quinta-feira, 16 de junho de 2016

4125) Contracapa de Messenger (16.6.2016)



(ilustração: The Sea Hunter, de Alexis Solha)

&  todo elogio é um placebo 

&  ainda faremos festa junina com transcanjica, balões-drone e fogos holográficos 

&  guerrilha dadaísta ocupa TV e desencadeia mimimi ao tocar forró no Dia Nacional do Orgulho Blue 

&  não devemos julgar uns aos outros pelas nossas convicções políticas, se é que existe alguma 

&  bigamia: crime e castigo 

&  eu nunca vi nenhuma história passada no Céu que estivesse chovendo 

&  quanto menos um eleitor se interessa em entender de política maior a chance de estar votando nos seus próprios inimigos 

&  jornalista é a segunda mais antiga das profissões

&  pastel de carne é aquele que falta carne, pastel de queijo o que falta queijo

&  a coisa tá de tubarão perseguir baleia

&  um ventilador se movendo na velocidade de um relógio

&  a barra agora pesou pra quem não é da elite: não se-estremeça, não grite, o futuro começou 

&  burocracia é um sistema fractal onde cada fragmento é capaz de reproduzir integralmente as ramificações do todo

&  pelo andar da carruagem, quando o apocalipse zumbi acontecer será recebido com alívio

&  certa literatura consiste em cobrir com frases alheias a ausência de idéias próprias

&  é possível um indivíduo virar santo sem nunca ter feito o bem a uma só pessoa?

&  o Brasil tem 200 milhões de candidatos a ditador, armados de soluções infalíveis

&  a poesia é pedra lascada e a prosa é pedra polida

&  um professor de Lógica consideraria um absurdo ver um transatlântico cruzando o Pacífico

&  certos executivos têm olhos de vidro fumê, não se sabe o que acontece por trás deles

&  o tempo na verdade não passa, somos nós que passamos através dele

&  há tesouros tão grandes que não podem ser roubados, o máximo que se consegue é ir morar junto deles

&  assédio sexual é um homem tentando obrigar uma mulher a se comportar como um homem se comportaria naquelas circunstâncias

&  um computador de escritor é um canteiro de obras inacabadas

&  ler essas frases de auto-ajuda é o mesmo que passar açúcar numa ferida

&  um trumpete produz um filete de notas sucessivas capaz de dar a volta ao mundo em poucos minutos

&  não importa o estado real da empresa, desde que não se reflita no preço das ações

&  é um desses dias em que a gente se olha no espelho e murmura: “agora aguenta, véi”

&  o som de certas bandas parecem essas mesas de restaurante onde todo mundo fala ao mesmo tempo o tempo todo

&  a calçada é o embaixo-do-tapete da cidade

&  você é o gundará do meu senzoliú

&  existe mestre para repassar respostas e mestre para desencadear perguntas

&  o Destino é a pauta do caderno, o livre arbítrio é a caligrafia do texto

&  ah um cofre-forte que pudesse ser trancado pelo lado de dentro

&  o sucesso é o ar rarefeito dos picos, o anonimato é a pressão das fossas submarinas

&  dou um prognóstico na tua profecia e ainda ofereço dois palpites de lambuja

&  o verdadeiro ambicioso não destrona o rei, ele o canibaliza vivo










segunda-feira, 13 de junho de 2016

4124) Quinze escritoras (13.6.2016)



Tem circulado no Facebook uma espécie de corrente (que me foi repassada) pedindo que a gente cite 15 autores que nos marcaram.  Tempos atrás fiz uma dessas listas, e uma amiga, cuja opinião respeito muito, chamou minha lista de machista, porque só citei autores homens. Eu nem tinha reparado. Claro que não foi proposital.  Como a maior parte dos preconceitos, meu machismo deve ser inconsciente, embutido no piloto automático. O que não me impede de ter grande carinho e gratidão por cada escritora da lista abaixo (que poderia ser maior, evidentemente). Vamos às damas, portanto.

1. Agatha Christie. Era a autora preferida de minha avó Clotilde. Os primeiros dos mais de 30 livros seus que li foram, aos dez ou onze anos, O Caso dos Dez Negrinhos e O Assassinato de Roger Ackroyd. Com ela me acostumei a admitir o maquiavelismo por trás das aparências bonachonas, das reputações inatacáveis dos cidadãos acima de qualquer suspeita. E aprendi que às vezes quem está contando a história do crime não é um narrador neutro, é o próprio criminoso. (Vale para nações, civilizações inteiras.)

2. Cecília Meireles. Os primeiros livros papel-bíblia que comprei, aos 14 anos, foram as poesias completas dela e as de Manuel Bandeira. Que releio até hoje. O Romanceiro da Inconfidência já bastaria para tornar qualquer pessoa um Poeta Maior. Posso ter herdado dela um certo desligamento, uma certa ausência da vida prática, um jeito mais de contemplar do que de agir. Não me arrependo.

3. Emily Bronte. Li O Morro dos Ventos Uivantes na adolescência. Foi o único livro dela que li, mas é como dizer: “foi a única bomba atômica que caiu em cima de mim”. Meus referenciais de literatura gótico-romântica passam todos por ali, misturados às ilustrações de Fritz Eichenberg na edição da José Olympio.

4. Mary Shelley. Outra de quem só li um livro (e alguns contos esparsos, tentando achar algo que coubesse numa das minhas antologias). Frankenstein fundou, para alguns, o romance moderno de terror, aquilo que chamo de “ciência gótica”. Grande escritor é aquele que cria um personagem e desaparece por trás dele. E neste livro pela primeira vez simpatizei com o monstro, entendi o lado do monstro, senti que por um triz o monstro não era eu.

5. Simone de Beauvoir. Quando li O Segundo Sexo, com vinte e tantos anos, eu já estava arriado-dos-quatro-pneus por ela, graças às Memórias de uma Moça Bem Comportada, A Força da Idade, Sob o Signo da História. Vieram ainda A Cerimônia do Adeus, A América Dia a Dia e algum outro que não lembro agora. Eu a achava linda, e mesmo com a propalada visão-crítica-que-é-apanágio-da-maturidade continuo achando.

6. Nélida Piñon. Nos anos 1970 ela foi uma autora que li miudamente, atentamente, decifrando livros densos, impressionantes, meio oníricos, meio poéticos, como Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo (sua estréia, pela editora GRD), A Casa da Paixão, Sala de Armas e outros. Em matéria de “prosa elevada” entre nós, para ombrear com ela só mesmo Osman Lins e muito poucos.

7. Shere Hite & Nancy Friday. Vou trapacear um pouco e dar uma só vaga para estas duas compiladoras enciclopédicas da vida sexual nos EUA. Shere Hite publicou dois Relatórios Hite, um sobre mulheres, outro sobre homens (li os dois na íntegra). Nancy Friday escreveu livros sobre fantasias sexuais pesquisadas por correspondência (My Secret Garden, O Homem e o Amor). Depois de ler estes quatro livros a gente percebe que toda exceção não passa de uma regra que ainda não cresceu o bastante, que em sexo tudo é possível, que tudo pode ser normal entre quatro paredes e em pé de igualdade, que cada um gosta do que gosta, e que não existe um chinelo velho que não encontre um pé doente.

8. Karen Blixen. Também conhecida como Isak Dinesen, era uma baronesa dinamarquesa que escrevia em inglês como gente grande. Suas histórias correm o tempo todo numa raia do insólito que a faz de vez em quando triscar no fantástico. Sua prosa é brilhante em Winter Tales, Sete Contos Góticos, Last Tales.

