terça-feira, 16 de dezembro de 2014

3685) Música, imagem e idéia (16.12.2014)



Coube a Ezra Pound dar uma das mais simples, ricas e eficazes receitas para definir a poesia, em seu ABC da Literatura (Editora Cultrix, São Paulo). Ele diz, no capítulo IV: “Contudo, as palavras ainda são carregadas de significado principalmente por três modos: fanopéia, melopéia, logopéia.  Usamos uma palavra para lançar uma imagem visual na imaginação do leitor ou a saturamos de um som ou usamos grupos de palavras para obter esse efeito.” Já vi estudantes recitando ladainhas para decorar isso. E na verdade nem precisa tanto esforço.  Basta entender o que é.

“Fanopéia” se refere à utilização das palavras para produzir imagens visuais (ou sensoriais de um modo mais amplo – imagens auditivas, olfativas, táteis, etc.) na mente do leitor.  “Fano—“ vem do grego “phainen”, “mostrar”, tornar visível uma imagem.  Por exemplo, “diáfano” é algo que se deixa trespassar por uma imagem.  A fanopéia é portanto a produção de uma imagem na mente do leitor, pelo uso de palavras. Se eu digo: “Um círculo vermelho com um quadrado amarelo no centro”, produzi uma fanopéia em quem leu essa frase.

“Melopéia” vem do grego “melo”, que significa música e deu origem a termos como “melodia”.  É a produção de uma impressão musical, melódica, na mente do leitor, pela combinação de sons sugeridos pelos fonemas usados nas palavras do verso.  E “logopéia” vem de “logos”, que significa “idéia”; mesma origem de “lógica”, etc.

O que diz Pound?  A poesia usa palavras arranjadas de tal maneira que produzem, na mente de quem as lê, impressões visuais (e sensoriais, num sentido mais amplo), impressões melódicas e impressões de idéias abstratas (que não se relacionam nem com a imagem nem com o som).  Música, imagem e idéia.  Cada poema, cada verso, traz essas três coisas, em proporções que variam o tempo inteiro. 

E esse elemento, “---péia”, de onde vem? Vem do grego “poein, poiein”, que significa “fazer, criar, compor”.  É a mesma palavra que está na raiz de “poeta” e “poesia”.  O poeta é um fazedor. (“El hacedor” é o título de um conto de Borges em homenagem a Homero.)  A poesia é algo que é criado, construído, composto.  Não cai do céu nem brota do chão. É o resultado de uma ação conjunta da emoção, da inteligência e da vontade. Poesia é a criação, através de palavras, de impressões visuais, impressões melodiosas e idéias abstratas.  Claro que a fórmula de Pound não encerra o assunto. (Alguma fórmula já encerrou algum assunto?)  Mas é um ponto de partida. Não explica o “por quê” nem o “para quê” da poesia, mas não conheço nenhuma outra receita que explique melhor o “como”, a maneira como a arte da poesia produz os efeitos que produz.





domingo, 14 de dezembro de 2014

3684) O céu dos escritores (14.122014)



Um amigo postou dias atrás numa rede social este pequeno episódio que aparece nas memórias de Isaac Asimov. Ele conta um sonho que recordou com enorme clareza ao despertar (segundo ele, algo raro de lhe acontecer). Sonhou que morreu e foi pro Céu, que consistia nos habituais relvados verdejantes, nuvens, ar perfumado e coros celestiais cantando à distância. Ele perguntou se era o Céu, e o Anjo ao lado confirmou.  Isaac: “Mas meu lugar não é aqui. Eu sou ateu.”  “Não houve erro nenhum,” disse o Anjo. “Quem decide quem vem pra cá somos nós.”  Ele olhou em volta e perguntou: “Será que tem aqui uma máquina de escrever que eu possa usar?”  E o significado do sonho ficou claro para ele.  O Paraíso, na sua cabeça, era o ato de escrever, e ele achava que já estava no Paraíso há cinquenta anos, e sempre tinha sabido disto.

Esse é mais um ponto de semelhança entre Asimov e Jorge Luis Borges, para quem o Paraíso era uma espécie de biblioteca. O ato de ler e de escrever está associado neles a uma espécie de paraíso das endorfinas ou serotoninas, não sei exatamente quais são as substâncias associadas ao nosso ofício, só sei que são celestiais.  Devem ser as mesmas que muitas pessoas descrevem experimentar após quarenta minutos caminhando ou trinta puxando ferro. 

