sábado, 5 de setembro de 2015

3912) 7 Ovnis (6.9.2015)




Heng Sin-Yu, 33 anos, Macau, estava trabalhando à noite no seu apartamento e foi à janela fumar um cigarro quando viu cruzando o céu um ponto de luz vermelha que deixava atrás de si um rastro de fagulhas amareladas, e a única coisa que lhe veio à mente foi que alguém no firmamento estava fumando também.

Terzio Pastore, 61 anos, Ravena, passou mais de dez anos frequentando uma colina próxima à fazenda onde vivia, colina esta que se dizia ser frequentada por extraterrestres, e a única coisa estranha que viu em todo esse tempo foi uma gigantesca forma metálica quadrada, maior que a colina, elevando-se ao céu por trás dela, mas como não correspondia à forma de um disco ele decidiu não levar em consideração, e nada publicou.

Camille Nguyen, 62 anos, Pnom Penh, descreveu à imprensa local o artefato que pousou no arrozal perto de sua casa como “uma fila de contêiners de navio enganchados como uma correntinha de clipes e girando em volta de um globo-da-morte com mais de mil motocicletas dentro e uma abertura por onde saíam nuvens com asas e patas”, e a imprensa agradeceu e foi embora.

Paulo César Tostes, 41 anos, Natal, vinha dirigindo à noite pela estrada que leva a Mossoró quando viu uma banda inteira do céu se esverdear, e erguer-se ali uma semi-esfera verde-limão que ficou suspensa no ar e depois voltou a descer, escondendo-se atrás do horizonte. Nessa mesma noite ele deixou de beber.

Laura Rimanelli, 38 anos, Firenze, viu de madrugada uma estrela muito branca no céu, imóvel, tão imóvel que horas depois o céu inteiro tinha girado e ela continuava ali, como se estivesse vigiando, fotografando algo, e como Laura vestia apenas uma camisolinha bem fininha e transparente achou melhor recolher-se para longe da curiosidade erótica dos marcianos, portanto voltou ao quarto e acordou o marido para os folguedos noturnos.

Baldomiro de Sousa Dias, 55 anos, Campina Grande, estava certa noite olhando as águas do Açude Velho da janela do seu 15O andar quando viu uma formação em forma de V com mais de vinte naves passando silenciosamente, piscando em cores variadas, mas quando ergueu os olhos para o céu não viu nada, o que o fez pensar no conceito de “objetos submarinos não identificados”.

Sarah Rosten, 22 anos, Roterdam, estava comprando um sorvete no parque quando avistou um brilho avermelhado no céu azul, de onde desceu um facho de luz que a abduziu, levou-a para o planeta Zadykstra, onde ela se tornou embaixatriz da Terra, casou com o príncipe herdeiro, governou num palácio de cristal e ônix, morreu aos 97 anos aclamada pelos descamisados locais, recebeu o troco e o sorvete e voltou para casa pensativa.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

3911) Mark Twain e a monarquia (5.9.2015)




Em seu romance Huckleberry Finn, Mark Twain conta a fuga de Huck Finn e do negro escravo Jim numa jangada à solta rio afora, e a certa altura aparecem dois dos seus personagens mais divertidos. 

São uma dupla de trambiqueiros que Huck salva e traz a bordo da jangada. Os resgatados contam o que fazem e por que razão vinham sendo perseguidos pela população da vila, e, num episódio hilário, revelam ao menino e ao negro suas verdadeiras identidades: um diz ser um duque inglês, e o outro se confessa o delfim-herdeiro do trono da França. São dois heróis picarescos; cruzam-se nesse momento pela primeira vez, e daí em diante vão se envolver em mil pequenos golpes, encenações. E Huck comenta:

