de capa-e-espada de Michel Zevaco, e livros sobre discos voadores, os Exilados de Capela e a vida no planeta Marte.

Ser mãe é iniciar a noite com um olho na novela e outro na sopa no fogão.

Ser mãe é passar alguns anos da vida rodando de ônibus por cidades pequenas do Nordeste vendendo e doando botijões de uma infusão vegetal que é tiro-e-queda contra o câncer.

Ser mãe é perder uma hora antes de ir dormir amarrando um pano com Neocid no cabelo de um sujeito que se recusa a cortá-lo porque o cabelo faz parte da revolução mundial.

Ser mãe é ganhar de presente uma garrafa de Ballantine, agradecer, guardar no armário de bebidas, e ir lá dentro tomar uma dose de Natu Nobilis.

Ser mãe é repetir uma recomendação qualquer nunca menos de três ou quatro vezes, não importa quantas vezes o resignado interlocutor diga: “Sim, eu já sei”.

Ser mãe é saber preparar orelha-de-pau, doce de leite com cravo, imbuzada, gemada com farinha e açúcar, pão torrado com nata.

Ser mãe é ir pro Céu e não voltar pra puxar o pé do filho ateu durante o sono (conforme ameaçado), porque o bichinho está tão cansado, passou a noite escrevendo aquelas coisas que só ele entende.







terça-feira, 9 de maio de 2017

4233) O Mote Flutuante no repente cubano (9.5.2017)




Poucas coisas são tão universais na poesia popular das Américas quanto o esquema de rima da décima. A boa e velha décima dos cantadores de viola nordestinos não é só deles. É de toda a América hispânica.

Já vi exemplos de canções no formato de décimas na poesia da Argentina, do Chile, do Peru, do Uruguai, de todo canto.

O exemplo que sempre cito é a canção “Volver a los 17”, gravada por Milton Nascimento e Mercedes Sosa.

Gravação original:

Para que fique bem claro: a décima que falo é a estrofe de dez versos onde o primeiro rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto e o sétimo com o décimo, e o oitavo com o nono. Ou, de acordo com a notação tradicional, onde cada letra representa a posição de uma das rimas: A B B A A C C D D C.

É a décima do Século de Ouro da poesia espanhola (entre os séculos 16 e 17). É a mesma décima popularizada no Brasil por Gregório de Matos (1636-1696), o “Boca do Inferno” da Bahia.

Entre nós, a décima serve entre outras coisas para glosar motes, que são versos fornecidos pelo público. O mais comum é que o mote seja de 1 ou de 2 linhas, que irão constituir o final da décima (a linha 10 ou as linhas 9 e 10, respectivamente). Ou seja: o público sugere um final para a décima, e a gente faz os versos restantes, concluindo com o mote que o público forneceu.

Em Cuba os poetas chamam o mote de “pie forzado”, que quer dizer “pé forçado”, ou “pé obrigatório”. Tanto lá como aqui, “pé” é sinônimo de “linha”. Nossos cantadores cantam o “8 pés a quadrão” e o “10 pés a quadrão”, que são estrofes, respectivamente, de oito e de dez linhas.

“Pie forzado” = “linha obrigatória”. É o mote: a linha (ou linhas) que o público fornece, e que o cantador é forçado a incluir no seu improviso.

Vi recentemente uma menção a uma variante curiosa, algo que já tinha me ocorrido usar. Eles o chamam de “pie forzado móvil”, e que seria entre nós algo como “mote flutuante”, sem posição fixa, ou pelo menos, sem a mesma posição o tempo todo.

Suponhamos que o público dá um mote de uma linha: “nas quebradas do Sertão”. Ambos os contendores terão que incluir essa linha em suas décimas improvisadas, mas cada vez numa posição mais à frente.

O primeiro cantador usa o mote como a primeira linha, e diz:

Nas quebradas do sertão
eu vejo tanto vaqueiro
montar cavalo ligeiro
pra perseguir barbatão;
vejo vaqueiro e patrão
chorando a perda do gado
quando o poço está secado
pelo sol que tudo mata,
e a vida se torna ingrata
pro dono e pro empregado.

O segundo deve fazer sua décima colocando o “mote flutuante” na segunda linha:

Mas eu vejo a alegria
nas quebradas do Sertão
quando pipoca o trovão
por cima da serrania;
cai a chuva, quente ou fria,
mesmo assim abençoada
enquanto o “pai da coalhada”
estremece a serra inteira,
e o rio faz cachoeira
pela barranca inclinada.

