segunda-feira, 1 de junho de 2015

3829) A estética do fragmento (2.6.2015)



A literatura fantástica tem um subgênero inteiro, ainda mal catalogado, de histórias voltadas para mistérios (de variadas naturezas) envolvendo artefatos, documentos, objetos, móveis, obras de arte, cartas, etc. que por algum motivo estão associados a algum fato extraordinário, e que às vezes são a única pista sobre esse fato. 

Em alguns casos, uma cultura inteira desapareceu e dela ficou apenas um livro, ou um aparelho, ou um monumento. 

Em outros, é um pedaço de um manuscrito, uma relíquia recuperada, como em Um Cântico para Leibowitz de Walter M. Miller. Com esse elemento em mãos, é possível às vezes reconstituir uma história, assim como pegadas e um osso permitem aos cientistas descrever em detalhe um animal e seus hábitos.

Num artigo de Marcio Renato dos Santos na revista paranaense Cândido (#45, abril), é discutido o conceito literário de fragmento, a noção da narrativa fragmentada ou descontínua, que para muitos é uma das marcas do modernismo e de muito que veio depois. 

Essa discussão pode se voltar para a própria estrutura da narrativa, vista não como um fluxo uniforme e contínuo, mas como uma sucessão de flashes, de peças soltas, formando uma espécie de colagem onde a justaposição predomina sobre a sequência. Mas pode se voltar também para a valorização do fragmento em si, do texto que parece ser algo de que se perdeu o começo e o fim, restando apenas um bloco cujos complementos devem ser deduzidos pelo leitor.

O artigo cita Marcelo Coelho, da Folha de São Paulo, que diz: 

“Acho que o interesse pelo fragmento começa com os românticos alemães, Schlegel e Novalis. O interessante é que, provavelmente, os românticos passaram a valorizar esse tipo de coisa quando perceberam a beleza das ruínas arquitetônicas e, especialmente, a beleza misteriosa dos textos gregos e romanos que nos chegaram incompletos.”

Um bom exemplo disso são as citações fragmentárias que Isaac Asimov faz da fabulosa "Enciclopédia Galáctica”, em sua série Fundação, ou as citações que H. P. Lovecraft e seus seguidores fazem do Necronomicon, o lendário códice de magia maligna. 

O fragmento tem a função literária de sugerir o Todo através da Parte, o tubarão através da barbatana. A incompletude é a sua principal força literária. O resíduo tem mais força do que a apresentação (se isso fosse possível) do texto completo da obra – ele nos força a imaginar, a prolongar os contornos do fragmento de maneira a vislumbrar a silhueta da obra completa. Diante do livro completo do Necronomicon, só restaria ao leitor a tarefa passiva de lê-lo. Diante do fragmento, o leitor “escreve” o livro.




sábado, 30 de maio de 2015

3828) Um livro de presente (31.5.2015)



Ganhar livros no aniversário? Beleza! E dar livros no aniversário dos outros pode ser melhor ainda. Presentear livros pressupõe que o aniversariante goste de ler, e que a gente saiba que tipo de livro ele prefere. Já me ocorreu encontrar um livro num sebo, durante uma viagem, comprá-lo, e ficar meses com ele esperando o aniversário de Fulano para fazer-lhe uma surpresa. Pra mim, presentear dessa forma é muito melhor do que passar correndo num shopping, no fim da tarde, para comprar uma coisa qualquer no trajeto para o aniversário de Fulano. Presente não devia ser a obrigação de um dia. Não devia ser, como diz um piadista amigo meu, “o crachá pra entrar na festa”. Devia ser uma coisa de pessoa para pessoa, independente de festa, de data, de compromisso. Entro numa livraria em São Paulo e vejo um livro daquele poeta obscuro que minha amiga Fulana, da Bahia, vive procurando sem achar. Pegar esse livro ali, na hora, pra mandar pra Fulana (mesmo sem aniversário) me parece um gesto de carinho muito melhor do que o “crachá” comprado às pressas.