Pode ser que o Além seja mais hierarquizado do que a gente imagina, e que cada pessoa tenha direito a um céu de acordo com o que de fato mais gostava de fazer.  Escritores que reclamam do “sacerdócio” e das privações da vida de autor deverão ser proibidos de escrever, e contentar-se com um Paraíso onde se joga o bilhar e mais nada.  Bem feito. Escritores que trabalham na boa, sem fazer drama, terão direito a usar seu tempo como quiserem, seja ao teclado ou se distraindo.  (Há distrações e entretenimento no Paraíso, e não é algo tão kitsch e careta como alguns podem estar pensando. Tem mil coisas legais. Só não tem sexo, drogas e rock-and-roll.  Asimov e Borges até agora não se queixaram.) 

Como seria o céu de Philip K. Dick?  Um mundo onde tudo fosse inquestionável, moeda de um lado só, realismo de ferro?  Como seria o de Lovecraft?  A volta à mansão da família, sem roedores em volta?  Como seria o céu de Leandro Gomes de Barros?  Uma utopia asimoviana sem carestia, sem esposas e sem sogras?  E o céu de Antonio Conselheiro, seria um Empíreo de taipa?  O de  Jorge Amado, seria um céu que comportasse Vadinho?  Por outro lado, não consigo imaginar um sujeito até relativamente banal, embora ótimo escritor, como Henry Miller, em outro lugar que não seja um paraíso, e em outro paraíso que não seja um paraíso em seus próprios termos.





sábado, 13 de dezembro de 2014

3683) A mensagem do morto (13.12.2014)



Defendo a teoria de que todo subgênero literário corresponde a uma necessidade profunda da psique humana. Livros sobre crimes decifrados e criminosos entregues à polícia confirmam nossos propósitos justiceiros, por mais superfaturados que sejam.  Livros sobre viagens espaciais exploram nossa curiosidade e nosso senso de aventura.  Livros sobre homens e mulheres vestidos de couro que fazem sexo usando algemas e outros adereços correspondem às fixações eróticas de um certo número de homens e mulheres. E la nave va.

Há um subgênero do policial que, se não foi inventado por Ellery Queen, coube a este transformá-lo numa pequena proeza de engenhosidade.  São as histórias de mensagens de moribundos.  Digamos que houve um crime numa mansão.  A polícia chama Ellery Queen (que é filho de um inspetor de polícia de Nova York) pra dar uma olhada.  O sujeito foi envenenado ou apunhalado, mas demorou alguns minutos para morrer, ainda lúcido. Ele queria dizer quem o matou.  Mas se escrevesse “FULANO ME MATOU”, corria o risco do Fulano voltar à cena do crime e destruir a mensagem.  O que faz ele?  Improvisa, em seus últimos estertores, uma mensagem cifrada cujo sentido o assassino, mesmo que veja, não perceberá de imediato que o denuncia, e deixará passar, pois está com pressa.  A vítima tem a esperança de que a polícia, com mais tempo e calma para matutar naquilo, descubra a solução, perceba quem foi a pessoa denunciada em código.

Ellery Queen explorou isso em inúmeros romances e contos. São letras aleatórias rabiscadas num papel. Uma página específica de um livro, arrancada no último instante.  Um objeto que a vítima claramente se arrastou para alcançar e segurar, indicando algo. Um gesto desesperado com os dedos da mão. “O que ele quis dizer com isto, Mr. Queen?”, é a pergunta, e Ellery começa a fazer todas as associações de idéias possíveis entre a mensagem misteriosa e as pessoas suspeitas.

Um dos encantos da literatura detetivesca, o mais celebrado talvez, é a lógica e a imaginação com que Sherlock Holmes ou Hercule Poirot chegam à solução do mistério.  O encanto do subgênero das mensagens de moribundos é esse diálogo à distância entre a inteligência da vítima e a inteligência do detetive, passando por cima da inteligência do criminoso.  Nos últimos estertores de sua vida, uma pessoa consegue produzir esse gesto criptografado, instantâneo, que o criminoso desdenha ou nem percebe, e que o detetive, com a paciência de um charadista, irá decodificando aos poucos, limando hipótese por hipótese, até perceber a verdade e com isso fazer justiça àquele último impulso criativo de uma mente humana que não existe mais.





sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

3682) O plágio provençal (12.12.2014)




Diz Ezra Pound, no ABC da literatura, que “há uma tradição segundo a qual em Provença era considerado plágio tomar a forma de um outro, tal como agora se considera plágio tomar-lhe o seu assunto ou o seu projeto.”  Como tantas coisas antigas, isto nos parece um contrassenso.  Formas poéticas são parte do banco de dados da nossa cultura, são de todo mundo. A quadra, o hai-kai, o soneto, a sextilha... É do conteúdo dos poemas que esperamos originalidade.  As formas fixas existem como recipientes. Copos de diferentes formatos; a expectativa é quanto à bebida que vai ser saboreada.