9. Emily Dickinson. Acho essa “solteirona reclusa” o maior mistério literário da América. Inventou uma linguagem própria, pontuação, notação própria, imagens surpreendentes de um poder simbólico desconcertante, e que só se revela em parte. É uma dessas poetas que inventam não apenas uma obra, mas uma poética só sua. Parecem versículos bíblicos, pequenas adivinhações, bilhetes anônimos e incompletos. Muito difícil de traduzir.

10. Dorothy Parker. É o oposto simétrico de Dickinson. Extrovertida, famosa, língua ferina, teve uma vida atribulada e cheia de paixões e sexo. Contista  mordaz e precisa (Big Loira), poetisa de versos curtos, compactos, dolorosamente verdadeiros. Também difícil de traduzir, embora mais coloquial, mais urbana, mais moderna.

11. Hilda Hilst. Por falar em quem cria uma poética própria, a paulista Hilda me deixou bambo nas cem primeiras tentativas de ler sua poesia densa, ziguezagueante, de imagens consistentemente inesperadas. Seus poemas estavam espalhados pelas publicações literárias da imprensa alternativa dos anos 1970 e eu os lia com o cuidado de quem desarma uma bomba. Depois de certa idade, começou a publicar narrativas fesceninas e virou uma “velha dama indigna” igualmente deleitável.

12. Shirley Jackson. É engraçado, nunca li o livro mais famoso dela, Hill House, tido como o melhor romance de casa mal assombrada. Mas os contos incluídos em The Lottery e em Come Live With Me vão do gótico ao doméstico, do bizarro ao cotidianamente banal, e ninguém melhor do que ela escreve histórias de mulheres que de repente jogam tudo pro ar, chutam o pau da barraca, mudam de nome e vão morar num hotel numa cidade desconhecida.

13. Clotilde Tavares. Pode parecer nepotismo. Mas minha irmã mais velha dividiu comigo livros, filmes e discos até que eu fiquei um rapazinho com 16 anos, capaz de escolher sozinho o que ia ler. Suas novelas de histórias encapsuladas (A Botija, O Monstro das Sete Bocas) reelaboram histórias que ouvimos na infância, mas ela também escreve teatro, poesia, cordel, ensaio, o escambau. Não é mais minha professora, é minha colega, mas ainda influencia.

14. Karen Joy Fowler. Minha professora na Clarion Workshop (em 1991) já foi publicada no Brasil, com O Clube de Leitura Jane Austen, mas ninguém se animou a publicar seus contos brilhantes, premiadíssimos, onde o protagonismo feminino é colocado sem arrogância nem coitadismo; e o romance Sarah Canary, sobre uma mulher alienígena (embora o livro nunca diga isto) que aparece na região rural dos EUA por volta de 1880. Vi poucas pessoas falarem sobre literatura com mais propriedade e finesse.


15. Rachel de Queiroz. Meu pai tinha um volume dela, da José Olympio, com o título Três Romances, que incluía O Quinze, Caminho das Pedras e João Miguel. Nunca me saiu da cabeça a linha inicial deste último, algo como “João Miguel sentiu a peixeira rasgando a barriga do outro homem, depois puxou a arma, jogou longe, saiu correndo”. Não conheço melhor exemplo de início de narrativa in media res. Meio século depois, coloquei o conto de ficção científica dela, “Ma Hôre”, na minha antologia Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção Científica





sexta-feira, 10 de junho de 2016

4123) A importância de uma boa história (10.6.2016)





(ilustração: Alesha Sivartha)

Uma pessoa acostumada a ler histórias, que as lê com certa frequência, que se diverte (ou se emociona, ou se distrai, ou se inspira, etc.) com elas, fará algum esforço para seguir uma história até o fim, se existir algo ali que lhe desperte interesse e que lhe dê a sensação de que ir até o fim vai valer a pena.

Se naquele conto (ou romance, ou filme, ou peça teatral, etc.) houver uma história que desperte a curiosidade, a atenção, o envolvimento do leitor, ele próprio se encarregará de produzir reservas de paciência. Ele dará um crédito de confiança ao autor quando este quiser exibir floreios estilísticos, discursos ideológicos, propostas vanguardistas, ou o que for. Se a história for interessante, o leitor vai em frente.

Um livro é como uma lâmina dágua onde de meio em meio metro aparece uma pedra confiável, formando uma trilha. A pessoa pula de pedra em pedra, confiando que não vai faltar logo adiante uma nova pedra onde possa pular com segurança. Uma história precisa fornecer essas pedras.

Uma relativa esperteza de James Joyce (cujo senso de marketing, imagino, era tão hipertrofiado e bizarro quanto sua prosa) foi ter usado o Ulisses de Homero como escada, como grade, como meta-mapa para que os pobres leitores não se perdessem. Já se disse que a Odisséia é somente a história de um homem querendo voltar para casa depois do trabalho. Não sei se a frase é anterior ou não a Joyce, mas o fato é que o Ulisses dele era literalmente isso, era o sr. Bloom querendo cumprir as estações da sua cruz, para poder novamente adentrar o tálamo conjugal.

Muito pouca gente deve pegar o Ulisses de Joyce para ler sem saber de seu parentesco com a Odisséia de Homero. Sabendo que a história-por-trás-da-história existe, e é facilmente acessível, muitos leitores dedicam-se a compará-las e isto já lhes basta como incentivo para ler. Outros lerão em busca dos episódios de cunho fescenino, ou da linguagem desabrida. Outros pelos trocadilhos, que é só o que tem. Muitos, pela obrigação de ler e a culpa de não estar gostando.

O Catatau de Leminski parece à primeira vista um fluxo comentativo, não narrativo, mas os estudiosos percebem nele um fio de narrativa projetando o filósofo René Descartes no Brasil Holandês, em pleno delírio tropical. Ninguém (a não ser críticos especializados) lê o Catatau em busca de história. O que tem de história, que é bem pouquinho, não seduzirá jamais o leitor comum. Eu, pelo menos, o leio em busca de pepitas, em busca de frases, rimas, trocadilhos, alusões clivadas ao meio, pastiches, referências sagradas e profanas.

O ideal seria que um livro (qualquer narrativa) fosse lido no cru, sem opinião ou informação prévia. Uma leitura a partir do zero. Num caso assim, o autor fica com muito mais saldo junto a esse leitor se lhe fornecer o caminho-das-pedras do “q q tá contesseno”, como se diz na web. Faça o vanguardismo que quiser, mude as palavras que estão em tom maior para tom menor, escreva fosforescente ou em 4D: mas conte uma história ao leitor. É uma concessão tão pequena! Contar uma história ao leitor não é um pecado, assim como não o é compor uma melodia bonita. Tem muito leitor que só precisa de um álibi pra embarcar numa história.

Uma história é uma espécie de sintaxe, de sistema mimetizador das nossas experiências e expectativas. Se a maneira como os episódios se sucedem têm alguma lógica, o leitor aceitará uma total falta de lógica de algum outro lado. Se eu digo: “Todos os ontoratismos são mutérios; todos os mutérios são fardioplasmas; e todo fardioplasma é mull, portanto os ontoratismos são mulls.” Esse trecho faz sentido como um conjunto, mesmo que as partes que o compõem sejam indecifráveis. O que o sustenta como texto é a presença de termos de funções bem nítidas, como todo, ser, portanto, etc. O resto pode ser qualquer coisa. O caos só acontece quando não há sintaxe e não há desenvolvimento de uma idéia. Se eu digo: “Cataplasma justo tição mesa mesa alegre bambu fugir”, cada palavra isolada parece ter um significado óbvio, mas o conjunto não faz sentido.