Como falei, tem que ser um livro personalizado, que tenha a ver com o destinatário. Não vou fazer como outro amigo, que deu de presente à esposa (que nem lia francês) as obras completas de Baudelaire, o poeta preferido dele. Chamo a isso “presente de gringo”. Gringo só faz um favor a você quando sai ganhando alguma coisa com isso. Eu posso não ser fã de Star Trek, mas se meu amigo Sicrano é fã da série e ainda não tem o livro que acabou de sair, por que não levar esse livro para ele?  Presente é pra quem ganha.

Tem outro aspecto interessante no caso mais raro (mas que é o meu) de quem publica os próprios livros. Gosto de dar um livro meu de presente no aniversário de alguém; acho que isso é mais personalizado ainda, porque não é somente algo que eu escolhi, é algo que escrevi, e existe aquela sensação de estar oferecendo metaforicamente um pouco de mim àquela pessoa. Claro que continua a valer a regra do interesse, porque não vou dar um livro de poemas meus a quem não lê poesia, ou de FC a quem não gosta de FC.

E pensando bem, quando damos um livro nosso de presente, esse presente acaba funcionando em mão dupla. Queremos dar aos nossos amigos o prazer de ler um livro nosso, mas queremos também dar a nós mesmos o prazer de contar com a leitura deles. É um presente recíproco, porque dar um livro nosso é pedir em troca a leitura, a atenção, o tempo precioso dos nossos amigos. Queremos seus olhos, sua mente. Um livro presenteado assim é um presente em mão dupla, e às vezes o maior presente que damos a alguém é a leitura do livro que ele nos presenteou.




3827) "O Ladrão de Bagdá" (30.5.2015)




Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 30, será exibido O Ladrão de Bagdá (1940). Há uma certa dificuldade na atribuição de autoria deste filme, que durante a produção passou pela mão de vários diretores, e ora é creditado a um, ora a outro. Michael Powell e William Cameron Menzies são talvez os nomes mais citados, mas também dirigiram cenas Alexander Korda (o produtor), Zoltan Korda (irmão deste, e produtor associado), Ludwig Berger e Tim Whelan.  Feito durante a II Guerra Mundial, o filme teve parte das cenas filmadas na Inglaterra e parte nos EUA. Segundo o saite IMDB, é fácil saber o local onde foram feitas várias cenas: o rígido código moralista do cinema norte-americano da época fez com que o traje das odaliscas fosse mais “composto” nas cenas ali filmadas.

É uma fantasia oriental, a história de um jovem que se apaixona por uma princesa e tem que disputá-la com Jafar, um vizir maldoso (interpretado por Conrad Veidt), e recebe a ajuda de um menino de rua interpretado por Sabu, ator-mirim indiano que fez muito sucesso na época. Muitas situações, personagens e cenas deste filme foram reaproveitados anos depois, como homenagem, no desenho Aladim, da Disney.

Foi um dos filmes que marcaram minha infância, porque o vi numerosas vezes (era reprisado nas matinais de domingo), e existem ecos dele no meu romance A Máquina Voadora (1994). Consta que foi um dos primeiros filmes em que foi usada a trucagem de tela verde, ou “chroma-key”, tendo ganho o Oscar de Melhores Efeitos Visuais naquele ano, além de Fotografia e de Direção de Arte.