O primeiro cantador, agora, tem que seguir a ordem e usar o mote flutuante como a terceira linha:

Todo tipo de paisagem
se vê, porque todos são,
nas quebradas do Sertão
essências da nossa imagem.
Nem ilusão nem miragem;
o Sertão tudo comporta
desde a Natureza morta
até a paisagem viva
e uma gente que é altiva
com a seca batendo à porta.

E assim por diante, até que a linha do mote tenha percorrido todas as dez posições, “descendo” ao longo da estrofe.

No saite do repentista Alexis Díaz Pimenta, colhi um depoimento datado de 2012 do qual destaco este trecho (“controversia”, entre os repentistas cubanos, é a nossa “peleja” ou “desafio”):

Normalmente, las competencias de repentismo en Cuba están organizadas en función de las controversias, la variante más conocida y popular de la improvisación poética de la isla. No obstante, en todas las competencias hay también pies forzados, esa modalidad en que el poeta está obligado a improvisar sus décimas y terminarlas con versos ajenos. Las controversias suelen tener una extensión de 10 ó 14 décimas (5 ó 7 décimas por repentista) y al final de cada controversia cada poeta canta 1 ó 2 pies forzados. Esas son las reglas generales. (…)

Tanto en el Primer como en el Segundo Campeonato Mundial de Pies Forzados una de las grandes sorpresas del evento, fue la controversia con pie forzado móvil, un tipo de controversia que, creemos, también llegó para quedarse. Expliquémosla.

Se selecciona un pie forzado “móvil” de la lista general. Una vez escogido el pie forzado, cada poeta debe improvisar una décima usando el pie en un verso distinto, en grado descendiente, del 1 al 10. 

Es decir, el poeta A utiliza el pie forzado en el verso 1; el poeta B, en el verso 2; el A, en el 3; el B en el 4; el A en el 5; el B, en el 6; el A en el 7; el B en el 8; el A en el 9; y el B en el 10.

El esquema de la controversia quedaría así:

Poeta A........pie forzado.......... verso 1
Poeta B …....pie forzado......... verso 2
Poeta A …....pie forzado..........verso 3
Poeta B........pie forzado..........verso 4
Poeta A …....pie forzado..........verso 5
Poeta B …....pie forzado..........verso 6
Poeta A …....pie forzado..........verso 7
Poeta B …....pie forzado..........verso 8
Poeta A …..pie forzado............verso 9
Poeta B …..pie forzado............verso 10


O “mote flutuante” poderia se constituir numa modalidade interessante, se não para a cantoria de viola, pelo menos para as “mesas de glosas” ou “rodas de glosas” que atualmente andam tão em voga no Sertão. O desafio podia ser feito entre dois improvisadores, com um usando o mote nas linhas 1, 3, 5, 7 e 9, e o outro, intercaladamente, nas linhas 2, 4, 6, 8 e 10.  Ou então poderíamos ter, quando há uma mesa com dez glosadores, o que não é raro, o mote passando de um em um e percorrendo a décima até o fim.

É um tipo de inovação que, para mim, está totalmente de acordo com o espírito da cantoria. Nossos motes variam desde o mote de uma linha apenas, no final, até duas linhas (a 9 e a 10) ou então, num modelo aliás muito usado no Rio Grande do Norte, o mote de duas linhas que aparecem nas posições 4 e 10.

O fato do mote se deslocar ao longo da estrofe requer um cuidado adicional: o mote tem que ser um tipo de frase que possa aparecer no começo, no meio e no fim de uma frase maior, para que os improvisadores possam incluí-lo no seu discurso sem forçar a barra. O exemplo que escolhi, “nas quebradas do sertão”, é isto: uma expressão sugestiva, meio que completa em si mesma, um segmento meio isolado, que não exige necessariamente um preâmbulo nem um complemento.







sexta-feira, 5 de maio de 2017

4232) As Formas Simples (5.5.2017)



Surfando pelos saites de revistas literárias encontrei um artigo da Los Angeles Review of Books, assinado por Marta Figlerowicz, em que ela assinala e comenta o fato de somente agora, 87 anos após sua publicação original em 1930, ter saído a primeira tradução para o inglês do livro Formas Simples de André Jolles (tradução de Peter J. Schwartz, apresentação de Fredric Jameson).