Deve haver muito mais leitores em busca de histórias do que escritores que se dedicam a contá-las. Claro que a vontade não é tudo, querer não é sinônimo de conseguir. Claro, também, que não basta uma boa história para garantir a adesão do leitor, se o autor escreve mal, os personagens são banais, as situações são uma coleção de clichês. O bom leitor espera outras coisas além de um bom enredo. Mas uma história onde vários acontecimentos se desenrolam no tempo é a melhor das iscas para fazer o leitor querer saber o que vai acontecer em seguida. Se não fosse assim, se não houvesse uma história interessante sendo contada, ninguém leria catataus como a série Harry Potter, a série Uma Canção de Gelo e Fogo, nem Grande Sertão: Veredas, Moby Dick, Em busca do tempo perdido, Os detetives selvagens, Cem anos de solidão, Crime e castigo.

 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

4122) No tempo do cinema de arte (6.6.2016)




Numa entrevista recente no Literary Hub (http://lithub.com/salman-rushdie-on-poetry-being-a-reader-and-going-to-the-movies/), Salman Rushdie, que é um literato com espírito de cinéfilo, lembra a época de ouro do chamado cinema de arte:

“Eu acho que fui um cara de sorte em ser jovem num tempo em que o cinema do mundo inteiro passava por uma fase brilhante. Talvez seja difícil agora, na era do Netflix, explicar às pessoas a sensação de ir ver o filme novo desta semana e ser Pierrot Le Fou de Godard. E na semana seguinte havia um filme novo de Fellini, e na semana depois dele, o novo filme de Kurosawa. E na semana seguinte veríamos o novo filme de Bergman. E depois, o novo de Buñuel. E estes filmes nos quais pensamos hoje como os grandes clássicos do cinema mundial eram as estréias da semana.”

Rushdie está sendo benevolente e deixando de mencionar que essa época era também a era dos Épicos Halterofilísticos de Cinecittà, estrelados pelos Schwarzeneggers da época no papel de qualquer herói mitológico, os espada-e-saiote cujo sincretismo foi imortalizado em Hércules, Sansão e Ulisses (Ercole sfida Sansone, Pietro Francisci). Foi a época (pelo menos aqui no Brasil, não sei na Índia ou em Londres) de maior concentração de comédias bestas de Hollywood por hora de projeção, filmes estrelados por Doris Day, Elvis Presley, Rock Hudson, Dean Martin & Jerry Lewis, Pat Boone, o escambau, e eu assisti quase tudo.

Foi uma grande época não só para quem aprecia a arte cinematográfica, mas para quem gosta de se divertir no cinema.

Eu tinha pensado nisso vendo comentários de Julio Cortázar depois que se mudou de Buenos Aires para Paris. Talvez por se dirigir a um amigo artista plástico e poeta (Cartas a Los Jonquières, 2010) ele fale pouco em cinema, mas de vez em quando ele mostra que deve ter estava vendo os mesmos filmes que Rushdie (nessa época, ambos eram desconhecidos e inéditos, e ver aqueles filmes pode lhes ter encorajado a ambição):

“Mais notícias de Paris. Vimos Intermezzo pela companhia de Barrault (suponho que o viste em B. A.) e gostamos muito. Mas quem nos sacudiu de verdade foi La Strada [A Estrada da Vida], uma película italiana de Fellini que deixou Paris inteira com as patinhas para cima, e com razões. Não sabes se vai passar aí? É um produto quase indefinível, onde a pantomima está sempre presente através de sua estranha e assombrosa protagonista. Se passar aí, não deixes de vê-lo. Cedendo a uma fraqueza que nos custou 500 francos fomos ver On the Waterfront [Sindicato de Ladrões], o filme tão elogiado de Elia Kazan, com Marlo Blando [sic] de herói (acho que me equivoquei com o nome). Nos deparamos com a repetição de todas as receitas ianques, e com um grande ator. Mas o que pode fazer um ator a quem quer que seja, se não está a serviço de algo que tenha sentido? Me senti tão culpado quanto se tivesse acedido em escutar um concerto de Tchaikovsky somente porque Heifetz estaria tocando.” (29 de abril de 1955)

Em 23 de agosto de 1954, Julio tinha escrito para Maria Jonquières, a mulher de Eduardo:

“Aqui em Paris a Cinemateca tem coisas excelentes, mas infelizmente não se pode ver nada porque a sala é horrível, com o piso horizontal, de modo que basta que se sentem duas ou três pessoas com o torso medianamente erguido e daí em diante tudo que se pode ver são uns recortezinhos de filme entre seus pescoços, orelhas e cachos (se houver). De qualquer maneira, assisti ali La Edad de Oro [L’Âge d’Or, Luis Buñuel], que é uma maravilha, e Que viva México! de Eisenstein. Nada mau. E já que estou falando de cinema, não há nada para ver no momento. Na última vez que fomos nos coube Touchez pas au grisbi [Grisbi, Ouro Maldito, Jacques Becker] que é muito bem feito e nada mais. Na Itália não vimos absolutamente nada, primeiro porque estávamos mais pobres que um casal de ratos, e depois porque os italianos não gostam do bom cinema que fazem, e só querem Lollobrigida (e os compreendo) e cowboys e gangsters. I Vitelloni [Os Boas Vidas, Fellini], que vimos em Paris, nos pareceu muito bom.”

O pessoal diz que não se fazem mais filmes tão bons quanto esses filmes europeus dessa época. Eu diria que fazemos filmes tão bons quanto, mas são filmes de uma época diferente, com subtextos diferentes. A obra de caras como Fellini, Buñuel, Kazan, Godard etc. se beneficiou, entre outras coisas, de um momento em que o cinema de arte pôde criar para si uma elite pensante que flutuava entre a imprensa geral, a imprensa especializada, a universidade (as teorias dos professores e as práticas dos estudantes), os circuitos alternativos (cineclubes, cinematecas).

Nos meus tempos de cineclubista imberbe me passou muitas vezes pela mão um livro de Henri Agel chamado O cinema tem alma?.  O substrato religioso já me incomodava (eu já era sherlockiano então), mas eu sentia (acho que corretamente) que a alma em questão não é espiritual, é uma epifania mental.  Não existiria sem neurônios que a abrigassem. É a alma que brota do centro de nós, o feixe de emoções gerado por cada filme. A alma é uma estalactite por onde gotejaram Casablanca, Aruanda, Viridiana, Scanner, Shane. A alma é uma resposta sensorial, intelectual e emocional que esse tipo de cinema fez nascer na gente. O lado bom é que isso é possível. O lado ruim é que para que isso aconteça é preciso que esses filmes (ou outros que se lhes assemelhem) sejam vistos. Porque cada tipo de filme agrega um estímulo e faz nascer uma reação.

De lá para cá, o fenômeno – a relação entre o filme de arte e a mente coletiva da sociedade em que surge - se transformou muito e nunca mais será a mesma coisa. Não se trata simplesmente de opor esses filmes aos “filmes comerciais”. Todos estes filmes acima eram produtos comerciais. Muitos deram lucro. Um diretor como Buñuel tinha produtores que apostavam nele, fazia filmes relativamente baratos, e até Oscar já ganhou.