Um gênio gigantesco saindo como uma nuvem negra de dentro de uma garrafa, em plena praia; um cavalo com asas, e depois um tapete voador, sobrevoando uma cidade; a batalha do herói com uma aranha gigante no centro da teia; autômatos que se movem, dançam, lutam; são só algumas das imagens marcantes do filme, que é talvez a melhor adaptação das Mil e Uma Noites já feita no cinema. Quando Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou num dos extremos de sua escala o gênero “maravilhoso”, referia-se a estes universos onde todos os prodígios, mesmo os que causam espanto, são considerados naturais, porque o mundo onde acontecem é um mundo feito de prodígios onde não vigora nenhum filtro materialista determinando o que pode ou não acontecer.




quinta-feira, 28 de maio de 2015

3826) Somos um videogame (29.5.2015)


(ilustração: Julian Garcia)



Escrevi nestes dias sobre o PlayStation Terra, o hiper-mega videogame que é o nosso universo, de acordo com uma teoria de Rich Terrile, cientista da Nasa. Ele diz que o avanço da computação e do processamento de dados leva a crer que um dia criaremos simulações de computador equivalentes a um mundo de verdade. Diz Terrile que o universo, como a computação gráfica, é formado de pixels, minúsculos pontos ou unidades indivisíveis. Há um limite da matéria além do qual não conseguimos observar, o que sugere que mesmo sendo o número de “pixels” do universo um número espantosamente grande, não é infinito, e se não é infinito é computável.

Cada um desses pixels do nosso mundo, diz ele, pode ser definido por coordenadas de tempo, espaço, volume e energia. Ele diz: “Estamos no limiar de um estado em que seremos capazes de criar um universo, uma simulação, e de descobrir que nós também estamos vivendo no interior de uma simulação parecida, que poderia por sua vez produzir mais uma, e assim por diante. Nossos seres simulados poderiam produzir novas simulações. O que me intriga é que, se existe um criador, e no futuro haverá um criador que seremos nós mesmos, isto quer dizer que nós também podemos ter sido criados por alguém. Somos como deuses, e como criaturas de deuses, e tudo é produto nosso.”

A FC brinca com essa idéia há décadas. No conto de Frederik Pohl “The tunnel under the world” (1954, texto aqui no Projeto Gutenberg: http://tinyurl.com/mbvtvfn) o personagem começa a perceber estranhas descontinuidades e repetições no seu dia-a-dia (os famosos “erros da Matrix”), até descobrir que o seu mundo é uma simulação, com pessoas dotadas de pseudo-consciência e pseudo-livre-arbítrio, feitas para testar campanhas publicitárias. (Premissa retomada por Daniel F. Galouye em seu clássico Simulacron-3, de 1964.)

Fernando Pessoa, estudioso dos filósofos gnósticos, fez experiências com essa idéia de uma hierarquia de deuses criando uns aos outros, cada novo deus menor e mais imperfeito do que o que o criou. No soneto 1 do tríptico “No Túmulo de Christian Rosenkreutz”, ele diz:  

“Quando, despertos deste sono, a vida, / soubermos o que somos, e o que foi / essa queda até corpo, essa descida / até à noite que nos a Alma obstrui, // conheceremos pois toda a escondida / verdade do que é tudo que há ou flui? / Não: nem na Alma livre é conhecida… / nem Deus, que nos criou, em Si a inclui. // Deus é o Homem de outro Deus maior: / Adão Supremo, também teve Queda; / também, como foi nosso Criador, // Foi criado, e a Verdade lhe morreu… / de Além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda; / aquém não há no Mundo, Corpo Seu.”




quarta-feira, 27 de maio de 2015

3825) O romance anagrama (28.5.2015)



A literatura experimental exige uma faísca apenas de imaginação – e uma paciência infinita. Certas experiências literárias radicais do nosso tempo se parecem com auto-punições, com castigos que ninguém teria coragem de impor a outras pessoas mas que, um belo dia, um cara resolve impor a si mesmo. Vejam só o caso de Kabe Wilson, artista multimídia britânico. Quatro anos atrás ele estava pensando na arte do anagrama (misturar as letras de uma palavra para obter uma palavra diferente). Wilson pensou: “E se alguém usasse essa técnica com as palavras de um livro? E se alguém pegasse todas as palavras de um livro, inclusive as repetições, e as misturasse para dar origem a outro livro?”.