“Não levei muito tempo para compreender que aqueles mentirosos não eram reis nem duques, coisa alguma, e sim simples vagabundos e aventureiros. Mas nada disse, nem deixei transparecer; guardei-o para mim mesmo; é o melhor; assim se evitam brigas e aborrecimentos. Se eles preferiam intitular-se duques e reis, eu não tinha objeções a fazer, contanto que se mantivesse a paz na jangada. E também não adiantava dizer a Jim, de modo que não lhe disse. Se eu nunca aprendi nada que valesse a pena com papai, aprendi pelo menos que a melhor maneira de lidar com essa espécie de gente é deixá-los agir a seu modo.” (Cap. XIX, tradução de Alfredo Ferreira)

O duque e o rei, como passam a ser chamados, são uma dupla cômica picaresca tradicional. Não são propriamente o Palhaço e o Besta, que Ariano Suassuna identificava em muitas narrativas populares, e usava nas suas. São dois espertalhões de personalidades e recursos diversos, em permanente luta um contra o outro, o que não exclui alianças eventuais em função de um golpe mais polpudo, ao fim do qual cada um procura trair o outro. 

Lembram os personagens de Michael Caine e Steve Martin em Os Safados, só que numa ambientação paupérrima de beira de rio, entre populações puritanas e crédulas.

Huck os aceita porque sabe que são dois intrujões inofensivos, capazes na pior das hipóteses de dar um prejuízo passageiro em alguém. Trapaceiros de beira de estrada, como certos tipos de Edgar Allan Poe, que mais sofrem do que gozam a vida que levam. 

Huck lê os dois corretamente, consegue vê-los com ironia, estar em guarda. O modo como explica ao escravo Jim como funciona a monarquia, e como Henrique VIII casava com uma nova esposa a cada noite, e pela manhã mandava decapitá-la, o deixa bem próximo das ironias de Dom Pedro Dinis Quaderna sobre o modo sanguinolento e saqueador como foram construídas as grandes monarquias européias a quem prestamos tantos salamaleques e rapapés.






quinta-feira, 3 de setembro de 2015

3910) A cor de Lovecraft (4.9.2015)




(ilustração: Virgil Finlay)


Traduzi há pouco tempo, para uma antologia a sair pela Editora Poetisa (Santa Catarina) o conto “The Color Out of Space”, de H. P. Lovecraft.  Os meus contos favoritos dele são “O Chamado de Cthulhu” e “The Shadow Out of Time”, que me produziram os impactos iniciais, aqueles contos em que pela primeira vez entramos em contato com o universo e a imaginação de um autor. Mas “A Cor que Caiu do Espaço”, destrinchada linha por linha, é uma história que reúne “espíritos” de diferentes gêneros. Tem algo dos “tall tales” rurais, as histórias dos matutos a respeito de acontecimentos insólitos em seu interiorzinho pacato. Tem algo dos contos de FC que descrevem a chegada à Terra de alguma presença maligna. Tem algo dos contos góticos sobre uma sucessão de mortes inexplicáveis concentradas num grupo de pessoas, ou num local.  Tem algo daqueles contos cruéis em que coisas ruins acontecem a pessoas boas, e a única justificativa para isso é que o Universo nos vê com indiferença, ou, melhor dito, não nos vê.

Um meteoro cai sobre uma fazenda e sua substância misteriosa contamina ou mata tudo em redor, a água, a vegetação, os animais. E tudo adquire uma coloração que nunca havia sido vista pelo homem. A monstruosidade daquilo, segundo Lovecraft, não está na biologia de uma criatura, e sim na cor. Nas suas cartas desse ano (1927) HPL diz que se trata mais de um “estudo de atmosfera” do que de um conto, e tem razão. O destino dos personagens é previsível, mas o horror brota da cegueira deles em admitir o que lhes está acontecendo até que seja tarde demais, somente porque é algo que não têm como explicar.

É um ser semi-gasoso, reconhecível pela sua cor, uma cor nova, como o “flicts” cuja existência as câmeras da Nasa captaram na Lua e Ziraldo oficializou em livro. O que nos obriga a lembrar de outro famoso conto, desta vez de Ambrose Bierce (o criador de “Carcosa” e autor do Dicionário do Diabo), “The Damned Thing”, outra “história de fronteira” sobre um ser que não pode ser visto (mesmo quando está atacando e despedaçando um homem) porque sua cor não pode ser captada pelo olho humano.