O cinema de arte continua a ser importante para os cinéfilos, que são muitos. Mas o linguajar teórico da crítica de cinema, deixou de ter o peso que antes tinha. Existem bons críticos e bons filmes. Mas os críticos de cinema antes ocupavam o salão nobre. Agora estão noutro andar, num espaço até confortável, mas é do lado do prédio onde bate o sol no verão e o vento no inverno, e onde nem bebedouro tem.

A discussão do mercado cinematográfico submerge e dissipa a discussão do cinema, da alma do cinema, assim como discussões sobre literatura hoje em dia começam com Borges e com dez minutos estão falando de contratos, percentagens, faixas de royalties e público-alvo. O que é muito bom. Escritor brasileiro dos velhos tempos era mais desligadão do que Borges, às vezes nem cobrava nada, às vezes se sentia ofendido se um editor viesse lhe pedir para acertar contas financeiras. Eu acho que um cara só deveria ter a licença para publicar um livro como autor se antes fizesse um estágio numa editora, mas trabalhando mesmo, pra valer, acompanhando o processo desde a aceitação do manuscrito até o livro pronto, na mão.

Mas no cinema essa mobilização profissionalizante já faz parte há muito tempo. O cinema brasileiro sempre foi tipicamente mobilizado e organizado em torno da profissão. O que pode haver hoje é uma desmobilização da alma (ou do pensamento crítico) do cinema.

A discussão teórica do cinema tem um bom espaço hoje nas universidades e nas revistas especializadas (inclusive eletrônicas), mas perdeu o peso que tinha na grande imprensa.  Sua importância ficou meio espremida por uma forte contraofensiva do “cinema comercial”. Não os modestos sucessos daquela época, mas os megablasters blockbusters que estreiam ocupando simultaneamente quatro mil salas nos EUA. Diz Fellini que quando A Doce Vida (1960) foi um mega-sucesso de bilheteria no mundo inteiro ele pensou que era o começo do seu sucesso. “Em vez disso, acabou sendo meu ponto mais alto,” diz ele. Dali em diante foi só descida.

Um dia, todas as formas de arte deixarão de dar dinheiro e serão realizadas apenas por quem gosta e por quem cria, e tudo que se fizer sem um tostão será poesia.






quinta-feira, 2 de junho de 2016

4121) Falando paraibano (2.6.2016)



(ilustração: "A professora", J. Borges)


No capítulo do linguajar nordestino, trago hoje mais alguns verbetes do meu dicionário informal, que um dia publicarei com o título de “Assim falou Trupizupe” ou coisa parecida.

TU ACHA?
Expressão que pontua com frequência uma narração qualquer, chamando a atenção do interlocutor para algo estranho ou curioso que acabou de ser dito.  “Ontem de tarde meu patrão veio me chamar pra passar um fim-de-semana sozinha com ele na praia, tu acha?”  “Meu pai veio dizer que quer que eu estude para padre, tu acha?” Seu equivalente mais próximo, em sintaxe e em entonação, é: “já pensou?”

SÓ QUER SER AS PREGAS 
Crítica desdenhosa que se faz ao excesso de pretensão de alguém.  “Olha, aquele teu primo só quer ser as pregas. Ele alugou um clube pro aniversário dele e no dia só foram 50 pessoas.” Usa-se em geral nesta forma reduzida, mas a fórmula original era: “Fulano só quer ser as pregas, mas o pano não dá”.  Ou seja: há pouca substância material para suprir os planos do sujeito. Há uma variante maliciosa: “Fulano só quer ser as pregas, mas o cu não dá”. 

O tema “Fulano só quer ser Tal-e-Tal-Coisa” tem uma galeria inesgotável de exemplos: “Fulano? Aquele cara é muito metido a besta, só quer ser a bala que matou Kennedy.” “Só quer ser o Z de Cinzano” (=porque nas propagandas deste vermute a letra central aparecia maior do que as outras) Ouvi recentemente: “Fulano só quer ser o pitó de Gengis Khan”.

AMORCEGAR
Pegar carona num caminhão ou outro veículo, pendurando-se na parte traseira.  Prática comum entre garotos de bairro.  Também usa-se dizer: "Pegar morcego".  "Quando a mãe de Fulano está em casa ele passa o dia quieto, não sai nem no terraço, mas quando ela vai na rua ele corre pra pista e fica amorcegando os ônibus".  A origem da expressão é a posição em que o garoto fica, como um morcego pendurado no teto da caverna.  O "pegar morcego" pode ter função prática (ir daqui até ali sem pagar passagem de ônibus) ou ser uma simples brincadeira perigosa e excitante. 

Não se aplica quando a pessoa está numa bicicleta e se prende ao veículo com uma mão, para ser puxado e poupar esforço.

E o menino amorcegando caminhão

foi apanhado numa rede de cordão

sem entender o triste significado

da palavra educação.(Ivan Santos, “Ilha do Bispo”)

Eu, por mim, como lhe disse, tinha chegado atrasado.  Assim, só quase uma hora depois que passou a Cavalhada, foi que o primeiro devoto meteu o pé na Estrada, mas, agora, já está tudo quanto é de gente vindo de Estaca Zero, a pé, por aí, de Estrada afora!  Eu tive a sorte de amorcegar um caminhão, que me deixou no Cosme Pinto!

(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, Folheto LXXV)

Existem palavras que são ligadas a gestos ou atitudes, como:

RABISSACA
Gesto brusco de menosprezo e irritação, quando uma pessoa (geralmente uma mulher), ao ouvir algo que lhe desagrada, vira bruscamente a cabeça na direção oposta, “ignorando” o interlocutor.  “Mas que empregada mais atrevida!  Eu reclamei que a pia estava suja, e ela deu uma rabissaca e saiu pisando duro!”   Tipicamente, a rabissaca é acompanhada por um “tunco”.

TUNCO
Ruído de irritação ou desdém que se dá com a boca fechada, contraindo a língua de encontro ao palato e puxando o ar bruscamente para dentro, produzindo um estalo surdo.  “Você me respeite quando eu estiver falando, viu, menino?!   Da próxima ver que eu ouvir você dando tunco eu dou-lhe uma surra!







segunda-feira, 30 de maio de 2016

4120) O mágico Murilo Rubião (30.5.2016)





“Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. (“O Pirotécnico Zacarias”, em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986.)

Na próxima quarta-feira, dia 1 de junho, completam-se 100 anos do nascimento do grande Murilo Rubião (1916-1991). Vivo comendo mosca com essa história de datas comemorativas, e confesso que só me liguei nesta graças a um artigo-homenagem de Humberto Werneck no Estado de São Paulo no dia 24 passado (aqui: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-eterno-reescrevedor,10000052999). (Macaco velho, Werneck publicou sua homenagem uma semana antes da data, ajudando com isso a pautar o teclado de focas desligados como eu.)

Em algumas décadas de pesquisa sobre literatura fantástica no Brasil, me acostumei a muitos clichês. Um deles é o de quando alguém perguntar “quem são os principais autores de literatura fantástica no Brasil” responder “José J. Veiga e Murilo Rubião”. Quando houve o chamado boom do Realismo Mágico latino-americano nos anos 1970, começou uma procura febril pelo similar nacional. Entre os autores publicados pelas editoras de prestígio, e com existência reconhecida junto aos críticos de prestígio, só havia estes dois. Viraram parâmetro, marco geodésico. (Havia outros, claro – mas aí já é outra história.)

