sexta-feira, 25 de novembro de 2016

4182) A pista do passado (25.11.2016)





Falei dias atrás sobre as histórias de viagem no Tempo onde dois fatos, em momentos diferentes do Tempo, se refletem um no outro, quando um personagem, viajando na direção do passado, encontra um objeto significativo que conhecera em sua própria época, e que de certa maneira é a razão de sua viagem.

Outro efeito empregado pelos autores dessas histórias pode ser resumido assim: alguém da nossa época viaja (mental ou fisicamente) ao Passado. Lá, interfere de alguma maneira nos acontecimentos e isso produz uma marca que poderá ser vista pelas pessoas do “presente”, da época de onde ele próprio partiu.

Um dos melhores livros de Isaac Asimov é The End of Eternity (1955) (no Brasil, O Fim da Eternidade, Editora Aleph), cuja premissa básica é a existência de uma espécie de Túnel do Tempo pelo qual um grupo de “Eternos” é capaz de acessar cada século da História. Um personagem é enviado ao passado, o ano de 1932, e por uma série de razões fica preso ali.

Os Eternos se reúnem. Sabem que estando preso no passado o explorador pode tentar mandar algum recado para eles. E começam a pesquisar as revistas da época, até que encontram um desenho de uma nuvem em forma de cogumelo (que em 1932, antes da bomba atômica, não despertaria nenhuma ressonância especial nos leitores) e a frase “All the Talk Of the Market”, que forma o acróstico A-T-O-M. É um recado, à vista de todos, mas que só poderia ser corretamente interpretado pelas pessoas do futuro.

(Segundo consta, Asimov teria visto a foto casual de uma nuvem-cogumelo (natural, não atômica) numa revista antiga, e isso lhe deu a idéia da história, plantando um viajante do Tempo no passado.)

Outro exemplo vem do conto “Uma mensagem de Charity” (“A message from Charity”, 1967, de William M. Lee), que incluí na minha antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, Rio, 2011.

Desta vez não se trata de viagem no Tempo, mas de contato telepático através do Tempo entre dois adolescentes, um garoto do século 20 e uma garota do começo do século 18, no mesmo local da Nova Inglaterra (EUA).

Charity e Peter (por mecanismos que não vale a pena questionar aqui) entram em contato telepático, leem o pensamento um dos outro, ficam amigos. Ela descreve para ele o mundo soturno em que vive, cheio de caças às bruxas; ele mostra a ela o mundo moderno (cada um consegue, numa certa medida, ver o que o outro está vendo). Eles moram exatamente no mesmo local físico, e há um rochedo, a Pedra do Urso, onde os dois costumam sentar para “conversar” mentalmente – como se fosse um local onde o sinal do celular pega melhor.

Só que, com esse moído todo, o pessoal da época de Charity começa a desconfiar do comportamento dela, alheia, distraída, aparentemente falando sozinha. Suspeitam que ela é bruxa. Ela é submetida a um julgamento onde Peter ajuda na sua defesa – no futuro ele é capaz de pesquisar na biblioteca local e descobrir informações sobre crimes praticados pelos acusadores de Charity, que os ameaça veladamente no tribunal e acaba se safando.

Mas o perigo continuia, e ela resolve cortar a ligação com Peter. Despede-se dele, e diz: “Olhe na Pedra do Urso, embaixo do queixo, do lado esquerdo”.

Peter vai lá, naquele lugar tão conhecido dele, tateia embaixo da pedra, e encontra, gravado na pedra, um coração com as iniciais deles dois.

É mais uma vez essa figura das duas pontas que se encontram; neste último caso, o detalhe mais significativo é saber que, durante todas as conversas dos dois, o sinal (em 1967, digamos) já estava gravado na pedra, três séculos antes, mas é só quando ela o revela que ele vai à procura e o encontra.

Em sua Poética, Aristóteles propõe uma figura literária chamada “anagnórise”, que é “um recurso narrativo que consiste no descobrimento por parte de uma personagem de dados essenciais de sua identidade, de entes queridos ou do entorno, ocultos para ele até então. A revelação altera a conduta da personagem e obriga-a a formar uma idéia mais exata de si mesma e do que a rodeia.” (Wikipédia).


Quando eu tiver tempo vou inventar um nome para esse instante em que duas pontas do Tempo se tocam e um personagem, ao conhecer o Passado, entende o real significado de algo que fez parte do seu Presente. 





terça-feira, 22 de novembro de 2016

4181) Ser músico (22.11.2016)





Ser músico é ser a estrela do espetáculo, chegar para passar o som às 4 da tarde e o técnico de som só aparecer uma hora depois.

Ser músico é estar numa sala ou numa mesa de bar onde todo mundo canta a plenos pulmões e se diverte a valer, e ficar olhando por cima dos ombros dos outros para enxergar a mão esquerda do cara que toca o violão.

Ser músico é esquecer um pedaço da música e ficar deprimido na festinha pós-show, mesmo que ninguém tenha percebido.

Ser músico é receber uma letra pra musicar, do cara que você mais admira, passar duas semanas compondo no capricho, e meses depois ver no disco a letra com a melodia de outro cara, e achar que tudo bem, ficou melhor assim.

Ser músico é estar acompanhando a cantora e pensando em que restaurante irão jantar depois do show.

Ser músico é viajar carregando três ou quatro “cases” de equipamento e ouvir da produção: “você é sempre o que dá mais trabalho”.

Ser músico é ficar ouvindo um trecho de canção 47 vezes até descobrir de ouvido o acorde exato daquela passagem.

Ser músico é dar o seu disco de presente a uma pessoa que o vira e revira, olha e diz: “Mas é só instrumental?...”