Pelo que diz Pound sobre essa época de ouro da poesia (houve muitas épocas assim, pelo mundo afora), os provençais eram engenheiros do verso, eram construtores de formas, desenhistas de estruturas.  Criavam novas formas de estrofe, novas organizações das rimas, novas cadências da métrica.  Raramente se pode dizer com certeza científica que o poeta-tal inventou a forma-tal, mas os grandes praticantes acabam recebendo alguns direitos de paternidade.  O soneto italiano (com dois quartetos e dois tercetos) será sempre associado a Petrarca; o hai-kai japonês, a Bashô. 

Para os poetas da Provença, uma estrutura de metros e rimas a ser fielmente obedecida era o maior desafio que podiam conceber.  Graças a Augusto de Campos, principalmente, temos conhecimento de poemas como “L’Aura Amara” de Arnaut Daniel, uma canção de amor que tem como ponto de partida o trocadilho entre o nome da amada, Laura, e a expressão “l’aura”, a aurora. 

É interessante comparar esses conceitos de propriedade com o da cantoria de viola nordestina, porque José Alves Sobrinho, em seu Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, diz: “Silvino Pirauá Lima criou a sextilha e introduziu o martelo agalopado na cantoria. Nicandro Nunes da Costa criou o mote de um pé só; Manoel Raimundo de Barros criou a regra de um mote de 3 versos; Romano do Teixeira criou o mourão de 5 pés; Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador criou a estrofe de 7 pés e o mourão de 7 pés; José Pretinho do Crato, criou o galope a beira mar; Antonio Ugolino Nunes da Costa criou a oitava antiga; Vicente Granjeiro Landim introduziu a oitava em quadrão; (...)”  E por aí vai Zé Sobrinho, numa enumeração que quase não acaba mais. 

Esses poetas sertanejos brincavam com as formas de estrofe, os metros, as rimas.  Não chegavam à sofisticação estrutural de Arnaut Daniel, e não guardavam para si direitos autorais sobre as formas, as quais ainda hoje são livremente propagadas. O desafio é somente o de usar a nova forma tão bem, ou melhor, que o seu criador.




quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

3681) Curso de sonambulismo (11.12.2014)




“Acordei misturado às noções que a noite fabrica” (p. 265).  Jurandir, narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva / Alfaguara, 2014) é um tipo particular de narrador literário não-confiável.  Não é o narrador que mente, é o que não sabe. Não é o que quer esconder de nós o seu passado, é o que deu um jeito de escondê-lo de si mesmo.  Preso a uma existência humilhada, Jurandir tem um defeito físico que ele deu um jeito de, em certos momentos, usar como pretexto para um ritual de prazer.  Sem sonhos de grandeza, ele arruma um jeito de se alegrar com as pequenas coisas, a sensação de conforto de uma rotina que ele é capaz de repetir, um fio de futuro em que pode confiar.

Me pareceu, também, a voz de um ex-drogado (ele toma remédios, quando interno na clínica), alguém que obedece ordens com docilidade, sem discutir, sem precisar entender, mas que de repente tem uns assomos de onisciência e faz a última coisa que se esperaria dele.  Jurandir recorda metodicamente os mesmos fatos, procurando alguma coisa que existia neles e não existe mais.  O sexo com a esposa e com a namorada lhe traz um pouco disto; o amor físico é “o canal rumo a um tempo em que somos apenas o que somos, sem arrazoados nem idéias que nos estraguem a hora.  É só assim que esquecemos do passado.” (p. 243).  

Nesses momentos ele lembra Milgrim, o ex-drogado usado por William Gibson em Território de Espiões (2007) e Zero History (2010), o homem com um buraco na memória (“Meus últimos dez anos estão em modo não-linear, ainda estou tentando organizar isso tudo”).  O mundo de Milgrim é o aqui-e-agora. “Qual fora a última vez em que estivera em Paris? Era como se nunca tivesse ido lá.  Alguém tinha ido, alguém com vinte-e-poucos anos.  (...) Um Eu mais novo, hipotético. Antes que as coisas tivessem começado a não correr bem, depois a piorar, depois piorar ainda mais, até que a essa altura ele deu um jeito de se ausentar a maior parte do tempo.  Tanto quanto era possível.”