“Sou um sujeito que acredita no que está além da rotina. Nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico. E isso tudo aliado a uma sedução profunda pelo sonho, pela atmosfera onírica das coisas. Quem não acredita no mistério não faz literatura fantástica.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Murilo teve algumas ocupações passageiras mas basicamente foi funcionário público a vida toda. Pertencia a uma época e uma classe social em que tornar-se funcionário público é algo tão natural quanto deixar crescer um bigode. Seus contos foram criados à sombra desta nobre ocupação, e o adjetivo não é irônico. Quando era Diretor de Publicações e Divulgação da Imprensa Oficial, ele foi o fundador, em 1966, do Suplemento Literário Minas Gerais, um dos melhores que já houve em nosso país (e que continua sendo editado, pelo que sei), responsável por um imenso avanço da prosa, da poesia e da ilustração mineira.

Os contos iam sendo criados devagarinho, nas possíveis horas vagas. Murilo produziu pouco. Suas coletâneas de contos misturam-se umas às outras, com os mesmos contos sendo repetidos (às vezes em versões modificadas, sem que se saiba ao certo qual a mais recente, ou a definitiva). Diz Humberto Werneck:

Murilo menos escreveu do que reescreveu. Quem mais levaria 26 anos ruminando as poucas páginas de “O Convidado”? O verbo era “murilar”, dizia eu da obsessão desse burilador impenitente. Em 75 anos de vida, publicou 51 histórias, das quais descartou 18. Toda a sua obra consiste, pois, em 33 contos, magro volume no entanto capaz de parar de pé com mais aprumo do que muita obra caudalosa. (Estado de São Paulo, 24.5.2016)

Nunca foi um grande divulgador de si próprio. Seu primeiro livro passou quase em branco: O Ex-Mágico, publicado em 1947 (por influência de Marques Rebelo) pela Editora Universal, que entrou assim para a História como lançadora de pelo menos dois marcos da literatura brasileira. (O outro tinha sido um ano antes: Sagarana, de Guimarães Rosa). Seu sucesso popular, que o transformou num nome obrigatório em antologias, vestibulares e verbetes, veio apenas em 1974, quando Jiro Takahashi lançou pela Editora Ática O Pirotécnico Zacarias, com capa e ilustrações de Elifas Andreato, e que não demorou a bater os 100 mil exemplares vendidos.

O pessoal compara Murilo Rubião a Kafka, mas ele vai bem além disso. Há contos que têm sem dúvida o que Borges chamava “a idiossincrasia de Kafka” (a sujeição a tarefas infinitas e inexplicáveis), que nos faz ver por toda parte precursores e seguidores do escritor tcheco. Rubião é kafkeano em contos como “O Edifício”, onde descreve um prédio gigantesco, administrado por uma Fundação misteriosa, do qual se dizia que mergulharia no caos quando ultrapassasse o octingentésimo andar. Mas no mesmo conto o segmento “O Baile”, que descreve as comemorações violentas dessa data, me remeteu de imediato ao futurismo brutalista de J. G. Ballard em High Rise (1975), sobre um condomínio da classe alta londrina que reverte à barbárie.

O conto “Os Dragões” mantém uma ambiguidade constante, pois os dragões que aparecem de repente numa cidade (num efeito narrativo semelhante ao de alguns romances de José J. Veiga) nunca são fisicamente descritos, e às vezes são tratados na história como animais (“serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos”), ora como jovens rebeldes (“desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas”), ora como índios semi-aculturados (“tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer... fugiam à noite do casarão e iam se embriagar no botequim... Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos”).

O autor tinha o hábito de afixar pequenas citações da Bíblia como epígrafes aos seus contos; a presença dessas citações parece revestir de um certo verniz eclesiástico sua visão do mundo, mas se lermos os contos e ignorarmos as epígrafes o absurdo sem centro avulta em cada um deles. Terá o mistério do mundo uma resposta espiritual, ou não passa de um granizo de estilhaços sem sentido, sem Idéia que os unifique e resolva? Murilo dizia:

“Jamais consegui me livrar do problema da eternidade, chegando mesmo, na infância, a ser religioso e um tanto místico. O ateísmo, mais tarde substituído pelo agnosticismo, provocou em mim uma ruptura violenta.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Alguns dos seus melhores contos produzem a sensação do estranho ao descrever algum tipo de processo fantástico fora de controle, aleatório, imprevisível. São assim as metamorfoses de “Teleco, o coelhinho”, criaturinha falante e cheia de vontades capaz de virar uma pulga, um bode, um porco do mato ou um canguru chamado Antonio Barbosa. São assim as mágicas surpreendentes do seu conto talvez mais emblemático, “O ex-mágico da Taberna Minhota”, cujo protagonista tira dos lugares mais inesperados os objetos ou seres mais surpreendentes.

“A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. (em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Atribui-se a Picasso a frase “on ne cherche pas, on trouve” (“a gente não procura; a gente acha”). O mágico de Rubião, ao fazer pequenos gestos casuais, achava em si mesmo prodígios, sustos, maravilhas. Torna-se “ex” depois que se emprega numa Secretaria de Estado (“1930, ano amargo... 1931 entrou triste”), se burocratiza, vira um Clark Kent sem super-poderes.

“Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença dos amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga.” (idem)

Com uma obra relativamente pequena, ele criou na literatura brasileira um nicho onde não imagino que caiba muito mais gente. Sua obra tem um pendor para os mistérios inexplicados, os prodígios assimilados pela banalidade cotidiana, um olhar compassivo sobre as pequenas fraquezas das pessoas comuns.








sexta-feira, 27 de maio de 2016

4119) A arte de pensar como um português (27.5.2016)



Num filme de John Schlesinger, Billy Liar (1963), o protagonista vai entrando em casa e sua avó, ao ouvir o ruído da porta, ergue a voz: “Se for Billy que está chegando, seu almoço está no fogão.” O rapaz retruca, também alto: “E se não fosse Billy, onde estaria o almoço?”.

É uma crítica dele à linguagem da avó, que parece sugerir uma inferência lógica do tipo “se x é verdade, então y é verdade”, mas trata de dois fatos independentes. O que a avó está querendo dizer é algo como “se for Billy que está chegando, saiba que, etc etc.”

O cantador Geraldo Amâncio conta em suas palestras e cantorias uma história acontecida com Biu Doido, uma figura folclórica de São José do Egito, no Pajeú pernambucano. Alguém perguntou: “Biu, você sabe me dizer se Seu Fulano está em casa?”, e Biu respondeu: “Saber eu sei, só não sei se ele está.”

Biu Doido também fez uma crítica à linguagem do outro. Quando a gente escolhe uma maneira indireta de se exprimir, parece que está fazendo uma pergunta diferente da que de fato queria fazer.  O outro pode retrucar que o “sabe me dizer” não é para ser respondido. É uma “pergunta retórica”, uma maneira mais cortês, menos brusca, de fazer a pergunta direta, que seria: “Biu, Seu Fulano está em casa?”  Mas Biu, levando aquele apêndice meramente suavizador ao pé da letra, mostra que metade da pergunta é supérflua.