O resultado está aí: é o romance experimental Of One Woman Or So, cujo texto tem as 37.971 palavras do livro-ensaio de Virginia Woolf A Room of One’s Own (1929), arrumadas noutra ordem e produzindo um livro diferente. Para combinar, o título do livro é um anagrama do título original, as mesmas letras combinadas para formar novas palavras. (Ver aqui: http://tinyurl.com/lv7jux2).

Wilson usou computadores, processadores de texto, tesoura, cola, papel, para se certificar de que não estaria usando a mais, ou a menos, palavras comuns como “the” ou “be”.  Ele usou palavras do original para aludir a autores nossos contemporâneos, como Edward Said, e para inserir no novo livro menções a Harry Potter ou ao time de futebol Manchester United. “O mais difícil de tudo,” diz ele, “é que eu não sabia se ia ser possível ou não, e só poderia descobrir quando chegasse no fim. O meu medo era de compor o livro inteiro e ficar no final com 300 utilizações de uma mesma palavra, sem nenhum lugar para encaixá-las”.

Isso é literatura? Para mim é, apesar de ser uma versão mais complicada da criação literária, que já tem dificuldades de sobra. Mas Kabe Wilson diz: “Eu me vejo mais como um artista plástico do que como um escritor. Era importante ter, no final do processo, alguma coisa que eu pudesse colocar numa exposição”. O livro está exposto em 145 pranchas tamanho grande, com todas as palavras recortadas e coladas em suas novas posições.

Nesta coluna, escrevi dias atrás sobre “Livros interferidos”. Os textos literários (e os livros impressos que lhes dão suporte) estão se tornando uma nova matéria-prima, um novo material bruto. Visto geralmente como o fim de um processo literário, o livro impresso é agora o ponto de partida para um novo processo de criação. Reflexo de uma época de abundância de informação, tecnologias de manipulação do texto a custo zero, atitude de ambígua veneração para com as obras canônicas.



terça-feira, 26 de maio de 2015

3824) PlayStation Terra (27.5.2015)



(O 13o. andar)

Bato nessa tecla há trinta anos. O mundo em que vivemos não existe, ou pelo menos não existe como imaginamos. O planeta Terra; a humanidade e a histórias de suas civilizações; a cidade em que vivemos; as pessoas que conhecemos; a nossa vida no dia a dia – tudo isso não passa de uma simulação. Nossa consciência foi ativada artificialmente por seres mais poderosos do que somos capazes de imaginar.  E eles nos acompanham com o interesse (e o tédio eventual) de quem joga um videogame ou de quem roda no computador uma simulação para avaliar processos e resultados.

Essa idéia familiar à geração “Matrix” surgiu para mim quando li o romance Simulacron-3 de Daniel F. Galouye (adaptado para o cinema como O 13º. Andar, de Josef Risnak, 1999).  A FC explorou de mil maneiras este tema do indivíduo que descobre que seu mundo não é real, é uma simulação feita em computador, e que ele próprio não existe, é apenas o resultado de um conjunto de instruções.

Agora, Rich Terrile (cientista do Centro de Computação Evolucionária e Design Automativo, no Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa) sugere que esse gigantesco projeto simulatório não é obra de alienígenas, mas de pessoas do futuro (aqui: http://tinyurl.com/cpmoqgs). Diz ele: “A cada 6 ou 8 anos surge uma nova versão do PlayStation. Nossa expectativa é de que em 30 anos uma versão, que deverá ser PlayStation 7, será capaz de computar cerca de 10 mil vidas humanas simultaneamente, em tempo real, ou uma vida humana completa em cerca de uma hora. Quantos PlayStation há no mundo? Uns 100 milhões. Pense em 100 milhões de consoles, cada um contendo 10 mil humanos. Conceitualmente, teremos mais humanos vivendo em PlayStations do que os humanos de carne e osso que existem hoje na Terra”.