Formas Simples saiu no Brasil nos anos 1970, pela Editora Cultrix, em tradução de Álvaro Cabral. É um livro em que o autor estuda aquilo que poderíamos chamar de gêneros literários primitivos (no sentido cronológico, não como juízo de valor), ou as formas de contar histórias (e de compactar significados) em fórmulas verbais de pequena extensão.

As “formas simples” estudadas por Jolles eram: a Legenda, a Saga, o Mito, a Adivinha, o Ditado, o Caso, o Memorável, o Conto, o Chiste.

Comentários: “Legenda” me parece ser o mesmo que lenda. “Adivinha” é o que no Nordeste chamamos de “adivinhação”, a velha fórmula do “O que é, o que é?”.  O Ditado me parece ser um termo abrangente que inclui provérbios, aforismos, anexins, etc.  O “Caso” é o que por distorção fonética grande parte do Brasil chama de “cáuso”, aqueles pequenos episódios exemplares ou pitorescos, típicos das zonas rurais.

Acho que o “Conto” não corresponde ao gênero literário a que damos o mesmo nome, porque as formas estudadas por Jolles são formas anônimas, e o nosso “conto” é uma produção individual, assinada, autoral.  O “Chiste” (“joke” em inglês) é sempre um termo impreciso, que pode corresponder a “piada”, “anedota” ou ao mero trocadilho (“pun”), como foi estudado por Freud em O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente.

Senti uma ponta de vaidade quando vi esse artigo da LARB, pensando que desta vez chegamos antes dos EUA. Porque a gente lia esse livro de Jolles em Campina Grande nos anos 1970 e eu sempre imaginei que ele fosse um desses clássicos como a Morfologia do Conto de Vladimir Propp. Um desses livros que todo mundo conhece, mesmo que nem todo mundo tenha lido.

O estruturalismo campeou na teoria brasileira dessa época em diante, para o bem e para o mal. Trouxe um monte de coisas boas, porque ia direto ao texto, às unidades básicas do texto, à matéria-prima verbal das histórias. Por outro lado, avançou demais, e cegamente, nessa direção, chegando a um ponto em que a gente era induzido a pensar que o mérito literário do poema tal de Manuel Bandeira se devia à predominância de consoantes fricativas e orações subordinadas.

Como eu sou mais escritor do que crítico, prefiro raciocinar em termos de exemplos, em vez de fórmulas. (Embora a invenção de fórmulas seja um dos meus passatempos mais deleitáveis.)  Dos livros dessa época guardo também a lembrança de O Pensamento Selvagem de Lévi-Strauss, onde ele falava da “ciência do concreto” de alguns povos ditos primitivos.

A literatura, para mim, é uma ciência do concreto: conta-se a história de uma pessoa para que um milhão de pessoas encontrem nela um milhão de diferentes ressonâncias. Um único objeto produzindo um milhão de reflexos, nenhum deles igual aos outros. A arte é uma ciência do concreto. Acho que era Alberto Cavalcanti, o cineasta, que dizia: “Você pode escrever um tratado sociológico sobre os Correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta.”

As “formas simples” de Jolles têm tudo a ver para um estudo histórico e evolutivo de formas essenciais da nossa literatura oral: o romanceiro ibérico, a literatura de cordel. Todas ou quase todas essas formas desaguaram na nossa poesia popular.

São estruturas repetitivas que alguém pode resumir em uma dúzia de páginas (como Jolles faz), mas que são mais bem entendidas através de um conhecimento maciço, uma absorção constante e numerosa, que aos poucos vai deixando claras as linhas estruturais daquilo. Como dizia o professor Raymond Cantel: “O cordel é uma literatura quantitativa. Não se pode saber o que ele é lendo apenas uma meia dúzia de folhetos. É preciso ler muitas centenas para perceber o que cada folheto está dizendo”.

Acho que o livro de Jolles, que os universitários norte-americanos estão conhecendo agora, foi importante para muita gente da minha geração estudar com olhos mais atentos as “estruturas narrativas” (olha aí Tzvetan Todorov botando a cabeça de fora), as formas de contar, o modo como as próprias histórias parecem nos obrigar a contá-las desta ou daquela maneira.

