(ilustração: Alesha Sivartha)
Uma
pessoa acostumada a ler histórias, que as lê com certa frequência, que se
diverte (ou se emociona, ou se distrai, ou se inspira, etc.) com elas, fará
algum esforço para seguir uma história até o fim, se existir algo ali que lhe
desperte interesse e que lhe dê a sensação de que ir até o fim vai valer a
pena.
Se
naquele conto (ou romance, ou filme, ou peça teatral, etc.) houver uma história
que desperte a curiosidade, a atenção, o envolvimento do leitor, ele próprio se
encarregará de produzir reservas de paciência. Ele dará um crédito de confiança
ao autor quando este quiser exibir floreios estilísticos, discursos
ideológicos, propostas vanguardistas, ou o que for. Se a história for
interessante, o leitor vai em frente.
Um
livro é como uma lâmina dágua onde de meio em meio metro aparece uma pedra
confiável, formando uma trilha. A pessoa pula de pedra em pedra, confiando que
não vai faltar logo adiante uma nova pedra onde possa pular com segurança. Uma
história precisa fornecer essas pedras.
Uma
relativa esperteza de James Joyce (cujo senso de marketing, imagino, era tão
hipertrofiado e bizarro quanto sua prosa) foi ter usado o Ulisses de Homero
como escada, como grade, como meta-mapa para que os pobres leitores não se
perdessem. Já se disse que a Odisséia é somente a história de um homem
querendo voltar para casa depois do trabalho. Não sei se a frase é anterior ou
não a Joyce, mas o fato é que o Ulisses dele era literalmente isso, era o sr.
Bloom querendo cumprir as estações da sua cruz, para poder novamente adentrar o
tálamo conjugal.
Muito
pouca gente deve pegar o Ulisses de
Joyce para ler sem saber de seu parentesco com a Odisséia de Homero. Sabendo que a história-por-trás-da-história
existe, e é facilmente acessível, muitos leitores dedicam-se a compará-las e
isto já lhes basta como incentivo para ler. Outros lerão em busca dos episódios
de cunho fescenino, ou da linguagem desabrida. Outros pelos trocadilhos, que é
só o que tem. Muitos, pela obrigação de ler e a culpa de não estar gostando.
O
Catatau de Leminski parece à primeira vista um fluxo comentativo, não
narrativo, mas os estudiosos percebem nele um fio de narrativa projetando o filósofo
René Descartes no Brasil Holandês, em pleno delírio tropical. Ninguém (a não
ser críticos especializados) lê o Catatau em busca de história. O que
tem de história, que é bem pouquinho, não seduzirá jamais o leitor comum. Eu, pelo
menos, o leio em busca de pepitas, em busca de frases, rimas, trocadilhos,
alusões clivadas ao meio, pastiches, referências sagradas e profanas.
O
ideal seria que um livro (qualquer narrativa) fosse lido no cru, sem opinião ou
informação prévia. Uma leitura a partir do zero. Num caso assim, o autor fica
com muito mais saldo junto a esse leitor se lhe fornecer o caminho-das-pedras
do “q q tá contesseno”, como se diz na web. Faça o vanguardismo que quiser,
mude as palavras que estão em tom maior para tom menor, escreva fosforescente
ou em 4D: mas conte uma história ao leitor. É uma concessão tão pequena! Contar
uma história ao leitor não é um pecado, assim como não o é compor uma melodia
bonita. Tem muito leitor que só precisa de um álibi pra embarcar numa história.
Uma
história é uma espécie de sintaxe, de sistema mimetizador das nossas
experiências e expectativas. Se a maneira como os episódios se sucedem têm
alguma lógica, o leitor aceitará uma total falta de lógica de algum outro lado.
Se eu digo: “Todos os ontoratismos são mutérios; todos os mutérios são
fardioplasmas; e todo fardioplasma é mull, portanto os ontoratismos são mulls.”
Esse trecho faz sentido como um conjunto, mesmo que as partes que o compõem
sejam indecifráveis. O que o sustenta como texto é a presença de termos de
funções bem nítidas, como todo, ser, portanto,
etc. O resto pode ser qualquer coisa. O caos só acontece quando não há sintaxe
e não há desenvolvimento de uma idéia. Se eu digo: “Cataplasma justo tição mesa
mesa alegre bambu fugir”, cada palavra isolada parece ter um significado óbvio,
mas o conjunto não faz sentido.
Deve
haver muito mais leitores em busca de histórias do que escritores que se dedicam
a contá-las. Claro que a vontade não é tudo, querer não é sinônimo de conseguir.
Claro, também, que não basta uma boa história para garantir a adesão do leitor,
se o autor escreve mal, os personagens são banais, as situações são uma coleção
de clichês. O bom leitor espera outras coisas além de um bom enredo. Mas uma
história onde vários acontecimentos se desenrolam no tempo é a melhor das iscas
para fazer o leitor querer saber o que vai acontecer em seguida. Se não fosse
assim, se não houvesse uma história interessante sendo contada, ninguém leria
catataus como a série Harry Potter, a
série Uma Canção de Gelo e Fogo, nem Grande Sertão: Veredas, Moby Dick, Em busca do tempo perdido, Os
detetives selvagens, Cem anos de
solidão, Crime e castigo.
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