Terrile ecoa uma frase famosa de Philip K. Dick ao dizer que a realidade não está toda pronta ao mesmo tempo, mas em forma potencial, e só se concretiza quando alguém a observa (como a Física Quântica tem demonstrado em relação ao mundo sub-atômico). Terrile compara o mundo a um jogo como a cidade de Grand Theft Auto IV: Liberty City, que seria um milhão de vezes maior que a capacidade do console, se existisse toda ao mesmo tempo. Acontece que cada trecho da cidade só aparece quando o jogador vai para lá – é como um cenário escuro e um ator andando, sob o facho de um holofote. O que não está sendo iluminado pelo holofote deixa de existir, até ser iluminado novamente. Cada um de nós viveria no seu circulozinho de luz, que se tornaria mais real, mais encorpado, quando muitos interagissem na mesma área. Talvez o nosso presente seja o passatempo sádico dos nossos tataranetos do futuro.


segunda-feira, 25 de maio de 2015

3823) A neo-monarquia (26.5.2015)



Perguntaram a Fernando Henrique Cardoso o que ele mais estranhou quando voltou a ser um político comum após dois mandatos na Presidência. Ele respondeu: “Tocar em maçanetas. Durante os oito anos em que fui presidente, não toquei em nenhuma, sempre que eu me dirigia a uma porta alguém corria e abria para mim.”  

O Brasil despiu o manto da monarquia e envergou o terno da República, mas a “liturgia do cargo” permaneceu exatamente a mesma, para citar a expressão criada por José Sarney, que entende como ninguém de salamaleques e rapapés. 

O Rei se estilhaçou em milhares de reizinhos federais, estaduais e municipais. Reis executivos, legislativos e judiciários, cada um com privilégios, venetas, com seu cardápio predileto de bajulações à la carte, de pompa e circunstância. Quando um ego humano atinge certos escalões, vira um tigre criado desde o berço com filé mignon: fica exigente que fica danado.

Paes de Andrade era presidente da Câmara dos Deputados no governo Sarney. Numa viagem oficial do mandatário, a Constituição o fez assumir por alguns dias a presidência. O que fez ele? Encheu um avião de correligionários e partiu para Mombaça (CE), sua terra natal, “para que a História registre”, disse, “que Mombaça já foi visitada por um presidente aqui nascido”. 

É um episódio digno das “Veias Abertas da América latina” de Galeano, e é a nossa versão institucional dos 15 minutos de fama que Andy Warhol prometeu a cada um no mundo futuro. E não é só no Brasil, embora a gente goste de escavacar essa ferida.

Todo mundo gosta, não é mesmo? É tapete vermelho, é cerimonial e fanfarra, é o exército de xeleléus se desdobrando para ver quem beija primeiro a mão estendida.  Excelência pra aqui, Excelência pra acolá, e ouso dizer que nossos políticos só deixaram de adotar a liteira porque uma limusine é mais confortável. Senão, Brasília pareceria um Festival Debret. 

Temos o cacoete da realeza, do sangue azul – de tudo quanto pareça nos afastar da plebe que nos ovaciona.

São só os políticos? Que nada. Artista também é chegado. Quando o Fleetwood Mac vendia dezenas de milhões de discos, exigia quatro limusines para trazer do hotel os quatro integrantes da banda. Têm a desculpa de que não é com dinheiro público, mas não é de orçamento que falo, e sim dessa necessidade de ser chamado King Disso, King Daquilo. 

São os presidentes, os papas, os magnatas, os CEOs, os integrantes de qualquer Hall of Fame. Se não fossem os humoristas que ficam pegando no seu pé, comeriam purpurina para deixar a privada coruscante de cores, e andariam pela rua vestidos de Clóvis Bornay desfilando com sua fantasia de “Apoteose de Roma Imperial”.









domingo, 24 de maio de 2015

3822) A política e o clima (24.5.2015)



(ilustração: John Schoenherr)


As razões de tantas metáforas climáticas: “o céu amanheceu tempestuoso no Congresso”, “esta semana o governo navegou em águas mais tranquilas”, etc., é que política e fenômenos atmosféricos obedecem a algoritmos de dinâmica semelhante. 