Ser músico é ir fazer um show num bar e não aparecer ninguém, a não ser um casal desconhecido, e você fazer o show inteiro para eles, que viram amigos seus pro resto da vida.

Ser músico é autografar o peito de uma moça na frente do namorado dela.

Ser músico é esperar dez meses e duas semanas por um cachê, e quando o depósito é feito ter vontade de ajoelhar no chão e agradecer porque fizeram mesmo.

Ser músico é diante de um teatro repleto subir no palco como um zé-ninguém e descer como um deus; ou vice-versa.

Ser músico é ouvir o terceiro sinal para entrada no palco e nesse mesmo instante ter vontade de mijar.

Ser músico é começar a tocar embaixo de vaias, insistir até as vaias diminuírem, desaparecerem, serem substituídas pelos primeiros “uau!”, ver crescerem os aplausos, sair sob ovação e dizer baixinho: “agora, né?”.

Ser músico é tocar o tempo todo de olho numa figura da platéia e depois do show vê-la aparecer meio hesitante na porta do camarim.

Ser músico é achar um cara chatíssimo e insuportável, e mudar de opinião no momento em que ele começa a tocar.

Ser músico é ensaiar vinte dias para gravar uma música de três minutos.

Ser músico é ouvir alguém dizer que daria a vida pra tocar como você, e responder: “Eu dei a minha”.








sexta-feira, 18 de novembro de 2016

4180) "Sarapalha" (18.11.2016)



(Vau da Sarapalha, com o grupo paraibano Piollin)

O terceiro conto de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, que está completando 70 anos de lançamento, acabou alcançando grandes públicos meio século depois, por vias transversas, ao servir de inspiração para uma das montagens mais bem sucedidas do teatro paraibano: Vau da Sarapalha, pelo grupo Piollin, com direção de Luiz Carlos Vasconcelos e interpretações de Everaldo Pontes, Nanego Lira, Soia Lira, Servílio de Holanda e Escurinho.

É a história de dois homens que vivem num sitiozinho entre as ruínas de um povoado extinto pela malária, à beira rio:

“O rio – que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar”.

Primo Ribeiro e Primo Argemiro passam o dia sentados, tremendo de sezão, tomando quinino, delirando. Além disso, ambos amargam a partida de Luísa, mulher de Ribeiro, que um dia partiu com um boiadeiro no trem-de-ferro. No dia em que ocorre o conto, Primo Argemiro recorda o amor secreto que tinha sentido pela mulher do outro, e depois, no meio do delírio, fala disso em voz alta. Primo Ribeiro se ofende, e o expulsa das suas terras.

O conto se resume a isso, dois homens tresvariando de cócoras, tremendo do frio da maleita e depois suando copiosamente, porque ali “a febre serve de relógio”. Em volta deles, a Natureza invencível toma conta devagarinho do que restou do sítio:

“Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – ora-pro-nobis! ora-pro-nobis! – apontou caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-de-boi e o capim-mulambo, já donos da rua, tangeram-na de volta; e nem pôde recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e com o gervão em flor.”

Essa proliferação vegetal e barroca, viva como num desenho animado, vem temperada por uma das grandes novidades que Rosa introduziu no romance regional: o olho literário urbano, informado de cultura pragmático-livresca, revelado assim como quem não quer nada, sem alarde.

As cobras dágua passam “em nado de campeonato”, um cachorro tem um “focinho cúbico”, os mosquitos fêmeas zunem “em tom de dó” e os machos “uma oitava mais baixo”. Detalhes e comparações que um regionalista tradicional, preocupado em reproduzir o espírito dos capiaus, não ousaria inserir.

O tema da ida-e-volta (“For a walk and back again”, na epígrafe do livro) perpassa praticamente todos os contos de Sagarana:



Aqui, ele está presente na ida-embora dos habitantes do povoado, na fuga de Luísa com o boiadeiro, na própria morte que se avizinha: “Tudo tem que chegar e de ir s’embora outra vez... Agora é a minha cova que está me chamando...”. Está na desorientação do cachorro Jiló quando, após a briga dos primos, Argemiro parte pela estrada e o outro fica, deixando a lealdade do cachorro dividida e perplexa:

“O perdigueiro de focinho grosso vem correndo também. Vem, mas diz que não vem: vira a cabeça, olha para primo Ribeiro, que lá está sentado ainda, curvado para o chão. O cachorro está desatinado. Para. Vai, volta, olha, desolha... Não entende.”

Outro tema eterno de Rosa é a arte da narrativa, a contação de histórias. Aqui, esse tema aparece quando Argemiro conta pela milésima vez a Ribeiro a historinha sobre uma moça que é roubada por um “moço-bonito que apareceu, vestido com roupa de dia-de-domingo e com a viola enfeitada de fitas”. O moço-bonito é “o capeta”; o furto da moça espelha o furto de Luísa, e maltrata a lembrança do marido traído.

O mais interessante, contudo, é que essa história, claramente da tradição oral, é concluída por Argemiro numa ramificação de possibilidades:

“Aí a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém não pôde saber pra onde foi que eles foram, nem se a moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou fez o sinal-da-cruz... ou se abraçou com ele assim mesmo, porque já tinha criado amor...”

Um final múltiplo que lembra experiências como as de John Fowles (A Mulher do Tenente Francês, 1969) ou de Alain Robbe-Grillet (La Maison de Rendez-Vous, 1965).

Tem outros detalhes que deixam a gente matutando. A certa altura, Primo Ribeiro diz: “Agora mesmo, ‘garrei a ‘maginar...” Posso estar delirando também, mas acredito ver nisso um eco da letra da famosa “Maringá” de Joubert de Carvalho:

Maringá, Maringá...
Depois que tu partiste
tudo aqui ficou tão triste
que eu ‘garrei a ‘maginar...