Isso que Billy Liar e Biu Doido fazem é uma distorção crítico-cômica do discurso cotidiano. Não é para ser levada muito a sério, porque a fala faz parte de uma longa lista de produtos humanos que a todo instante desobedecem à lógica. Quando temos filhos pequenos, às vezes é difícil convencê-los de que a língua conjuga os verbos de uma maneira que eles acham errada, mas o jeito é dizer que é assim mesmo, não cabe a nós mudar. “Você sabe e eu também sabo”, diz o moleque, diz a pirralha, a gente conserta: “Não, se diz eu sei.”  E vem a verruma na mente: “Por que?”.

Por isso, talvez, por este excesso de atenção que algumas mentes inquietas têm para com a lógica do que se diz, mesmo na mais banal das situações. São pessoas que nos ouvem dizer algo formalmente (retoricamente) contraditório, com lacunas, sei lá o que, e nos dão na maior cara de pau uma resposta absurda.

O sujeito está saindo de um hotel de Lisboa, assina o último papel na recepção, aponta para a rua através das grandes vidraças e pergunta: “Aquele ônibus ali passa no aeroporto?”. O recepcionista responde: “Não. Passa em frente.”

Qualquer um de nós tem dezenas de exemplos dos nossos irmãos lusitanos, essa lógica implacável que os faz considerar cada fala nossa como um silogismo filosófico, cuja lógica tem que ser de ferro.

O turista em Lisboa se interessa por um livro mas está sem dinheiro ou cartão, e pergunta ao livreiro: “O senhor fecha no sábado?”, e este diz: “Não.” Ele volta lá no sábado, e encontra a loja fechada. Ao se queixar na segunda-feira, o lojista diz: “Ó pá, eu fecho na sexta. No sábado eu nem abro, como posso fechar?”

Dizem que os portugueses são burros. Pois digo-lhes eu que os portugueses (pelo menos os do animê mítico da nossa cultura oral) têm mente ciberneticamente precisa, e usam a língua que é sua com uma precisão que jamais alcançaremos. Nós falamos na verdade um fuzzy-português, uma língua fora de foco, toda raiada de exceções, nuances, subentendidos.

O português pensa como o programador de sistemas. Tem toda uma deep web de piadas sobre programadores, até porque os computadores foram inventados por eles, e devem ser o grupo que ri de si próprio há mais tempo no ciberespaço. Uma piada deles diz que o programador achou em casa um bilhete da esposa: “Querido, vá à padaria e traga um litro de leite. Se eles tiverem pão, traga seis.”  Uma hora depois a mulher entra na cozinha e encontra seis litros de leite, e nada mais.

É errado pensar assim? Eu acho que não, e se algum erro pode ser imputado a quem fala desse jeito é a fantasia utópica de querer falar certo. Não é burrice, é na pior das hipóteses uma maneira exasperantemente direta de pensar. O português e o programador parecem se ater à formulação verbal como se só ela existisse.

Uma biografia de Alan Turing, o criptógrafo inglês da II Guerra Mundial (O homem que sabia demais - Alan Turing e a invenção do computador, David Leavitt, Ribeirão Preto. Ed. Novo Conceito, 2011), cita alguns episódios em que ele, já fascinado pela ciência, pensava como cientista. No exército, foi criticado porque seu cartão de identidade estava sem a sua assinatura, e ele respondeu que fora instruído “a não escrever nada nele”.

Leavitt comenta:

Claro que do ponto de vista da lógica matemática, em cada uma dessas circunstâncias Turing estava se comportando com a máxima exatidão. A lógica matemática é distinta do discurso humano normal, no sentido de que suas afirmações são exatamente o que elas declaram, e declaram o que querem significar; de modo que uma sentença como “não se preocupe em me apanhar, eu vou andar até minha casa pela chuva e pela neve com minha perna doente” provavelmente não encontrará lugar em um livro-texto de lógica. O Dr. Spock, do seriado Jornada nas Estrelas era notoriamente insensível às inferências, ao duplo sentido e à agressividade passiva, e havia mais do que um toque de Dr. Spock em Turing, que muitas vezes se via em apuros por sua incapacidade de ‘ler nas entrelinhas’”. (p. 21)

Isto me lembra outro cientista excêntrico e de pensamento rebelde, nosso amigo Richard Feynman, cuja biografia daria uma série de TV. Feynman envolvia-se costumeiramente em episódios cômicos pela sua capacidade de dizer a verdade sabendo que ninguém acreditaria nele. (Aqui: http://tinyurl.com/gm5jk2f). “Ninguém lembrava textualmente do que ele dissera. Ele tinha dito a verdade, mas o tom de voz empregado, e a sua fama de gozador, tornaram invisível a verdade que ele dizia.”

Nossa conversa é feita de frases, mas essas frases são reforçadas, comentadas ou contraditas por mensagens complementares, de natureza não-verbal: gestos, atitudes, expressões faciais, que contaminam de sentido e de comentários a frase. Existe também o “contexto social”, uma enorme quantidade de “modos de dizer” que não fazem muito sentido mas todo-mundo-sempre-disse-assim, e ninguém para pra examinar com uma lupa.

E há pessoas que nada percebem disso, percebem apenas a letra, o texto, o sentido direto das palavras, e que ouvem uma pessoa falar aquilo como se fosse um texto num cartaz lambe-lambe pregado num poste.

Alguns tipos de autismo, ao que se diz, deixam o indivíduo incapaz, por exemplo, de jogar pôquer, onde é preciso blefar e entender o que é um blefe. Nuances, piscadelas de olho, “aspas” colocadas com uma torção cômica da voz... tudo isso passa despercebido por eles, que no entanto serão capazes de alvejar uma incoerência lógica sua com a precisão de um luso cirurgião.

Ficamos incomodados ao conversar com alguém que sempre leva ao pé da letra tudo que dissemos.  “– Pô, faz horas que a gente está nessa fila”. – Não, são menos de cinquenta minutos”. Ou então: “-- OK, pessoal, então a gente se reúne de novo amanhã. – Amanhã não, hoje, porque já passou de meia-noite.”

A crítica que se pode fazer ao estilo luso-programador-cibernético de falar é que ele, por seu excesso de fidelidade à letra, se recusa a captar o espírito. Por um apego à palavra, perde a chance de se apegar a outras formas humanas de significar (gestos, expressões, atitude, contexto). Mas os portugueses não são burros, e se um dia chegarmos de fato a produzir uma Inteligência Artificial, ela pensará exatamente como pensa um português. (O português mítico desses exemplos, bem entendido.)









quarta-feira, 25 de maio de 2016

4118) Os detalhes da narrativa (25.5.2016)



Li há muitos anos um conto italiano ou francês, ambientado no tempo antigo, em que o protagonista pega um cabriolé para ir a tal lugar. Ele desce, pede ao cocheiro que fique esperando, há um contratempo, ele foge, é perseguido, viaja, passam-se semanas ou meses, não lembro mais. O conto é cheio de coisas que não lembro mais. Só lembro (olha as ironias da literatura!) o parágrafo final, onde ele diz algo como: “Tudo resolvido, voltei à minha cidade e fui até a estação. O homem do cabriolé continuava à espera. Perguntei quanto era, ele disse que eram 900 mil francos. Dei-lhe uma nota de um milhão e falei que ficasse com o troco.”

Não é um conto propriamente realista, é de algum autor como Papini ou Apollinaire. Mas o fato do autor lembrar do cocheiro que ficou à espera aquele tempo todo traz de volta uma questão crucial da narrativa. Até que ponto um autor deve amarrar todas as pontas soltas de uma história? E precisa mesmo, esse rigor todo?