Se tais cores pudessem ser produzidas geneticamente (p. ex., nos pelos de um animal) seria possível montar exércitos semi-invisíveis, ou, melhor ainda, atacantes solitários nessa condição, entrando e saindo num sistema “stealth” embutido em seu próprio DNA. O conto de horror de Lovecraft tem uma premissa pretensamente justificada pela óptica; não custa muito ver nele um precursor da “camisa mais feia do mundo” que William Gibson propõe em História Zero (Ed. Aleph, SP), a camisa tão feia que não é registrada por uma câmera de vigilância.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

3909) Borges, Calvino e a tradução (3.9.2015)





A Antologia de Literatura Fantástica (1940), organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo é um clássico do gênero; no Brasil, saiu recentemente pela editora Cosac Naify, com tradução de Josely Vianna Baptista. 

Numa nota incluída na edição brasileira, é citada uma frase de Borges sobre a edição italiana. Queixa-se ele: 

“Não traduziram nossa antologia: procuraram as fontes e traduziram. Agiram assim em prejuízo do leitor, naturalmente. Não deveriam ter escolhido um livro de autores que se distinguem por suas transcrições e citações infiéis”.

Deixo para os mais metódicos e mais disponíveis do que eu a tarefa de comparar com os originais as versões dos contos desse volume. As traduções de Borges são famosamente não-confiáveis; uma vez chequei sua versão de “A carta roubada” de Poe e constatei que era substancialmente mais enxuta do que o original. 

Isso é um crime de lesa-arte? É um péssimo exemplo para tradutores jovens e apressados, ou idosos e impacientes?  Para mim, essa atitude desabusada tem a ver com o valor quase místico que Borges atribuía aos grandes enredos, os grandes “plots” literários, que ele julgava capazes de sobreviver a séculos de traduções, adaptações, etc.

Isto me trouxe à mente uma atitude parecida, a de Ítalo Calvino ao compilar as suas Fábulas Italianas (Companhia das Letras, 1992, trad. Nilson Moulin). Reunindo versões de contos populares da Itália, num trabalho comparável ao feito entre nós por Câmara Cascudo ou Sílvio Romero, diz Calvino, em sua longa e excelente introdução, que não se furtou a “meter a mão” nas histórias compiladas e traduzidas de fontes em dialeto: 

“Inventei nomes e lengalengas... montei a narração conforme quis... trabalhei por inventiva própria... ocasionalmente, atribuí nomes às personagens...”  

E afirma: 

“Quantas vezes defrontei-me com uma página vernácula cuja tradução equivalia à morte?; e quantas outras vezes, por outro lado, só encontrava testemunhos tão frágeis de uma fábula que me interrogava se não deveria, para salvá-la, redesenhá-la de alto a baixo com novas imagens e soluções?”.

A atitude do escritor, como se vê, é inversa à do tradutor ou à do folclorista profissional. Ele não vê o original como algo precioso a ser preservado a todo custo mediante uma cega fidelidade. O escritor é (diz Calvino) “um elo da anônima cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam”. E cita um provérbio toscano: “a novela vale por aquilo que nela tece e volta a tecer quem a reproduz.” 

Um precedente perigoso, claro, dado o grau de irresponsabilidade em nossas selvas editoriais. Mas esta é uma questão crucial onde quer que um autor-criador se preste a intermediário em qualquer ponto da cadeia de transmissão das histórias.






terça-feira, 1 de setembro de 2015

3908) O açude secou (2.9.2015)




(foto: Diego Vara)


Fazia mais de trinta anos que não se via uma seca como aquela. O sol torrava tudo, como um bafo de dragão. Os córregos tinham virado sulcos poeirentos cobertos de seixos e de galhos secos de favela. Os calangos corriam doidos, de boca aberta ao vento. Restavam poucos poços, e pessoas vagavam com potes na cabeça, em busca dos restos de água barrenta. 