A canção é de 1932. Quando Sagarana chegou às livrarias, em 1946, ela estava no auge do sucesso – tanto é assim que a cidade paranaense (fundada em 1947) ganhou esse nome porque diz-se que os operários construtores a cantavam dia e noite.

Rosa afirmou, numa carta famosa a João Condé, ser este o conto de Sagarana de que ele menos gostava. Pelo clima mórbido, doentio?  Não dá pra saber. Mas eu sinto “Sarapalha”, apesar do clima “pra baixo”, como um dos seus contos com presença mais exuberante da Natureza (superado apenas por “São Marcos”, do mesmo livro).

Em certos momentos, os dois primos (“dois velhos – que não são velhos”) lembram, mais do que dois doentes, dois drogados perdidos numa Cracolândia rural.  Dois junkies eternamente de cócoras, chapadões, no presente imóvel que a droga proporciona. A malária se transforma no seu barato, com a febre pontualíssima, o desvario manso em que Ribeiro tem visões ominosas: “Passam umas mulheres vestidas de cor de água, sem olhos na cara, para não terem de olhar a gente...”

Resíduos certamente das experiências de Rosa como médico de roça, misturando aqui a epifania desumana da doença e o amor entrançado ao sofrimento e à humilhação (“Pra que é que há de haver mulher no mundo, meu Deus?!”).

Droga, amor, doença, Natureza, tesão, sezão:

“Disse que a maleita era uma mulher de muita lindeza, que morava de-noite nesses brejos, e na hora da gente tremer era quem vinha... e ninguém não via que era ela quem estava mesmo beijando a gente... (...)  O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. (...) – Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito pra gente deitar no chão e se acabar!... / É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.”

Ao fim e ao cabo, para um jeca-tatu no fim da vida e sofrendo de dor-de-corno, não existe muita distinção entre os infernos da Natureza e os paraísos artificiais.








segunda-feira, 14 de novembro de 2016

4179) As duas pontas do Tempo (14.11.2016)



Falei dias atrás sobre os paradoxos temporais, aquelas histórias de Viagem no Tempo em que o viajante faz alguma coisa (matar o próprio avô, por exemplo) que o impossibilita de nascer, de existir, e consequentemente de fazer a viagem onde praticou essa ação, gerando um loop contraditório, onde a conta nunca fecha.

Tem outro tipo de situação nessas histórias que não consiste num paradoxo, mas num momento de revelação ou de epifania. É quando o Viajante no Tempo se depara com um objeto ou uma cena que diz respeito diretamente ao mundo de onde veio, produzindo uma sensação mista de iluminação e de estranheza.

O filme Em algum lugar no passado (Somewhere in Time, 1980, de Jeannot Szwarc, baseado num romance de Richard Matheson) conta a história de um homem que se apaixona pela fotografia de uma atriz, tirada em 1912. O rosto lindo dela o encanta, mas principalmente o seu sorriso e o seu olhar, meio de lado, com uma expressão indefinível de ternura.

Ele dá um jeito de viajar para o passado, numa espécie de projeção mental, sem o uso de uma máquina do tempo. Chegando lá, encontra a atriz, declara-se a ela – o que a princípio a assusta – mas aos poucos vai se aproximando, conquistando sua confiança.

E então acontece uma cena em que a atriz vai posar para uma foto, e ele está em sua companhia. Afastando-se um pouco, ele espera que ela cumpra aquele compromisso profissional rotineiro, mas no momento em que a foto vai ser tirada ela olha de lado e o avista novamente. Então ela sorri, e a foto é tirada. É a foto pela qual ele se apaixonou. Ele se apaixonou por aquele olhar, aquele sorriso – e os dois eram dirigidos a ele.

É uma imagem delicada e significativa, e ilustra bem um aspecto dos “paradoxos temporais”, comuns nas histórias de viagem no tempo. Existe o chamado Paradoxo do Avô (um indivíduo volta no tempo e mata o próprio avô – mas nesse caso ele não teria nascido, etc.), que eu classifico como um “paradoxo negativo”: uma viagem ao passado que anula a sua própria possibilidade de acontecer.

No caso de Somewhere in Time, ocorre o contrário: um “paradoxo positivo”, em que certos fatos do passado aconteceram somente porque alguém do futuro  viajou no tempo e desencadeou os acontecimentos.

Histórias de viagens temporais mostram muitas dessas cenas de reencontros ou de reconhecimentos, em que o Viajante no Tempo se depara (em geral inesperadamente) com alguma coisa que lhe era familiar no futuro de onde veio, que de certa forma desencadeou sua viagem.

No romance de Connie Willis Doomsday Book (1992), a historiadora Kivrin Engle, de Oxford, viaja no Tempo até o século 14 para estudar o mundo medieval. Depois de alguns anos estudando-o em bibliotecas, ela decide (porque o ano em que vive é 2050, onde já existe a Máquina do Tempo) fazer sua pesquisa de campo.

Acontece que Kivrin vai parar por acidente na época da Peste Negra (1348) e daí em diante tudo vira uma aventura meio dark, cheia de perigos e de ocorrências trágicas. Kivrin não corre perigo (ela tomou todas as vacinas existentes em 2050), mas faz o possível para proteger o que eles chamam de contemps, os contemporâneos, as pessoas da época visitada.