Manuais de escrita nos dão o tempo todo conselhos nessa praia. “Se o personagem pedir alguma coisa no bar, lembre-se de fazer com que o garçon acabe trazendo.” Sim, são dicas úteis. Cada vez que você faz isso a narrativa ganha maior espessura. Dois caras pedem sanduíches e começam a conversar. Se o diálogo é interessante (e afinal de contas é para mostrar esse diálogo que a cena foi concebida e escrita, ou filmada) ninguém lembra mais dos sanduíches. Mas quando eles são trazidos, fumegantes e apetitosos, isto dá ao espectador uma sensação maior de realidade. Ele percebe fugazmente que, durante a conversa, algo (a preparação dos sanduíches) estava acontecendo na cozinha. Ou seja, há coisas acontecendo de verdade em torno daquele diálogo, o mundo não pára, o mundo é de verdade e está funcionando em volta daqueles dois personagens.  Perceber isso dá mais solidez à cena e à história.

O manual diz: “Deixou o táxi esperando, volte e pague. Ou guarde o motorista para aparecer, impaciente e furioso, como elemento resolvedor irrompendo em outra situação qualquer.” Sim, sempre é bom deixar acontecimentos pendurados. No famoso conto de Fernando Sabino “O Homem Nu” o protagonista, de manhã cedinho, avisa a esposa que se baterem na porta não atenda, é o cobrador das prestações da TV. Ele sai, nu, para pegar o jornal que estava no corredor do prédio, e a porta do apartamento bate. Ele chama. A mulher pensa que é o cobrador da TV e não abre. Depois de ser surpreendido e passar por mil peripécias, perseguido pelos vizinhos, ele consegue voltar para o apartamento, arrasado. Quando está explicando tudo à mulher, batem na porta. “É a polícia!” diz ele, e vai abrir. “Não era. Era o cobrador de televisão.”  Li isso com 11 anos e lembro até hoje.

Vem daí talvez o velho conselho de Raymond Chandler para a narrativa de pulp fiction: “Quando não souber o que fazer com a cena, faça alguém entrar na sala de arma em punho.” Em histórias de crime há sempre alguém perseguindo alguém, alguém querendo silenciar uma testemunha, querendo recuperar um objeto roubado, querendo se vingar de uma chantagem, etc.  A narrativa policial hardboiled é sempre uma história de ação em que as ações dos personagens tendem mais a ser interrompidas do que a chegar ao fim sem sobressaltos.

Essa “amarração de pontas” precisa ser feita se o autor acha que o leitor vai lembrar do taxista que ficou esperando, ou do fone deixado fora do gancho, ou da chaleira com água posta a ferver, ou de Fulano que foi ao banheiro e não voltou a participar da reunião. Às vezes o autor indica cada um desses pequenos fatos com tanta ênfase que o leitor, inconscientemente, anota: “Ôpa, tem coisa aí.”  Quando depois o autor passa em branco, ele se sente meio desacorçoado. A melhor solução talvez seja dizer esses detalhes (se não são significativos) meio “en passant”, sem lhes dar muita importância.

Veja-se este exemplo:

“Quando acordei, desci para tomar o café da manhã na lanchonete. Sentei numa mesa, pedi café e sanduíche e comecei a ler o jornal. Nenhuma novidade, mas na página policial havia uma notícia sobre um carro igual ao meu encontrado pela polícia. Paguei e saí às pressas, fui direto para a delegacia.”

No trecho acima, o autor não diz que o café chegou, não diz que chegou a comer alguma coisa. Mas quando ele diz “paguei”, vemos que tudo isso aconteceu, e que esse minúsculo episódio foi encerrado. Se ele dissesse apenas “Saí às pressas...” daria a impressão de que o café não foi trazido, ou foi consumido mas não foi pago. Escrever, mesmo sem pretender grandes voos literários, é escolher o tempo todo o que precisa ser dito e o que não precisa.




domingo, 22 de maio de 2016

4117) O pensamento artístico de Einstein (22.5.2016)



Circulou por estes dias nas redes sociais um documento “fake” que fingia reproduzir uma carta endereçada a Albert Einstein, em 1907, pela Universidade de Berna, negando sua candidatura a um Doutorado. Desconfiei um pouco porque a carta (em suposto fac-símile) estava em inglês, quando o mais natural era que estivesse em alemão, mas o que me interessou mesmo foi o que ela dizia no último parágrafo:

“Mesmo tendo em conta que o senhor propõe uma interessante teoria no seu artigo publicado nos Annalen der Physik, achamos que as suas conclusões sobre a natureza da luz e a conexão fundamental entre o espaço e o tempo são um tanto radicais. De um modo geral, consideramos que suas suposições são mais de ordem artística do que de uma Física verdadeira."

O debate Ciências x Artes é uma hidra de mil cabeças.  Sempre que ela espicha uma dessas cabeças no meio da discussão eu me lembro do artigo clássico de C. P. Snow, “As Duas Culturas” (1959), no qual ele lamenta a distância entre o que hoje em dia a gente chama “a galera de Exatas e a galera de Humanas”. Snow lamenta que cada uma dessas turmas entenda tão pouco do que faz a outra, e livra um pouco a cara dos cientistas; segundo ele é mais fácil um cientista conhecer música, pintura e literatura do que um artista conhecer ciências. (Aqui: http://www.newstatesman.com/cultural-capital/2013/01/c-p-snow-two-cultures)

Pra mim, a melhor formulação desse impasse é a de Arthur C. Clarke: 

“Uma pessoa que conheça tudo sobre as comédias de Aristófanes e nada sobre a Segunda Lei da Termodinâmica é tão inculta quanto aquela que dominou a teoria quântica mas pensa que Van Gogh pintou a Capela Sistina”. 

Nas regiões mais elevadas do pensamento criativo, ali onde ocorrem as grandes idéias que revolucionam todo o pensamento de uma época, não há muita distinção entre o pensamento criador artístico e o pensamento criador científico.

O insight criativo, a associação inesperada de idéias, a ruptura conceitual, o momento do Eureka!, tudo isso são resultados de um longo e cansativo processo. É uma concentração mental alimentada por tensão emocional e por um grande número de informações sendo manipuladas incessantemente de todas as formas pelo raciocínio e pela memória associativa, até que se dá o “clique”.

Isso é particularmente visível no caso de Einstein, que como cientista era uma figura um tanto heterodoxa. Num depoimento a Jacques Hadamard (citado em A Experiência Matemática, David & Hersh, Ed. Francisco Alves, 1985, trad. João Bosco Pitombeira), o cientista falou:

“As palavras ou a linguagem, como são escritas ou faladas, não parecem desempenhar qualquer papel em meus mecanismos de pensamento... as entidades físicas que parecem servir como elementos no pensamento são certos sinais e imagens mais ou menos claras que podem ser ‘voluntariamente’ reproduzidos e combinados... Os elementos mencionados acima são, em meu caso, visuais e alguns do tipo muscular. Palavras convencionais ou outros sinais devem ser procurados laboriosamente somente em um estágio secundário.” (Davis & Hersh, p. 347)

As intuições visuais e musculares de Einstein explicam suas analogias através de imagens, capazes de deflagrar um curto-circuito conceitual nas idéias aceites.

Ele sugeria: Se um indivíduo pudesse viajar pelo espaço montado num raio de luz, e segurando diante de si um espelho, ele se veria refletido nesse espelho? Einstein usa um detalhe ínfimo (o ir-e-vir da luz no espaço de 1 metro, num contexto-limite) para questionar todo o fundamento de uma “lei” abstrata e mostrar que ela não tem um valor absoluto.