Dona Mina estava sentada na lateral da casa, pegando sombra, quando viu dois meninos que vinham em toda carreira, levantando pó. Ao chegar perto, pararam e o maior dos dois, meio com medo, disse: “Dona Mina... Mandaram avisar a senhora que acharam ele.” 

E com isso fizeram meia volta e retornaram a toda.

A velha suspirou, coçou as pernas, fez o Pelo-Sinal e entrou. Trocou o camisolão escuro por um vestido preto, amarrou no cabelo um lenço preto com a imagem de um Coração-de-Jesus, e foi chamar Damião, que estava cortando um resto de palma para a bezerra. Quando ele viu o vestido da mãe largou a foice e seguiu atrás. 

Vieram andando calados, as alpercatas estralando nas pedras, até pegarem a baixa do açude. Viram de longe o bacião vazio, amarronzado, a lama seca já se esfarelando. Touceiras de mato empapado de terra, aqui e ali peixes secos e duros como casca de árvore, latas esburacadas pela ferrugem.

Lá na frente um grupo de pessoas viradas na direção deles protegia os olhos do sol com a mão erguida. Foram até lá, firmando os pés com dificuldade nos torrões soltos. 

Junto de uma moita coberta de lama, guardada pelo semicírculo de gente silenciosa, viram a ossada suja, de criança, afundada na terra. 

Dona Mina chegou perto, fez o sinal da cruz, ajoelhou-se. Viu o crânio comido pelos peixes, as costelas finas, um braço num gesto desengonçado, o calção de time de futebol semi-apodrecido. 

Rezou baixinho o Pai-Nosso, a Ave-Maria, o Credo, a encomendação-das-almas, e um sussurro de responsórios a acompanhou.

Terminada a reza, fez um sinal ao filho, que se adiantou, usou um galho grosso como alavanca, despregou a ossada onde ela se grudava ao barro espesso. Conseguiu com jeito liberar inteiras as pernas, quase encobertas. 

Quando terminou de soltar tudo, alguém lhe estendeu um saco de pano onde ele agasalhou os despojos, por entre murmúrios e améns.

Dona Mina, sem uma palavra, fez meia volta e foi no rumo de casa, onde uma cova antiga esperava aberta, abrigada por palhas de bananeira. Depois de tantos anos, pela primeira vez dormiria em paz, sabendo onde estava o filho. 

O sol castigava as pedras, rebatia nas malacachetas, e Damião vinha atrás dela em silêncio, a barba grisalha molhada de lágrimas, os braços robustos protegendo o irmão gêmeo, morto no tempo da fartura.





segunda-feira, 31 de agosto de 2015

3907) "As Infâncias de Quaderna" (1.9.2015)





(Irandhir Santos, em A Pedra do Reino)



Dias atrás estive no “XIII Festival Recifense de Literatura – A Letra e a Voz”, que este ano homenageou Ariano Suassuna. 

A sugestão do festival era de fazer uma leitura de textos do autor. Pensei em ler episódios do Romance da Pedra do Reino, mas preferi ler trechos de uma obra de Ariano que quase ninguém conhece: o romance História D’o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: As Infâncias de Quaderna, que pouquíssimas pessoas já leram, mesmo em Pernambuco e na Paraíba. 

Esse romance seria o volume 3 da série cujo número 1 é o Romance da Pedra do Reino e o número 2 é História D’o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao Sol da Onça Caetana

O 1 e o 2 saíram pela Ed. José Olympio, mas o 3 foi publicado apenas em folhetins dominicais no Diário de Pernambuco, de 2-5-1976 a 19-6-1977.

Ariano não quis publicá-lo em livro, porque viu muitos defeitos na obra, que, mesmo assim, tem inúmeras passagens brilhantes, da melhor prosa que ele já escreveu. E mais do que isso: esclarece um sem-número de coisas a respeito do personagem Quaderna, seus pais, seu passado, sua criação. 