Era um livro que se lia (ou que eu, pelo menos, li) em paralelo com outras abordagens de natureza diferente, mas que se complementavam. Como A Linguagem Esquecida de Erich Fromm, que falava sobre sonhos e linguagem simbólica; como A Dimensão Simbólica de Monique Augras, que cobria um território semelhante; como O Estranho (“The Uncanny”) e O Chiste de Freud, que naquele tempo eram difíceis de obter, e que acho que acabei achando em espanhol (em português só havia de Freud uma coleção encadernada que custava os olhos da cara).

Dizem que agora no século 21 a arte de contar histórias está voltando com força total. Impulsionada pelo crescimento do cinema, da TV, das séries.  Deve ser verdade: nunca vi tanto manual de roteiro nas prateleiras das livrarias.  Todos são úteis, pelo menos para mim: Robert McKee, Doc Comparato, Syd Field, A Jornada do Herói, o escambau. Todos acendem uma luz nova aqui e ali.

O problema com eles é que são formalizações produzidas no interior de uma indústria extremamente competitiva, tensa, focada, especializada, onde todo mundo briga pela eficiência cada vez maior na contação de um tipo só de história: o que é capaz de levar dezenas de milhões de pessoas a comprar um ingresso ou ligar um aparelho para ver aquilo.

O livro de Jolles aborda formas de contar ou de “mostrar” que também atingiram dezenas de milhões de pessoas, com a diferença de que o fizeram no transcorrer de milhares de anos. É uma outra maneira de enxergar a mesma coisa. Ajuda a afastar nossos olhos do momento presente (que sempre enxergamos palmo-em-cima) e ver a arte da narrativa em seu desenho ao longo de milênios.







terça-feira, 2 de maio de 2017

4231) Descoberto um precursor do cordel nordestino (2.5.2017)






“Parem as máquinas!..” – gritaria o editor de um jornal, naqueles filmes policiais dos anos 1940. Parem de imprimir o jornal de amanhã, que já está quase pronto! Surgiu uma notícia tão sensacional que vale a pena jogar no lixo esse Corcovado de papel agora inútil, e começar tudo de novo. O furo de reportagem vale a despesa.

Os pesquisadores cearenses Arievaldo Vianna (cordelista, biógrafo de Leandro Gomes de Barros) e Stélio Torquato Lima (cordelista, professor de Literatura na Universidade Federal do Ceará) anunciam agora uma descoberta que vai fazer reescrever boa parte das histórias da literatura de cordel (ou Romanceiro Popular Nordestino, como gostava de chamar Ariano Suassuna).

Todos nós que estudamos o assunto consideramos que o primeiro a escrever e publicar folhetos de feira no Nordeste foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), e que o teria feito a partir de meados da década de 1890.  Fala-se também no grande poeta Silvino Pirauá de Lima, mas ao que parece não há folhetos seus, impressos, que comprovem atividade editorial nesse período.

Agora, Arievaldo e Stelio trazem a figura de Santaninha, poeta popular, recitador, rabequeiro, nascido em Touros (RN), criado em Fortaleza, e que teve uma parte importante de sua carreira poética no Rio de Janeiro. A pesquisa está no recém-lançado Santaninha – Um Poeta Popular na Capital do Império (Fortaleza: Editora IMEPH, 2017).

Por ter publicado no Rio, e não no Nordeste, Santaninha foi sempre um nome obscuro. Os cronistas cariocas registravam sua atividade; os autores do livro citam numerosas menções a ele e aos seus versos na imprensa da época. Mas nenhum usa o termo “cordel”, nem parece atribuir maior importância ao “pequeno poeta”, como ele se auto-denominava.

Por outro lado, a maioria dos pesquisadores de cordel devem ter feito o que eu fiz, quando me meti a estudar o assunto: procurava menções nos jornais, catálogos e almanaques das grandes capitais nordestinas, e não do Rio. E assim Santaninha não foi alcançado pelo radar.

Santaninha (João Sant’Anna de Maria, 1827-?) parece ter sido um tipo muito carismático, que cantava acompanhando-se de uma rabeca (que chamava de “Paraibinha”, “Sombrinha” ou “Profetinha”) e vendia folhetos, tanto pessoalmente quanto em pontos de venda fixos, no centro da cidade.

Já no Rio de Janeiro, eis um anúncio típico de sua atividade (Gazeta de Notícias, 5 e 16 de junho de 1881):

[Os folhetos] acham-se à venda na estação da estrada de ferro D. P. II, no quiosque do Luiz de Camões, no largo de São Francisco de Paula, na praça da Harmonia n. 31, no ponto das barcas, num quiosque em Botafogo, no ponto dos bondes e na rua do Resende n. 107.