Seria interessante criar alguns critérios para avaliar o fluxo e o refluxo dos fatos políticos, num período qualquer; e depois comparar essa velocidade de respostas das massas à chegada do rádio, depois da televisão doméstica, depois da Internet, depois das redes sociais.

O viajante do tempo, na novela de H. G. Wells, empurrava para a frente a alavanca propulsora de sua Máquina, e em dois segundos víamos uma flor desabrochar e uma fruta apodrecer. 

O movimento das populações humanas, acelerado artificialmente por meios cibereletrônicos (tal como a pulp fiction prevê há quase um século), reage como um polvo que leva um choque de teiser ou como uma rã galvanizada.  Amostragens de reações que antes se colhiam em trinta anos colhem-se hoje em trinta meses. A lentidão dos fatos é ilusória, tudo está se acelerando, o vórtice já foi acessado, não há retorno nem destino.

O objetivo desse estudo, no entanto, não seria o de usar a meteorologia para prever o comportamento de candidatos, partidos, líderes em seus cargos, e o das diferentes massas, cortadas por diferentes filtros, que votam neles. 

(Imagino um enredo: Um grupo terrorista desenvolve um programa de hipno-treinamento capaz de inculcar nos que dele se beneficiam comandos de auto-destruição mediante senhas em voz alta que deflagrarão neurodetonadores em três pontos do cérebro. Os portadores inocentes desse comando serão promovidos, empregados, bajulados, terão sempre grupos que se aproximam sorridentes, apresentam-se a eles e os ajudam a galgar em poucos anos os degraus do poder. Um deles será candidato a presidente de uma nação. E na noite do debate final com audiência de 100% dos aparelhos e zero total na concorrência, o desafiante pronunciará a senha ao fazer-lhe uma pergunta, e a cabeça dele vai explodir em todas as direções.)

Talvez seja mais fácil influenciar uma revolução do que uma maré. 

A política é feita de gente como nós, mas a meteorologia tem seu próprio caos, e nosso poder se limita a interferir nela, em geral como efeito colateral de algo mais importante que estamos empreendendo. Não a conhecemos sequer para prevê-la, quanto mais para controlá-la. Já a política... 

Controlar multidões é mais fácil, todos conhecemos o nosso gado. Modelos literários e filosóficos não faltam. O tempo acelerou, encaixou no fotograma da mente, e agora a mente da gente está vendo tudo.



sábado, 23 de maio de 2015

3821) "O Inquilino" (23.5.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 23, será exibido O Inquilino (“The Tenant”, 1976) de Roman Polanski. O filme se baseia num livro de Roland Topor, romancista e desenhista de quadrinhos francês. É a história de um migrante polonês em Paris que aluga um apartamento onde algo terrível aconteceu com a inquilina anterior, e ele percebe que o edifício não gosta muito dele. A história lida com o tema da Substituição, em que um protagonista descobre uma pessoa numa situação bizarra, tenta chegar até ela (ou salvá-la, ou investigar a situação, etc.) e no final vê que seu destino é substituir essa pessoa.

É uma história de “casa assombrada” onde não há a presença de fantasmas humanos, e sim de um clima maligno que desencadeia a tragédia. O filme tem sido considerado o encerramento de uma “trilogia do apartamento” na obra de Polanski, três histórias de horror urbano ambientadas em apartamentos malignos, sendo as duas primeiras Repulsa ao Sexo (“Repulsion”, 1965) e O Bebê de Rosemary (1968).

Trelkovsky, o inquilino do título, é interpretado pelo próprio Polanski, com o ar desamparado de um Lionel Messi que não soubesse jogar futebol. Tentando investigar o suicídio da moradora anterior do apartamento, ele entra numa espiral de fatos insólitos e bizarros. A violência aparece em pequenos detalhes de mutilação física, cujo incômodo se torna ainda maior pela irrelevância do gesto ou pela falta de sentido, a qual gera uma sensação permanente de que “o Mal não tem um plano”, e que tudo pode acontecer. Não há uma explicação final, não há um mistério a resolver; o desfecho do filme desemboca, de modo ameaçador, nas suas sequências iniciais.