Então acontece esta cena curta mas significativa. A certa altura, um mensageiro chega à casa onde ela está hospedada, e que já foi atingida pela peste. Ele traz uma mensagem do bispo local, avisando os moradores sobre a peste – um documento histórico:

O garoto tirou um rolo de pergaminho da sacola, e o atirou aos pés de Roche.
Roche abaixou-se e o apanhou na laje do piso, e o desenrolou.
- O que diz a mensagem? – perguntou ele ao menino, e Kivrin pensou: claro, ele não sabe ler.
- Não sei – disse o menino. – É do bispo de Bath, e ele mandou entregá-la em todas as paróquias.
- Quer que eu leia? – perguntou Kivrin.
- Talvez seja sobre o nosso amo – disse Roche. – Talvez ele esteja avisando que vai se atrasar.
- Sim – disse Kivrin, tomando a mensagem das mãos dele, mas sabia que não era.
Estava escrita em latim, numa caligrafia tão rebuscada que ficava difícil de ler, mas isso não tinha importância. Ela já lera a mensagem antes, na biblioteca Bodleian.

São detalhes assim que fazem a FC produzir em certo tipo de cientista aquilo que o pessoal chama às vezes de “um frisson”, um arrepio de emoção.

Eu tenho 11% de historiador em mim (quando fui morar na Bahia pensei em cursar História na UFBA, no campus de São Lázaro).  Duvido que um historiador de verdade não se emocione com esse momento em que uma personagem volta 700 anos no passado e de repente chega-lhe às mãos, novinho em folha, com a tinta quase úmida, um documento que ela manuseou, empoeirado, quase se esfarelando, numa biblioteca. São duas pontas do Tempo que se tocam.

É como a emoção de Robinson Crusoé ao ver, na areia da praia, a pegada de Sexta-Feira.







quinta-feira, 10 de novembro de 2016

4178) Os subterrâneos do Nobel (10.11.2016)



Minha percepção da natureza do Prêmio Nobel foi contaminada para sempre pela leitura de um interessante livro de Irving Wallace, The Writing of One Novel (1968). Nele, Wallace rememora, vinte anos depois, todo o seu trabalho de vários anos no romance The Prize (1962), um thriller policial tendo o Nobel como pano de fundo, que foi filmado depois por Mark Robson, com Paul Newman no papel principal.


A idéia para o romance veio quando Wallace estava na Suécia, em 1946, fazendo reportagens para revistas dos EUA. Ocorreu-lhe entrevistar um figurão científico sueco que continuava a ser um defensor público de Hitler, mesmo após a derrota e a morte deste. No curso da entrevista, o dr. Sven Hedin revelou ser um dos jurados permanentes do Prêmio Nobel.  O jornalista sentiu cheiro de assunto, pressionou o professor, e extraiu alguns depoimentos tão francos que chegam perto da ingenuidade.  O dr. Hedin (hidrógrafo, cartógrafo, autor de livros populares de viagens pelo mundo), afirmou fazer parte dos comitês julgadores de Química, Física e Literatura.

Wallace perguntou-lhe por que alguns autores de grande estatura não tinham ganho o Prêmio Nobel. Hedin perguntou quais. Wallace sugeriu o nome de Máximo Górki, e ele disse: “Ah, ele morreu muito cedo. O nome dele era cogitado de vez em quando. Cedo ou tarde acabaria ganhando.” Wallace perguntou por H. G. Wells. A resposta: “Um autor menor, muito jornalístico”.  E Somerset Maugham, então no auge do sucesso?  “Muito popular, sem maior expressão”. E o que dizia o doutor sobre James Joyce? O dr. Hedin pareceu perplexo: “James o quê?”.

Segundo Irving Wallace, o prêmio ficava às vezes dependente do entusiasmo de um único jurado, como foi o caso de Hjalmar Gullberg, que traduziu para o sueco toda a poesia de Gabriela Mistral e lutou por ela até conseguir o prêmio. Ou no sentido oposto, como na campanha do dr. Carl David Wirsen contra Tolstoi, Ibsen e Strindberg, que ele detestava por diferentes razões.

No campo da ciência, Wallace confirma que no Prêmio Nobel de Física concedido a Einstein em 1921 a Academia faz menção específica à descoberta do efeito foto-elétrico, sem citar a Teoria da Relatividade, com receio de que esta viesse a ser desmentida. A impressão de espanto e de incerteza diante da nova cosmologia proposta era muito forte.

Tudo isto, é claro, são fofocas de 1946, que Wallace pode ter usado para dar verossimilhança ao seu livro de espionagem. Não importa. Qualquer prêmio concedido por um júri é uma tentativa de transformar o qualitativo em quantitativo. É como a diferença entre esportes olímpicos. Nos esportes como basquete, futebol, vôlei, há uma contagem de pontos obtidos de forma inequívoca e quem faz mais desses pontos ganha. Em outros, como a ginástica, a contagem é subjetiva, mas fica distribuída por um corpo de jurados.

Isso faz com que toda reunião de prêmio artístico (inclusive festivais de música, cinema, teatro) tenha um pouco aquele clima de “Doze Homens e Uma Sentença”, discussões acaloradas entre jurados, com pressões e concessões de todos os lados, até que o resultado final é proclamado como se fosse o resultado de uma decisão unânime. Uma tentativa de criar um equilíbrio dinâmico de doze subjetividades, para valer como uma forma de objetividade.










domingo, 6 de novembro de 2016

4177) As Academias de Letras (6.11.2016)



Dias atrás, o poeta Geraldinho Carneiro foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, onde vai ocupar a cadeira que foi ocupada por, entre outros, Manuel Bandeira.