Jurandir, ao contrário, remexe o tempo todo no passado, essa coleção de ruínas que nos visitam de vez em quando.  Ele descreve em câmera-lenta, degustando detalhes, o acidente com carrinho de rolimã que o deixou manco desde a infância; mas o acidente que vitimou seu único filho tem que ser remontado pelo leitor a partir de meia dúzia de referências passageiras, espalhadas ao longo do livro.  Jurandir é meio míope quanto a si mesmo; até acha as coisas, mas somos nós que dizemos o que ele tem na mão. Como um sonâmbulo, ele anda em cima do muro sem cair, fala sem escutar, emenda os cacos da vida apenas colocando-os lado a lado.





3680) "O sonâmbulo amador" (10.12.2014)


Garcia Márquez dizia que a coisa mais importante de um romance é a voz que conta a história. Ela tem que dar desde o início a impressão de que por trás da voz tem uma pessoa, e por trás da pessoa tem uma história inteira.  Alguns narradores já no comecinho nos tranquilizam, nos fazem ligar o piloto automático: ele vai entregar tudo de bandeja e só nos resta curtir.  Outros no primeiro virar de página já nos deixaram de orelha em pé, é uma narração cheia de cacos, contradições, lacunas.

O narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva/Alfaguara, 2014) é Jurandir, um cara às vésperas da aposentadoria, trabalhando num cotonifício perto do Recife. É casado, mantém um namoro ata-e-desata com uma colega de trabalho, foi encarregado de defender a empresa no caso de um acidente em que um operário se queimou.  Esta é a situação inicial, mas logo Jurandir entra numa despirocação inexplicável que acaba levando-o a uma clínica psiquiátrica.

Jurandir narra as coisas com clareza, com método (é o típico funcionário caprichoso, consciencioso, que se esforça para fazer tudo direito), mas seu discurso é cheio de buracos, de non-sequiturs onde ele pula para coisas que não têm nada a ver, como quem muda um canal na televisão. Ler sua história é como ver uma cena através de um vidro muito transparente mas com manchas opacas espalhadas na superfície. 

É a voz monocórdia do Meursault de Camus (O Estrangeiro), alguém brechtiano, distanciado, (descre)vendo coisas sem entendê-las por completo, e nos forçando a amarrar os nós nós mesmos. Contar é ajustar contas, é abrir diante de si mesmo e do mundo o massudo e amassado caderno das nossas dívidas. Em São Bernardo, Graciliano castiga o maucaratismo de Paulo Honório forçando-o a descrever a si mesmo quando resolve narrar suas memórias.  Jurandir não é mau caráter mas a verdade é que bastaram duas ou três pequenas catástrofes pra descompensar sua vida.

Nos momentos em que Jurandir conta seus sonhos (um leitmotiv recorrente ao longo do livro inteiro) percebemos que a própria vida dele em vigília está sendo contada com os cortes, as omissões, os “a cena muda” repentinos que acontecem num sonho ou num filme mudo.  Ele insiste que seremos capazes de entender seu drama. “Muitos de vocês já passaram por coisa parecida, não tenho dúvida” (p. 36).  Narrando esses episódios oníricos, ele se aproxima às vezes da voz distanciada dos narradores de José Agrippino de Paula em Lugar Público (1965), a voz robótica de um sujeito desperto porém sedado, alguém capaz de descrever com indiferença, ao telefone, o incêndio que acontece naquele instante no quarto onde se encontra.




3679) O pai caçula (9.12.2014)

Participei de algumas mesas de debates sobre Ariano Suassuna, e nelas se tocou num assunto que me deixou intrigado.  Como qualquer pessoa deve perceber, essas palestras são como cantoria de viola, metade é balaio pronto, a outra é improvisação.  E quando vêm perguntas da platéia isso faz chispar às vezes uma faísca.  Surge num instante uma resposta boa, mas que não foi preparada, não foi dissecada em tudo quanto contém, foi apenas uma rápida associação de idéias, em função de um exemplo, ou algo casual, e a gente diz aquilo à medida que continua pensando.  Exatamente o que faz um cantador repentista, só que ele improvisa em verso, e eu improviso em prosa.