Chego mesmo a afirmar que só entendi o Romance da Pedra do Reino (que eu já lera várias vezes) quando li As Infâncias de Quaderna, que tapa muitos buracos e esclarece muitos pontos duvidosos do outro livro.

Nas Infâncias ficamos sabendo, p. ex., que Quaderna foi parido na Fortaleza de Santa Catarina, na capital da Parahyba; que foi raptado por ciganos, resgatado pelo cangaceiro Antonio Silvino, e devolvido por este à família dos Garcia-Barreto, seus tios maternos. 

Temos também uma visão mais completa de um personagem crucial da trama, o fazendeiro e usineiro Antonio Morais, que no Romance da Pedra do Reino aparece apenas de passagem. Morais é o grande vilão da obra, representante do capitalismo internacional e da mentalidade predatória urbana, e se contrapõe a Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o tio de Quaderna, que encarna as virtudes cavalarianas da nobreza do Sertão.

Quando perguntei a Ariano se valia a pena desperdiçar tanta coisa boa que há nas Infâncias, ele disse que uma parte desse material seria aproveitada no famoso “livro novo” que ele ficou preparando durante todos estes anos, que já foi chamado de A Ilumiara, mas cujo título atual é O Jumento Sedutor

Não li essa obra, e ainda estou à espera; mas acho que mesmo que não se publicasse o texto completo das Infâncias, que seria do tamanho da Pedra do Reino, daria para fazer uma seleção de capítulos, entremeados por algum texto explicativo, resultando num volume de 200-250 páginas com alguns dos pontos altos da prosa de Ariano.






sábado, 29 de agosto de 2015

3906) Em 100 caracteres (30.8.2015)




Multiplicam-se por aí os saites e concursos de minicontos, microcontos, nanocontos ou que nome lhes queiram dar. As fórmulas sugeridas são muitas: contos com 6 palavras, com 50 palavras, com 100 palavras, com 100 caracteres, com duas frases... Para quem está treinando pra escritor, uma das primeiras oficinas deve ser a da contenção. Dizer muito em pouco espaço. Em certos cursos de roteiro, exige-se do roteirista que conte a história do seu filme em uma linha, em dez linhas, em uma página e em dez páginas. Se o sujeito é capaz de fazer isso satisfatoriamente, está bem encaminhado.

Contos de “até 100 caracteres” foram requisitados pelo jornal Opção (aqui a reprodução de todos os contos inscritos: http://tinyurl.com/pok2nyz) em maio passado. A maior parte dos concorrentes mandou uma frase, uma reflexão, um diálogo... Pra mim falta a muitos deles (por mais interessantes que sejam como frases) o que caracteriza o conto: uma noção precisa de espaço, de ação, de sequência (começo + meio + fim, ou qualquer equivalente a isto).

Veja-se o texto de Alessandro Garcia (RS): “No começo, descrença. Depois, medo, ao ver Bob – tão pequeno – olhando para a faca daquele jeito”. Temos aí não uma ação, mas uma revelação gradual de uma situação potencialmente trágica. Para mim equivale a um conto. O mesmo eu não diria deste de Geraldo Lima (DF): “O amor daquele homem era doença. Por anos pediu socorro, mas ninguém a ouviu.” Há o registro de uma situação, mas, ao contrário da outra, não há a sugestão clara de um plot, um enredo possível.

Pode-se neste curto espaço criar uma faísca de história com terror e humor ao mesmo tempo, como Wilson Gorj (SP): “Morrer? Nem pensar! Deu três pancadinhas na madeira… do caixão já coberto de terra.”  Ou brincar com a metalinguagem, como Débora Ferraz (PE): “Todos os personagens desta história morrem antes de chegar à próxima linha.”, se bem que neste caso não chega a ser um conto, pelo meu presente critério. Lucas Rossi (SP) faz um bom flagrante do cotidiano: “Da janela, gritou pro vizinho: ‘sou puta mesmo’. Depois, fechou a persiana e foi lavar a louça”. O flash é ótimo; mas não existe um conto aí.