Geraldinho é um dos “26 Poetas Hoje” que Heloísa Buarque de Hollanda botou pra dialogar, lado a lado, num antologia famosa. Meu exemplar, que tenho até hoje, foi comprado na “Livro 7” do Recife em 1976, ano do lançamento. Anos depois, vim morar no Rio de Janeiro, onde me tornei amigo de muitos daqueles poetas, que serão sempre um referencial para minha escrita. Com alguns, como Chacal e Leila Míccolis, participei de inúmeras atividades como recitais, publicações, debates, agitos.

Deveria haver um conto de FC sobre uma Academia de Letras que tornasse possível o diálogo entre os sucessivos ocupantes de uma cadeira. Queria ver (nem vou falar nos demais sócios) uma conversa entre Bandeira e Geraldinho, que têm muitas coisas em comum. Durante estes anos em que vivo no Rio, Geraldinho tornou-se um tradutor de Shakespeare muito elogiado. Bandeira traduziu o Macbeth. Assunto certamente é o que não lhes faltaria.

Todo poeta brasileiro deve muito a Manuel Bandeira, e os que porventura não gostem dele devem-lhe muito mais, porque lhe devem desculpas.

Geraldinho, com quem já fui confundido no tempo em que usei cabelo grande, é um poeta dessa turma (à qual também pertenço) que passa da poesia para a tradução de poesia, daí para o teatro, e daí para a letra de música popular, como quem cruza salas contíguas num mesmo prédio. São veiculações específicas de um fazer muito semelhante. (A maioria das pessoas que escrevem assim nem se dão o trabalho de teorizar a respeito, de tão óbvio que isto lhes parece, mas a atitude é essa.)

Poetas que misturam essas atividades sempre se mantêm próximos da coloquialidade, da fala oral, mesmo quando sua dicção poética se faz mais elevada ou mais profunda.

E agora a antologia de Heloísa tem (acho eu) seu segundo representante na ABL (o primeiro foi o poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin).

Lembro que no tempo dos fanzines poéticos publiquei uns fragmentos onde dizia assim, triunfalmente: “Pela prática aberta, pública, desassombrada, dos vícios de linguagem!  São vícios porque somos minoria. No dia em que nossa bandeira tremular no Petit Trianon, serão virtudes”.

As academias literárias são uma espécie de clube onde qualquer um pode se candidatar a sócio, mas tem que ser aprovado por uma maioria deles.

Em alguns casos, a aprovação tem que ser unânime, senão o candidato não entra. Li uma vez no EQMM um conto sobre um clube assim, no qual é cometido um crime perfeito: um dos sócios dá “bola preta” a todo e qualquer novo candidato, para que os sócios falecidos não tenham substituto e no final ele seja o único proprietário de tudo.

As academias literárias seguem todas, pelo menos aqui no Brasil, um modelo muito semelhante. Bem que podiam inventar algumas variações. Por exemplo:

A Academia Oculta
Todos os membros seriam incógnitos, assinando-se com pseudônimos (como os charadistas e enigmistas de antanho). Sigilo total. Tudo seria por escrito. Muitas vezes, amigos próximos iriam conviver durante anos sem que um soubesse que o outro era seu colega acadêmico. Quebras de sigilo seriam punidas com vilipêndio e opróbrio.

A Academia Relâmpago
Como nos cargos públicos, o acadêmico teria direito a um mandato de quatro anos para desfrutar das benesses e “delicatesses”. Cabou o mandato, rua.

A Academia Provisória
Um autor seria admitido na academia quando sua obra fosse considerada (pelos seus pares) suficientemente boa. E se começasse a publicar livros ruins, seria demitido.

A Academia Assistencial
O novel acadêmico, uma vez empossado, se obrigaria a dar todos os meses uma oficina literária intensiva, de uma semana, para jovens de comunidades carentes. Pro resto da vida, ad immortalitatem. Uma espécie de contrapartida social.

A Academia Randômica
Os membros da Academia seriam sorteados, pelo número do CPF, entre os moradores da cidade, e receberiam uma polpuda bolsa-criação para que, desse dia em diante, pudessem se dedicar à literatura.

A Academia Ligação-Cruzada
Os integrantes das Academias de Letras teriam que frequentar obrigatoriamente uma academia de exercícios físicos, e vice-versa.






sexta-feira, 4 de novembro de 2016

4176) Do Not Go Gentle Into That Good Night (4.11.2016)






Este é o título de um poema do galês Dylan Thomas (1914-1953), diz-se que escrito em 1947, publicado em 1952, o mesmo ano em que morreu o pai do poeta, após uma longa doença.

DO NOT GO GENTLE INTO THAT GOOD NIGHT

Do not go gentle into that good night, 
Old age should burn and rage at close of day; 
Rage, rage against the dying of the light.


Though wise men at their end know dark is right, 
Because their words had forked no lightning they 
Do not go gentle into that good night.


Good men, the last wave by, crying how bright 
Their frail deeds might have danced in a green bay, 
Rage, rage against the dying of the light.


Wild men who caught and sang the sun in flight, 
And learn, too late, they grieved it on its way, 
Do not go gentle into that good night.


Grave men, near death, who see with blinding sight 
Blind eyes could blaze like meteors and be gay, 
Rage, rage against the dying of the light.


And you, my father, there on the sad height, 
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray. 
Do not go gentle into that good night. 
Rage, rage against the dying of the light.



Aqui, o próprio Dylan Thomas (que deixou numerosas gravações de sua obra, em disco) recita o poema:

“Do Not Go Gentle...” foi citado no filme Interstellar de Christopher Nolan (2014). Aqui está um trecho:

Aqui, uma bela interpretação de Michael Sheen:

Depois de ver o filme de Nolan em dezembro passado, comecei a fazer uma tradução do poema, que submeto aqui ao julgamento dos coevos e quem sabe dos pósteros.