Conheço uma rapaziada no Rio de Janeiro que é fã de Ariano mas de Ariano só conhece o Auto da Compadecida filmado por Guel Arraes.  Essas pessoas viram a minissérie ou o filme, talvez leram o livro, provavelmente acabarão vendo-a um dia no teatro (levarão os filhos, quando os tiverem), mas sempre associaram João Grilo, Chicó e companhia àquele ancião de cabelos brancos e ralos, ternos brancos ou rubronegros, voz rouca, costas encurvadas. 

Quem escreveu a Compadecida, no entanto, foi um rapaz de 28 anos, como lembrou Carlos Newton Jr. num debate recente.  Em 1958, quando começou a escrever o Romance da Pedra do Reino (1971), Ariano já estava ganhando dinheiro com as montagens de suas peças.  A primeira vez que o vi falando ao vivo foi quando ele fez a Aula Magna da UFPB no Teatro Municipal de Campina Grande, em 1972.  Ariano, de terno, falava em pé, andando de um lado para o outro, inquieto.  Tinha uma energia incontível.  Estava com 45 anos.  Já vi na Internet alguns vídeos dele nessa época: cabelo bem preto, cortado curto, descuidado, terno escuro, gravata, a voz rápida, cortante.  O filme de Vladimir Carvalho O Homem de Areia tem um pequeno trecho de diálogo com Ariano mais ou menos por essa época.

Por que lembrei disso?  Talvez porque o próprio Ariano percebeu um dia que já era mais velho do que seu pai João, que morreu assassinado aos 44 anos.  Ariano escreveu um texto onde lembra o conceito de “pai caçula”, termo sugerido por Albert Camus, que parece ter vivido uma situação parecida.  O pai morre jovem, e resta jovem para sempre.  O filho paga a vida envelhecendo.  E no fim, é sempre um ancião avaliando à sua maneira os arroubos de um jovem.  Assim ele escreveu, no poema “Dístico”, dedicado ao pai: “Se morreu moço e em sangue, teve tempo / de governar seus pastos e rebanhos, / e a feiosa velhice / jamais o degradou. // Glória, portanto, à Morte e a suas garras, / pois, ao sagrá-lo, assim, da vida ao meio, / do Desprezo o salvou (...)”.





domingo, 7 de dezembro de 2014

3678) Traduzindo começos (7.12.2014)


Em seu livro de memórias If This Be Treason, Gregory Rabassa comenta suas grandes traduções da ficção latino-americana. Um dos primeiros romances que traduziu foi Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, e ele dedica longos parágrafos a comentários. A expressão “cem anos”, por exemplo, pode ser traduzida como “a hundred years” ou “one hundred years”, e ele diz que optou pela última, para destacar o aspecto quantitativo (“one”), pois se trata de uma conta nítida, fechada, “como numa profecia, algo definido, uma contagem regressiva, não é uma centenas de anos qualquer”.

O livro tem um dos começos mais famosos da literatura recente: “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre le llevó a conocer el hielo”.  Em inglês ficou: “Many years later, as he faced the firing squad, Colonel Aureliano Buendía was to remember that distant afternoon when his father took him to discover ice.”

Rabassa comenta todas as opções desse pequeno trecho. Lembra que pelotão de fuzilamento é “firing party” na Inglaterra e “firing squad” nos EUA.  Discute se é melhor traduzir “había de” por “would” ou por “was to” (opta por esta).  O verbo recordar pode ser “remember” ou “recall”: ele opta por “remember”, “porque dá a impressão de uma ´recordação mais profunda”.

A “tarde remota” virou “distant afternoon”. Por que?  Rabassa considera que para o leitor inglês a palavra “remote” está muito associada a controle remoto, robôs, etc., e que gostava do adjetivo “distante” (um adjetivo relativo a espaço) quando aplicado ao tempo.  Para ele, um problema delicado era o fato do Coronel, menino, ter sido levado para “conocer” o gelo.  Rabassa traduziu o verbo por “discover”, descobrir.  Por que?  Rabassa lembra que se trata de um primeiro encontro, de um aprendizado; em inglês, usar "to know” daria a sensação de que o menino disse: “How do you do, ice?”, mas que quando a gente sabe algo pela primeira vez está “descobrindo” esse algo.