Os primeiros registros ao seu respeito estão em jornais de Fortaleza em 1873, quando ele é descrito como “bem conhecido e popular”. Nessa época, teria possivelmente cantado para José de Alencar, que estava em visita a sua terra pesquisando para o romance O Sertanejo.

De 1881 em diante ele já aparece na imprensa carioca, anunciando vendas de livretos e até de partituras.

O cantador e cordelista Crispiniano Neto observa em seu prefácio:

[Santaninha] não tinha com quem trocar idéias sobre a Poética desse tipo de poesia do povo, pois estava deslocado no centro efervescente que partia da Serra do Teixeira e invadia o Pajeú, os Cariris e as Borboremas, forjando uma Escola Literária, a mais produtiva e mais variada de todas.

Os autores reproduzem capa de um folheto de Santaninha, do acervo da Biblioteca Nacional, impresso pela Livraria Editora Quaresma, contendo o que são talvez os seus quatro poemas mais conhecidos, publicados originalmente entre 1879-1881:

1) “Guerra do Paraguai”
2) “Imposto do vintém”
3) “O célebre chapéu de sol”
4) “A Seca do Ceará”

Os quatro poemas vêm transcritos integralmente na segunda parte do livro de Arievaldo e Stelio. São poemas em sextilhas, com todas as características que viriam a aparecer 10 ou 12 anos depois nos folhetos de Leandro Gomes de Barros. Há erros ocasionais de ortografia, de rima ou de métrica (que encontramos também em Leandro).  Mas o perfil do Romanceiro está ali, inconfundível e inegável.

Não se tem notícia certa do ano da morte do poeta, mas os autores supõem que ele teria morrido antes de 1888-1889. Sabe-se que ele manifestou (na imprensa do Rio) a intenção de voltar a sua terra natal, e não se tem notícia de obra sua sobre dois fatos como a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, sobre os quais um “poeta repórter” como ele não teria deixado de se manifestar poeticamente.

Aqui, um anúncio típico dos que ele fazia publicar na imprensa. É do jornal Monitor Campista (Campos dos Goytacazes-RJ, 4-9-1881):

O pequeno poeta João Sant’Anna de Maria, que toca e canta excelente[sic] versos ao som de sua rabeca Sombrinha, faz tenção, no hoje 4 do corrente, [de] divertir [pela] segunda vez no Hotel da Coroa, por isso faz saber ao respeitável público desta cidade que o divertimento principiará às 4 horas da tarde, e cantará outras variedades. Espera, pois, a muito digna coadjuvação do muito hospitaleiro e ilustrado povo campista. Faz ciente mais que o divertimento será no jardim do mesmo Hotel: a entrada de cada pessoa será de 500 rs. Se não chover.

E algumas sextilhas de A Seca do Ceará, que fala da seca de 1877:

Chegam os pobres arrastados
com a fome com que vêm,
pedindo esmolas aos ricos,
muitos dizem que nada têm;
responde: “Eu estou de saída
para ir pedir também”.

Nesta seca em que nós estamos,
que traz os pobres arrastados,
não pedem só as viúvas,
nem cegos, nem aleijados;
pedem os homens sadios
robustos, moços e barbados.

Não pedem só os caboclos,
negros, pardos e mulatos;
também pede gente branca
que comia em finos pratos,
já hoje come nas cuias
bravas comidas dos matos.

A publicação é da Editora Imeph, de Fortaleza: www.imeph.com.br / imeph@imeph.com.br

Santaninha foi aquilo que se costuma dizer agora “o ponto fora da curva”, um exemplo que se desvia notavelmente do comportamento mediano dos demais exemplos. Escrevia seus poemas, fazia imprimi-los e os vendia pessoalmente, cantando-os em público. Arievaldo Vianna e Stelio Torquato afirmam que lhe dão o nome de “Precursor e não de ‘Pai da Literatura de Cordel’, que julgamos ter sido merecidamente associado à figura do bardo de Pombal”.

De fato, Santaninha foi um agente isolado, embora, a partir de agora, nomes semelhantes ao seu possam surgir de novas pesquisas agora direcionadas para o ambiente de onde ele surgiu. O papel crucial de Leandro não foi apenas a escritura de folhetos (outros os escreveram antes dele), mas a ação constante e incansável que acabou deixando de ser apenas a iniciativa de um indivíduo, e sim um “processo de consagração da poesia popular como mercadoria rentável e altamente popular”.