O poema foi composto no estilo de vilanela (villanelle), um poema de forma fixa, com cinco tercetos e uma quadra, num total de 19 linhas. O primeiro terceto fornece dois versos que se repetirão como refrões, um deles encerrando a segunda e a quarta estrofes, e o outro encerrando a terceira e a quinta.  Os dois são os versos finais do quarteto e do poema inteiro.

Essas duas linhas são a medula dessa forma de poema. Elas começam próximas, cruzam o poema alternando-se uma à outra, e no final estão juntas.

Além de Thomas, há algumas belas vilanelas escritas por Sylvia Plath, Edwin Arlington Robinson, Elizabeth Bishop, James Joyce e muitos outros.

Minha tradução:


NÃO SIGA MANSAMENTE PARA ESSA NOITE EM PAZ

Não siga mansamente para essa noite em paz. 
Os velhos deviam arder e festejar, no fim do seu tempo.
Esbraveje, esbraveje contra a luz que se vai.

Embora homens sábios descubram o bem que a treva traz,
suas palavras não raiaram relâmpago algum, e eles
não seguem mansamente para essa noite em paz. 

Homens bons lamentam, nos seus impulsos finais,
que seus feitos não brilhem sobre as ondas verdes;
esbraveje, esbraveje contra a luz que se vai.

Homens rebeldes, que arrebataram o sol em cantos fatais
mas só viram depois o quanto o fizeram sofrer,
não seguem mansamente para essa noite em paz.

Homens graves, à morte, vendo as luzes finais,
com olhos cegos alegres pelos meteoros que arderam,
esbravejam, esbravejam contra a luz que se vai.

E você, meu pai, que já se eleva para os seus umbrais,
que suas lágrimas me sirvam como maldição e bênção.
Não siga mansamente para essa noite em paz. 
Esbraveje, esbraveje contra a luz que se vai.


Comento de vez em quando que traduzir poema de forma fixa é dormir de cobertor curto; sempre ficamos devendo em algum aspecto.  Podíamos dizer também: é como cortar um orçamento já de si enxuto.

Dependendo do poema, podem servir como critério dessa fixidez, dessa “contrainte”, aspectos como: 1) extensão da linha (longa ou curta); 2) número de sílabas obrigatório em certas linhas, ou em todas; 3) acentuação interna em sílabas obrigatórias (como o martelo nordestino); 4) rimas no final dos versos (em alguns ou todos); 5) rimas internas; 6) presença de linha-refrão ou de estrofe-refrão; e por aí vai.

Procurei manter a rima num sonoridade próxima, substituindo o “night / light” por “paz / vai”.  Na linha do meio de cada terceto original a rima fixa é “...ay”;  Substituí por rimas variadas com a tônica em “ê” ou “en”.  Acho que não fica feio.

No caso da vilanela, parece não haver uma obrigatoriedade de usar sempre o mesmo metro. Pelo menos um dos exemplos que citei usa versos de seis sílabas. O de Dylan Thomas é um decassílabo básico. Um tipo de verso que em inglês pode resultar em linhas como esta, da estrofe final: “Curse, bless me now with your fierce tears, I pray”, dez sílabas, dez palavras. Vá fazer isso em português, dizendo a mesma coisa.

O decassílabo do título me parece a frase geratriz do poema inteiro.  Optei por manter o verso de dez sílabas como cadência inicial, alongando o verso quando necessário, para a imagem não se perder.

Manter isomorfismo com o original, preservando sentido, tom, faixa de vocabulário e tudo o mais é algo aparentemente impossível, mas alguém sempre consegue, de vez em quando. Mas assim como em certas traduções sacrificamos o sentido e a imageria do poema à marcação métrica e rímica, podemos em outra tentativa experimentar o inverso disso, desde que a gente sinta que está pelo menos se mantendo perto do poema original.

É mais ou menos a opção apontada pelo tradutor Álvaro Faleiros, que já citei noutro artigo, quando sugere:

“O ritmo do poema não se devia apenas à distribuição acentual do verso, mas (...) a sintaxe, o léxico e o encadeamento das idéias eram tão determinantes quanto a rima e a métrica. Desde então, tenho procurado inverter a famosa máxima de Haroldo de Campos, para quem a tradução deve ser isomórfica (ou paramórfica) e o sentido deve ser uma ‘baliza demarcatória’. No jogo de perdas e ganhos da tradução, estou tentando tratar os aspectos formais como ‘baliza demarcatória’ e fazer da sintaxe e do encadeamento de imagens o meu ‘topo’”. 








segunda-feira, 31 de outubro de 2016

4175) Acuda, seu papa-hóstia! (31.10.2016)



Sou assinante de uma lista de mensagens chamada A Word A Day, que envia, seis dias por semana, um verbete de uma palavra da língua inglesa, com pronúncia, definição, etimologia e exemplos, além de uma “frase do dia” sem relação direta com o verbete. 

Certo dia, um leitor, ao comentar o verbete “cockalorum” (“pessoa presunçosa, que se vangloria; fanfarronice”) lembra um outro sentido para esse termo, só que desta vez numa história cômica, meio absurdista, meio picaresca. Diz Edie Bonferraro:

Cockalorum recebe um emprego diferente no conto Mestre dos Mestres, na antologia infantil My Book House. Um homem arranjou um criado e ensinou-lhe algumas palavras especiais que ele devia usar quando se referisse a várias coisas. Ele próprio, o dono, devia ser chamado ‘mestre dos mestres’, sua casa era ‘topo-top da montanha’, o gato era “siminino da carabranca”, as calças eram “buscapés e traques’, a cama era “a caramuja”; o fogo era “a quente-jactância” e a água era ‘alagoância’.
 Durante a noite, o criado acordou o patrão gritando: “Mestre dos mestres, pule da caramuja e ponha os buscapés e traques, que siminino da carabranca está com quente-jactância acesa ao rabo, e se não trouxer alagoância, topo-top da montanha vira quente-jactância.”  (No original: "Master of all masters, get out of your barnacle and put on your squibs and crackers; for white-faced simminy has a spark of hot cockalorum on her tail; and, unless you get some pondalorum, high-topper mountain will be all on hot cockalorum!").