Por outro lado, o princípio relativístico de que à medida que a velocidade aumenta os corpos materiais “se achatam” na direção para onde se deslocam é uma intuição muscular que, no caso de Einstein (talvez pensando na sensação de achatamento-por-aceleração que sofremos horizontalmente num trem ou verticalmente num elevador), acabou fornecendo uma indicação utilizável. (Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Length_contraction). (Mas é bom lembrar que são incontáveis os exemplos de analogias aparentemente corretas mas que não levam a nada.)

O que os apócrifos burocratas de Berna chamam de “suposições de ordem artística” é justamente um dos caminhos mais trilhados pelos cientistas para atingirem, de um salto, verdades universais a que seria talvez impossível chegar através do método pedestre (embora também legítimo) de cálculos miúdos, onde são grandes as chances de andar em círculos, voltar ao ponto de partida, pegar mil veredas que só levam a becos sem saída.  

Matemáticos e cientistas em geral costumam louvar certas formulações por sua “beleza estética” ou “elegância”, critérios que têm muito pouco a ver com os volúveis conceitos de beleza e elegância no dia-a-dia, mas indicam o quanto uma síntese é compacta, simples, coerente, e ao mesmo tempo capaz de ser constantemente testada e funcionar.

Nem tudo que Einstein supôs era a melhor resposta para as questões que ele abordava; muito da sua obra foi superado (até agora) pela Física Quântica, cujo espírito probabilístico lhe desagradava. Mas as suas intuições “artísticas” continuam valendo. Thomas S. Kuhn, no seu essencial A Estrutura das Revoluções Científicas (1962; Ed. Perspectiva, 1982) lembra:

“Se um novo candidato a paradigma tivesse que ser julgado desde o início por pessoas práticas, que examinassem tão-somente sua habilidade relativa para resolver problemas, as ciências experimentariam muito poucas revoluções de importância. (...) Mesmo hoje a teoria geral de Einstein atrai adeptos principalmente por razões estéticas, atração essa que poucas pessoas estranhas à Matemática foram capazes de sentir.” (p. 198-199)









sexta-feira, 20 de maio de 2016

4116) Os momentos philipkdickianos (20.5.2016)



(ilustração: Jeff Drew)

É uma espécie de gíria interna entre nós, leitores, tradutores, críticos, que curtimos a obra do criador de Blade Runner e do Homem do Castelo Alto.  “Momentos Philip K. Dick” ou philipkdickianos são aqueles momentos de flagrantes quebras da realidade. Momentos em que a pessoa imagina ter cruzado um portal, uma zona de transição entre dois universos que coexistem à revelia um do outro, mas sob certas circunstâncias podem se tocar, podem permitir a passagem de alguém numa direção ou na outra.

Ou duas narrativas conflitantes, dois grupos de pessoas que, mesmo misturadas umas às outras, afirmam pertencer a universos diferentes. Cada qual explica as coisas e os fatos à sua volta com uma narrativa histórica totalmente coesa em si, mas irredutível à narrativa do outro. As duas se excluem mutuamente. Alguém ali está num universo a que não pertence. É assim com as pessoas que um acidente nuclear transporta para dentro do mundo mental de cada uma delas, sucessivamente, em Eye in the Sky, ou o solteirão desocupado de Time Out of Joint (1959), que vive de favor na casa da irmã e do cunhado, e que um belo dia tem uma revelação maior e mais apocalíptica do que a de Truman Burbank em The Truman Show, se bem que de natureza semelhante.

Momento Philip K. Dick é quando você chega numa esquina onde não passa há um mês e vê que a costumeira calçada escura e esquisitona está agora coberta de mesas sob o resplendor de luzes fluorescentes e vidraças de bares cheios de uma rapaziada bebedora que parece ter nascido ali. Rupturas inesperadas do continuum espaçotempo a que a gente estava domesticado.

Nada porém, caracteriza melhor esses momentos do que os pequenos detalhes que não batem, as coisas insignificantes, adereços de cenário, props, mas que para nós exprimem o que o mundo real tem de mais sólido, opaco, desinteressante, confiabilíssimo. O cara mora naquela casa há anos, entra no banheiro, às escuras, estende a mão para pegar o cordãozinho de fio pendurado junto à lâmpada, para acendê-la, aí se detém e pensa: “Peraí! A luz daqui sempre acendeu com interruptor! Por que eu lembrei tão vividamente que era um cordão com uma ‘pera’ pendurada?”

Que importa se a Terra está em guerra com a Lua, ou com mais alguém. Afinal de contas, é mais fácil se acabar o bar da esquina do que um país inteiro, mas o mundo está cheio de bares com mais longevidade do que algumas grandes potências ou impérios. O país pode se dissolver no ácido da ambição alheia, mas o interruptor da luz precisa ser o mesmo, o degrau quebrado da escada ainda é o terceiro do segundo lance, o meu botão de elevador é o penúltimo, a bandeira esportiva na parede da sala é aquela e não outra. Esse mundo é meu. Mas se mexem nesses detalhes tão banais, tão pessoais, aí sim, nosso senso do real fica prejudicado. Sentimos que “o próprio tecido do espaçotempo” está se esgarçando pelo forçar da nossa passagem.

Louis Pauwels, co-autor do clássico O Despertar dos Mágicos, onde propõe o conceito de Realismo Fantástico, exemplificou uma vez (creio que na antiga revista Senhor) como o Fantástico surge muitas vezes por uma diferença de percepção. Vemos algo impossível e segundos depois nossa mente corrige nosso olho: “Não, não é isso, é isto aqui”, e às vezes basta mudar um pouco de posição para ver que sim. Pauwels conta que num dia de nevoeiro cerrado ele caminhava ao ar livre, numa neblina que só permitia enxergar no raio de um metro ou pouco mais. De súbito emerge um corvo voando lento, à altura do seu rosto. Ao se deparar com ele, o corvo solta um grito aterrorizado e desaparece num voo pânico numa direção qualquer. Pauwels diz que o corvo achou que estava voando na camada alta que lhe era costumeira, de modo que, do ponto de vista dele, surgiu no ar um homem caminhando a vinte metros de altura. Daí o terror. “Ele viveu um momento de Realismo Fantástico”, dizia o autor.

Dick usava isto extensivamente, mas era um assunto tão importante para ele que ele nunca deixava de imaginar novas circunstâncias num enredo. Momentos philipkdickianos são o transe zen do personagem de O Homem do Castelo Alto, segurando um objeto e através dele sendo transportado para um mundo paralelo. É também um leit-motif recorrente de suas histórias: o instante em que alguém enxerga a si mesmo (corpo, comportamento, evidência externa) e percebe ser um andróide ou equivalente. Há um momento clássico em Time Out of Joint, quando o personagem, na piscina de um clube num dia de sol, dirige-se para uma barraca de refrigerantes e ao fazer o pedido tem uma espécie de vertigem, fica tonto, e quando se recompõe vê-se diante de um espaço vazio, e no chão está pregada uma folha de papel dizendo “Barraca de Refrigerantes”.

Momento Philip K. Dick mesmo vai ser quando eu um dia pensar: sim, mas me diga uma coisa, o que é que eu estou fazendo aqui neste lugar, a esta hora, com esta roupa, e por falar nisso, quem sou eu?