Santaninha criou a própria obra, mas Leandro criou, com sua tenacidade e seu exemplo, gerações inteiras de – olha que ironia num país como o nosso – poetas que viveram da própria poesia.










domingo, 30 de abril de 2017

4230) "Para Belchior, com amor" (30.4.2017)




Belchior teve a coragem de dar-um-perdido, sair de fininho no meio da festa, largar o palco e deixar o microfone falando sozinho. Ninguém é obrigado a passar a vida toda rodando dentro do moedor-de-carne do show business. Tem gente que gosta e se dá bem. Tem gente que suporta sem grandes prejuízos. Tem gente que se submete porque não tem opção. E tem gente que pensa: “Eu não sou obrigado a ficar fazendo isso a vida toda.”

O primeiro disco dele, hoje pouco conhecido, era cheio de experiências meio concretistas, típicas de quem ainda bambeia entre o livro e o palco. Alucinação (1976) foi o seu primeiro disco a atingir o público, com um impacto que nunca se dissipou.

Os jovens de hoje que o escutam pela primeira vez sentem o mesmo “peso” que a minha geração sentiu há quarenta anos, porque o disco, embora seja um disco tão característico daquela época, vale para qualquer uma, pois fala de sentimentos cíclicos, de situações humanas recorrentes.

E acima de tudo é um disco que bate no ouvinte, mais do que pelos seus temas imediatos, pela surpresa daquela voz improvável (hoje mais ainda!), daqueles versos que vão fundo, daquela verdade pessoal que abre o coração na mesa e com isto ganha o coração coletivo.

Belchior evocava João Cabral (“A Palo Seco”), alfinetava os baianos, trançava numa mesma referência Edgar Allan Poe, Humberto Teixeira e Roman Jakobsson (“raven / never”), os Beatles e Zé Limeira. Era a paleta de referências de uma época em que muitas hierarquias se nivelaram e muitos cânones desceram da torre de marfim para a calçada. Um momento raro em que o Mercado, o único deus onipresente, soube ganhar dinheiro com isso.

Hoje, é praticamente zero a possibilidade de grande sucesso de um tipo de música como a que ele, com menos de 30 anos, fez tocar nas rádios de todo o Brasil. O mercado musical do Brasil encolheu. Ficou menor do que Belchior.

A notícia da morte do poeta me pegou no meio da leitura de Para Belchior com amor (Fortaleza: Miragem Editorial/Expressão Gráfica, 2017), coletânea organizada por Ricardo Kelmer, meu parceiro constante de mesas redondas e de cervejas de formatos variados no Encontro da Nova Consciência, em Campina Grande.

Kelmer reuniu contos, crônicas e pequenos ensaios assinados por Xico Sá, Gero Camilo, Ethel de Paula, Raymundo Netto, Carmélia Aragão, Ricardo Guilherme, Joan Edesson de Oliveira, José Américo Bezerra Saraiva, Ana Karla Dubiela, Cleudene Aragão, Ricardo Kelmer, Roberto Maciel, Thiago Arrais e Jeff Peixoto – catorze cearenses que revisitam suas canções preferidas na obra do bardo de Sobral, lembram episódios, mostram gratidão pelos versos que marcaram suas vidas.

O século 20 foi o Século da Canção Popular. Nunca essa forma de arte teve tanto poder quanto nos últimos cem anos. Nenhuma outra expressão artística atingiu, nesse período, tanta gente, e de forma tão variada, e com influências tão duradouras.  Primeiro, através da indústria fonográfica, depois através do rádio e da TV, depois pela indústria gigantesca dos grandes shows ao vivo, e finalmente pela Internet. Tornou-se uma experiência artística das massas (e frequentemente com alto nível estético), massas com as quais a ópera e a música erudita jamais sonharam.

Em muitos momentos desse processo, na Europa, nas Américas, no Brasil, sucesso popular e novidade estética decolaram juntas para brilhar à vista de todos. A geração de Belchior foi uma das que conseguiram essa façanha em nosso país. Façanha difícil de se repetir na indústria musical de hoje, com sua aposta pesada na fórmula banal e no clichê. Não importa. O que entrou na memória coletiva não sai mais. Os diamantes são eternos.