O mundo é grande e pequeno, como diz o poeta. Isso aí na minha terra é a história do “Menino Sabido e o Padre”, que todo livro de literatura oral brasileira traz em pelo menos uma versão diferente. Eu e Antonio Nóbrega já fizemos uma adaptação dela para usar numa peça. Há versões em que se trata de uma criadinha. Há um sub-texto malicioso no fato de que o patrão chama certas coisas por nomes bem diferentes.

A história que aprendi de memória, desde pequeno, fala de um padre que emprega um moleque de recados (um pícaro como Cancão de Fogo ou João Grilo) e vai lhe ensinando: a cozinheira que faz o jantar do padre é a folgazona, ele o padre é o papa-hóstia, o fogo que está aceso no fogão é clareiamundo, o gato é o mata-rato, a água do pote chama-se abundância; o diabo que se vê numa gravura é o demo; e o algodão em cima da prateleira é a traficância. Alta noite, o menino (por alguma rixa com o padre, ou por maus tratos) prende ao rabo do gato um chumaço de algodão, toca fogo nele, e entra na alcova bradando:

Acuda seu papa-hóstia,
dos braços da folgazona,
venha ver o mata-rato
com clareiamundo no rabo;
se não acudir com abundância,
leva o demo a traficância!

Bastaria a construção destas duas últimas linhas para denunciar que quem as compôs não foi um capiau analfabeto, e sim alguém acostumado a penas e tinteiros. Podemos supor também, porque supor é só o que podemos, que histórias dessa natureza, usando tal artifício, seduzem justamente o tipo de recontador doido pra deixar uma contribuiçãozinha, dar uma melhorada na versão original.

Outro fator que vai transformando a história é o limite de nossa capacidade de memorização. Muita gente passa adiante versões incompletas, ou cheias de substituições aleatórias, simplesmente porque não lembra da história direito. 

Nem todo mundo tem a memória ou a vivência de Luzia Teresa, que gravou centenas de histórias para a UFPB. E não há duas versões orais, por mais confiáveis, que sejam igual uma à outra. Passar histórias adiante cruzando o hiperespaço da memória é sempre contaminar, ou estropiar, ou diluir, ou parafrasear, ou enxertar, ou substituir às pressas pra tapar um buraco...

Deve haver nessa anedota o resíduo de uma série de fricções culturais, atritos carrancudos ou cômicos entre indivíduos com universos verbais distintos. Personagens representando a dualidade entre a cidade e o campo, como se diz na cidade, ou entre a rua e o mato, como se diz no mato. 

As histórias em que figura um padre são plausíveis, porque subentende-se que um padre é alguém sempre a ensinar aos mais jovens e aos mais pobres a maneira certa de dizer as coisas. E em geral são nomes complicados para as coisas mais comuns, que não precisam de nenhum nome novo. 

Essa historieta é também uma avó distante daqueles milhares de esquetes cômicos de teatro, de rádio e de televisão, em que um primo rico tenta ensinar ao primo pobre e caipira os “costumes e a linguagem da cidade grande”, o que vira um moto-perpétuo de mal-entendidos.







quarta-feira, 26 de outubro de 2016

4174) O paradoxo do avô (26.10.2016)



As histórias de viagens no tempo, pela sua própria natureza, produzem um certo número de situações-padrão que se repetem  de modo aparentemente aleatório e de modo aparentemente orgânico ao longo dos tempos. 

O mais conhecido e mais desgastado deles é o famoso “Paradoxo do Avô”: João volta algumas décadas no passado, encontra seu próprio avô ainda jovem, e consegue matá-lo. Com isso, o avô não casa com a futura avó; o pai (ou a mãe) de João nunca chega a existir. Mas então João também não existiu. Portanto não poderia viajar no tempo, nem matar o próprio avô. Sendo assim, o avô ficou vivo, casou, lá vem o pai, lá vem João, a máquina do tempo...

É um loop que a cada volta anula seu próprio postulado de origem, mas prossegue em frente por pura bravata narrativa, até explodir de encontro à próxima bifurcação lógica, e tudo recomeça.  Nesse loop, a cada passada se tem uma resposta positiva e negativa, alternadamente (“matou mas então não nasceu”, “não matou e nasceu sim”), mas essa polaridade se inverte no fim de cada passada. É como um anel de Moebius, onde temos a sensação de estar numa superfície contínua mas ela muda de dimensão quando chega no ponto da “torção”.

O que sempre me intrigou neste clichê narrativo da pulp fiction foi o fato de que o avô entra na volúpia desse morticínio como entrou Pilatos no Credo e a Fiat no Pai Nosso. Por que matar o avô? Se o paradoxo inteiro se origina na possibilidade de anular a existência do viajante no tempo, bastava que ele voltasse e matasse o próprio pai, impedindo-o de gerar o filho. Pelo que entendo, o paradoxo não se alteraria.