Há dramaticidade em Brunno Falcão (GO): “Temia a altura quando pulou para a morte de um prédio em chamas, em 1974. Até hoje escutam seu grito”,. E em Carlos Rabelo (GO): “Zacarias viu a vizinha arrodeada de borboletas. Suspirou e apertou o laço. Viu lá longe o mar. Fim.” Para mim, é possível, em até 100 caracteres, passar uma impressão forte de lugar, de pessoas, de ação, de algo que se desenrola e se modifica no tempo. Entre a primeira e a última palavra, algo forte deve acontecer.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

3905) Contracapa de gif (29.8.2015)




(ilustração: Marcelo Grassmann)

&  é mais fácil esconder um incêndio da vizinhança do que uma doença da família  &  minha cabeça é um jogo de basquete onde a todo instante uma das duas opções de ação passa à frente do placar  &  o verdadeiro pintor está somente ajudando a tinta a dizer alguma coisa  &  uma bússola não dá opinião nem emite juízos de valor  &  a ciência admite, consternada, que qualquer polvo é mais inteligente do que qualquer povo  &  suponhamos que alguém lhe oferecesse um dia no paraíso e outro no inferno, alternadamente?  &  um dia inventaremos plantas de plástico capazes de brotar e de crescer sozinhas  &  tem noites que eu durmo entre almofadas de pedra e lençóis de lixa  &  um navio olhando lá de longe o porto de uma cidade em quarentena  &  como era bom se existisse um botão-de-ligar-e-desligar para cada coisa  &  eles compram arte popular mas se o artista lhes batesse à porta não lhe ofereceriam sequer um café com pão  &  um livro fechado é uma moeda girando, esperando que alguém o leia para tombar e mostrar o que é  &  se é para rejeitar o Halloween vamos mandar embora junto o Natal  &  tem horas em que tudo parece um carnaval de cegos, uma debandada de sonâmbulos  &  quem espera encontrar a cadeira à sua espera na volta não entende nem de voltas nem de cadeiras  &  se o chão é enladeirado um banco de praça tem que ser torto para poder ficar reto  &  é bom não confundir um mero crepúsculo individual com o fim-do-mundo coletivo  &  a explosão dormindo na granada e acordando de mau humor  &  às vezes é mais útil ser destruidor de clichês do que ser formador de opinião  &  quando o diretor diz “luz, câmera, ação” todo planejamento vai pro espaço e o mundo recomeça a andar por si  &  os objetos são muito fiéis a si mesmos quando deixados quietos &  quando o corpo começa a doer assim do-nada é hora de cuidar da alma  &  na fila dos livros para leitura a vez é sempre de quem chegou por último  &  existem fãs que são mais fãs de sua atividade-de-fã do que do artista que dizem admirar  &  aqueles dias em que uma canção antiga começa a rodar em loop na cabeça da gente como um besouro tentando atravessar o vidro da janela  &  existem palavras-paletó que têm sinônimos perfeitamente camisa-esporte  &  o mundo é uma torneira aberta, o cérebro da gente a panela cheia  &  como se fosse um barbeador elétrico querendo depilar um urso enfurecido  &  a partitura preserva o esqueleto da música, o artista fornece carne e sangue na hora da execução  &  o futebol está voltando a ser o esporte-para-os-ricos que era quando começou  &  só é amor ou ódio quando é idéia fixa, insônia, exaltação sem propósito, repetição obstinada  &

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

3904) Neo Roman (28.8.2015)




Num texto antigo (“A Defence of Detective Stories”, 1902), G. K. Chesterton defende a teoria de que na vida urbana existe toda uma poética e todo um romantismo, não no sentido amoroso, mas no sentido de um mundo movido mais pela imaginação e o desejo do que pela observação e raciocínio. “A poesia da vida moderna”, como ele a chama, tem a ver, p. ex., com o olhar urbano, meio cínico e meio melodramático de Baudelaire sobre Paris. 