O filme tinha sido cogitado pelos produtores para ser dirigido por Jack Clayton, que dirigiu em 1961 o clássico de terror Os Inocentes. Talvez o fato do protagonista ser um polonês meio paranóico, sentindo-se perseguido em Paris, tenha levado os produtores a repassar o projeto para as mãos de Polanski. O diretor recria aqui, como ator, um personagem meio desamparado como o que interpretou em A Dança dos Vampiros (1967), que participa dos fatos sem entendê-los por completo. É um dos filmes mais estranhos na carreira do cineasta. O livro de Roland Topor teve uma reedição em 2006, incluindo textos de Thomas Ligotti e comentários sobre a versão de Polanski.


sexta-feira, 22 de maio de 2015

3820) "Cariris Velhos" (22.5.2015)



A região paraibana dos Cariris Velhos é limítrofe com o Vale do Pajeú pernambucano. As duas regiões juntas são uma espécie de Grécia Antiga nordestina, pelo acúmulo de tradições, histórias, lendas e versos. 

Tenho duas colherinhas desse sangue em minhas veias, visto que minha mãe nasceu e se criou em Coxixola (a cidade onde você, ao entrar, é saudado por uma placa dizendo: “Coxixola Existe!”), perto de Serra Branca e de São João do Cariri.

Cariris Velhos – passando de passagem de Pedro Nunes Filho (Recife, Jabre, 2008) é uma história dessa região contada por quem nasceu e se criou por entre aquelas vilas, cidades, fazendas, sítios, povoados, caatingas, serrotes e rochedos. 

Pedro Nunes, radicado hoje no Recife, é o autor de um dos grandes relatos épicos sobre a história da Paraíba: Guerreiro Togado (Recife, UFPE, 1977, já com reedições subsequentes), a história da “Guerra de Doze”, uma sucessão de batalhas que em 1912 opôs as forças militares da Paraíba e o bacharel Augusto Santa Cruz, que invadiu cidades, deu surra em padre e prefeito, pintou e bordou.

Em Cariris Velhos, o foco é mais a geografia social do que a História. Pedro Nunes descreve com conhecimento de causa as sutilezas da vegetação, da alimentação, do regime de secas do semi-árido.  

O capítulo “Caminho sem volta” refaz o percurso entre antigas fazendas, umas arruinadas e desertas, outras ricas e sólidas, bastiões da colonização que, por caminhos diversos, desde o fim do século 17, expulsou ou escravizou os antigos índios cariris, sukurus, tarairus. 

A escravidão dos africanos tornou mais complexa essa relação: 

“Enquanto o negro africano dominava algumas indústrias – muitos eram excelentes ferreiros, marceneiros, pedreiros, tecelões, agricultores e cozinheiros – o índio só sabia caçar e pescar.” (p. 80)

“Por todo o território, serras sobranceiras pontilhadas com esculturas de pedras gigantes, obras de deuses, teatros escondidos nas encostas da velha Borborema. Blocos de granito superpostos em forma de muralhas misteriosas espalhadas numa área de extensão sem fim. Sinais indeléveis grafados nas rochas pelas mãos de homens pertencentes a uma civilização ignota e milenar, desejosos de se comunicar com o futuro por meio de mensagens, cujo código perdeu-se no tempo, restando hoje indecifráveis" (p.33)

Os Cariris Velhos e o vizinho Vale do Pajeú são fonte perpétua da cantoria de viola e da poesia popular. É necessário o entendimento de sua história, da mentalidade e da cultura dos homens e mulheres que fundaram a civilização do semi-árido, tão importante na obra de seus poetas, de Ariano Suassuna a Pinto do Monteiro.