O grande problema deve ser que talvez esse confronto ficasse freudiano e gráfico demais. Édipo anda com muita visibilidade. Voltar no tempo pra matar o próprio pai?!  Inaceitável pelas bilheterias. No máximo, voltar no tempo para garantir que seu pai vai ser homem bastante para comer sua mãe, como fizeram os autores de De Volta Para o Futuro (1985). 

Na maioria das histórias, o inconsciente coletivo (dos redatores em mesas grupais, ou de contistas em serões solitários) pulou o pai e colocou o avô em xeque. Não foi nada mal para ele. The Grandfather Paradox. Acho mais divertido ser nome de paradoxo do que ser nome de rua.

Talvez tenha sido um impulso márqueto-afetivo semelhante ao que fez Walt Disney e seus criadores transferir certos conflitos e certas liberdades, transferindo ambos para “tios” (Donald, Mickey, etc.) e não para pais e mães.

Nesse aspecto, acho que os escritores de FC nos pulp magazines dos anos 1940 tinham receio de mexer nesses países-baixos da mente humana , diante de um público leitor mais ou menos composto de jovens proto-nerds, zés-ninguéns desempregados, soldados em território de combate...  Matar o pai poderia ser perturbador, mas matar o avô era algo mais intermediado, mais diluído, era como acasalar com a prima.

O Paradoxo do Avô, portanto, é um circunlóquio, uma maneira mais tortuosa e menos impactante de sugerir uma ideia, usando uma volta mais comprida para fazer estalar o gatilho do enredo: um homem é capaz de anular a si mesmo a ponto de anular também essa anulação que ele mesmo promoveu. 

A auto-anulação voluntária: olha aí, Carlos Drummond já previa isto em seu poema “Science Fiction” (1962):

O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?

Afastou-se o marciano, e persegui-o.
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.

E fiquei só em mim, de mim ausente.












sábado, 22 de outubro de 2016

4173) O que escapa da tradução (22.10.2016)




Às vezes a gente é tentado a ver no tradutor uma espécie de ourives. De fato, tem muito a ver, aquela concentração quase maníaca para produzir um pequeníssimo mas extraordinário efeito num espaço mais que minúsculo. A arte de ver uma coisa complexa e conseguir reproduzi-la igualzinha. Traduzir poesia é muitas vezes assim.

Não só poesia, claro. Um exemplo bem à mão, que pode ser estudado, é o trabalho conjunto de Guimarães Rosa com seus tradutores Edoardo Bizarri e Curt Meyer-Clason, que traduziram sua obra para o italiano e o alemão, respectivamente. Para achar o equivalente de um topônimo, de um arcaísmo, de uma imagem inusitada, passavam horas, propunham e examinavam variantes, uma delas “colava”.

No texto de Rosa o tradutor avança quase que de palavra em palavra, mas na prosa de registro mais solto pode-se parar de frase em frase. A palavra pode ser a menor unidade de significado, mas a frase é o átomo de hidrogênio da literatura. Tudo se constrói em cima dela.

A jóia que o tal tradutor-ourives está filigranando é a frase.  Para conseguir recriar com sabor de verdade a frase o tradutor muitas vezes tem que enfiar uma palavra intrusa, tem que omitir uma palavra que parecia importante. Desde que a curva, o gráfico da frase continue o mesmo.

Essa imagem me lembrou o aposentado e derrotado Coronel Aureliano Buendía, do romance de Garcia Márquez. Depois que perde a, sei lá, centésima Revolução que tentou realizar no país, ele se recolhe a um pequeno ateliê onde fica esculpindo peixinhos minúsculos de ouro, todos perfeitos e simétricos até a derradeira escama. O ouro de que dispunha dava para dezoito peixinhos idênticos. Quando ele fechava a conta, derretia todos, e recomeçava.

Não existe tradução definitiva, tal como não existe obra definitiva. Se Shakespeare ressuscitasse hoje, a primeira coisa que ele ia pedir era uma borracha, papel e tinta. O tradutor precisa somente ter a lucidez necessária para perceber quando tem diante de si um verso perfeito, porque esses existem sim, e são legião. O que é mesmo bom tem que ficar à altura.

Grandes traduções de poesia já foram feitas por não-poetas, por indivíduos que jamais produziriam um só verso de seu.

Mesmo na prosa, muitas vezes uma tradução meramente literal equivale a escutar uma orquestra sinfônica num mp3 compactado. Perdem-se os graves, os agudos, as superposições, os subtemas longamente planejados pelo autor. Mas mesmo traduções precárias são importantes pelo efeito colateral de trazer (digamos) Boccaccio para o leitor lituano, as Mil e Uma Noites para o leitor holandês, Goethe para o leitor nicaraguense. Tem tanto, no original, que alguma coisa sempre passa.

Claro que seria muito melhor se as traduções fossem sempre boas. Mas neste aspecto concordo com Jorge Luis Borges quando diz que uma boa história resiste a traduções, a paráfrases, a imitações, à má memória de quem a reconta. Histórias cujo efeito reside no enredo são mais resistentes a uma má tradução do que uma história cujo atrativo principal seja o estilo, ou alusões culturais obscuras.

Vai ser preciso uma tradução muito ruim mesmo para tirar o impacto e o mistério de histórias límpidas como “O Colar” de Maupassant, “A Pata do Macaco” de Jacobs ou “Continuidade dos Parques”de Julio Cortázar. Basta recontar, com uma voz plausível, sem precisar de enfeites, o seu mecanismo fatal de decisões, consequências e surpresas. Passando isto pro leitor, é o que importa. Estilo, no caso, é uma mera roupa. Pode mudar um pouco, desde que o plot se mantenha.

A tradução as vezes é ruim, mas para certos livros basta uma fagulha saltar a fronteira linguística para renovar o incêndio inteiro.