Diz GKC: “Essa forma de perceber a poesia que há em Londres não é pouca coisa. Uma cidade propriamente dita é mais poética do que o campo, porque, enquanto a Natureza é um caos de forças não-conscientes, a cidade é o caos das que o são”.  A argumentação dele é longa e variada; ilustra e reafirma essa visão. Ela já foi expressa sob a inequação de que o civilizado é superior ao primitivo, ou de que a capital é mais moderna que o interior; mas Chesterton sugere uma idéia melhor, do ponto de vista literário: a de que o mapa urbano é mais cheio de maravilhas, terrores e mistérios do que a vida entre as hordas primitivas.

Ele cita Sherlock Holmes, para quem o homem urbano vive um “romance do detalhe” onde cada telha de um teto tem um sinal característico, está coberta de informação, como se tivesse sido rabiscada com cálculos, de cima a baixo. A vida urbana é concentrada (milhões de pessoas), variada (classes, ofícios, etnias, ideologias, etc.) e sob pressão. O resultado é o romance de mistério, de aventura, de antecipação, de horror, de lição de abismo.

Diz ele: “A civilização é a mais sensacional das arrancadas e a mais romântica rebelião. (...) Quando num romance policial o detetive enfrenta sozinho, com um destemor que beira o cabotinismo, os punhos e os punhais de uma corja de assaltantes, isso decerto nos ajuda a relembrar que é o agente da justiça social que constitui a figura mais original e poética, enquanto os gatunos e os salteadores não passam de plácidos conservadores do velho cosmos, satisfeitos com a respeitabilidade imemorial dos lobos e dos gorilas.”

Deve ser por causa de tiradas desse tipo que GKC era ferrado como reacionário, pelos mesmos que consideravam o romance detetivesco, como gênero literário, um apologia à polícia, uma louvação de como a lei e a justiça controlam delitos individuais. A literatura policial, no entanto, é a romantização conjunta dos Holmes e dos Arsène Lupins, do Cavalheiro Dupin e de Fantomas, dos normalizadores e dos transgressores; uma classe não existe sem a outra. O Neo-Roman da cidade recobre da obra de Baudelaire e Rimbaud até a de Rubem Fonseca e de Chandler. São aqueles casos onde a sociedade é o surfista e o crime é o mar.

3903) O dia da Abolição (27.8.2015)



(A Princesa Isabel; no destaque, Machado de Assis)


Em 1888, dias antes da assinatura da Lei Áurea, o pai de Lima Barreto, que era funcionário público, chegou em casa e disse ao filho: “A lei da Abolição vai passar no dia dos teus anos.”  

O que de fato aconteceu (Lima nascera em 13 de maio de 1881). O escritor estava na multidão diante do Paço Imperial, que aos seus olhos tinha a altura de um “sky-scraper” (ainda não tínhamos inventado o termo “arranha-céu”). Viu falar um homem, muito aplaudido, mas não tem certeza se era José do Patrocínio.

Diz ele: 

Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com o lenço, vivas... Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação.

Ele lembra também a missa campal celebrada no Campo de São Cristóvão, quando então viu a princesa imperial mais de perto. Ela lhe pareceu “loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado”.  Recentemente circulou nas redes sociais uma foto dessa comemoração em São Cristóvão, onde a princesa aparece cercada de autoridades, e muita gente viu num dos homens à sua volta o rosto de Machado de Assis.

É interessante ver as impressões de um dos nossos primeiros grandes escritores negros sobre este dia. Lima as escreveu num artigo de 1911 (republicado em Um Longo Sonho do Futuro, Graphia, 1993), e diz, com certa candura: 

Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.

Ele lembra a alegria da criançada no colégio em que estudava, à Rua do Resende: 

Com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia. Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: Vou dizer a papai que não quero mais voltar ao colégio. Não somos todos livres?

As grandes agitações políticas têm esse poder de nos jogar na euforia, quando na verdade temos apenas a idéia mais superficial e enganosa sobre o que de fato está acontecendo. As ilusões passam, mas se a alegria foi grande, a lembrança dela é o que fica. Não se cancelam as alegrias retroativamente.