Duas linhas de texto a traduzir podem produzir sem esforço duas páginas de teorizações.  Muitas são intuitivas, feitas ao correr da escrita, ao ritmo da digitação, quase nem chegam a ser verbalizadas intimamente pelo tradutor. Vai ser isso, não aquilo, assim fica melhor, troca essa pela outra, ajusta o ritmo, a sonoridade, a próxima, por favor!  São processos que já foram teorizados por antecipação, ou talvez na primeira-vez-de-todas em que um problema semelhante se apresentou. O tradutor lê, deixa-se impregnar, concentrado, do que a frase original lhe trouxe, digita a sua.  E vai em frente, que a esteira tá rolando.

sábado, 6 de dezembro de 2014

3677) "Interestelar" - III (6.12.2014)



O filme de Christopher Nolan retoma o conflito entre duas mentalidades bem norte-americanas: os Fazendeiros e os Astronautas.  As duas são tratadas como missões quase heróicas, mas incompatíveis.  Os ruralistas e os high-tech. Eu diria quase “os Republicanos e os Democratas”, se não soubesse que isto é algo bem mais complexo.  Em todo caso, são os conservadores do que já existe e os descobridores de novas situações. E, nesse mundo específico, foram os hightech que destruíram o planeta; e foram incapazes de corrigir os erros que cometeram.  E os fazendeiros estão, com todo sacrifício, mantendo viva a última geração sobre a Terra.

Os Astronautas são os aventureiros, os desbravadores, os pioneiros, os argonautas, todos os que se lançam no desconhecido, sem medo, pela inquietação aventureira e pela sedução de mistérios em grande escala, mistérios sobre a natureza do mundo, que somente a navegação poderá esclarecer.  São como os navegadores portugueses e espanhóis que nos descobriram.  Há um diálogo no filme em que um dos astronautas olha para fora e se refere à parede de metal da espaçonave, e para além dela milhões de milhas de espaço vazio.  Reflete um texto do francês Jean de Léry (em sua História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, 1578) onde ele fala da coragem dos navegadores, e diz mais ou menos que “eu estava num porão, protegido por uma parede de madeira com algumas polegadas de espessura, e além dela somente a noite, o oceano, e os vagalhões da tempestade”.  Ser um aventureiro é sentir-se seguro numa situação assim.

Fazendeiro do Ar, título famoso de Carlos Drummond, descreveria bem o protagonista Cooper (Matthew McConaughey), um ex-piloto que mal cabe em si no papel de fazendeiro. Vive plantando milho e ensinando física à filha, doido para voar novamente.  É o típico herói popular norte-americano, que avalia com o mesmo olhar frio uma tempestade de poeira, um tsunami num planeta desconhecido ou a curvatura do espaço em volta de um buraco-negro.  A pequenez imperturbável do ser humano diante de um Universo que ele ousa habitar sem compreender de todo.

E o filme ainda ousa fechar-se num “loop” de causalidade, formando um paradoxo temporal positivo (uma viagem no espaçotempo que só se torna possível porque aconteceu e criou as condições para acabar acontecendo), uma reiteração de que a viagem não foi perdida, a aventura não foi em vão.  O filme parece dizer que é o amor pelos nossos filhos que transcende o tempo e o espaço.  É também o amor pelos livros que líamos e os filmes que víamos quando tínhamos a idade deles. Os nossos sonhos de juventude, os únicos que continuam jovens para sempre.




sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

3676) A maldição da trilogia (5.12.2014)



Há um mecanismo na mente humana que eu denomino Síndrome do Solitário Exemplo.  E defino assim: quando temos uma única experiência de algo, somos incapazes de perceber (e isto é mais do que compreensível) o que existe ali de necessário e o que existe de contingente. Em outras palavras: o que faz parte da própria essência daquilo, e o que não passa de um detalhe colateral, irrelevante, que tem importância naquele exemplo isolado mas não pertence à categoria como um todo.

Sou meio ruim de abstrações filosóficas e o jeito é correr para o abrigo do exemplo mais próximo.  Você desce num aeroporto na Turquia, país que visita pela primeira vez, e o taxista é barbudo, tem um terço católico pendurado no retrovisor, e usa óculos escuros.  Sua primeira conclusão é estender as características do Solitário Exemplo à categoria em geral e pensar que todos os turcos (ou todos os taxistas turcos) têm barba, terço e rayban. Quantas vezes ouvimos de um recém-chegado, desembarcados há meia hora, como “os cariocas” ou “os paraibanos” são gentis/grosseiros/prestativos/distraídos/faladores/...

Na literatura de Fantasia Heróica aconteceu algo parecido.  Muitos jovens leram O Senhor dos Anéis e botaram na cabeça a noção de que qualquer texto que se escreva em Fantasia Heróica tem que constar obrigatoriamente de três volumes.  Aí, o autor de 20 anos diz: “Estou com uma idéia ótima para a minha primeira trilogia”.

Sem querer entrar nos méritos estéticos ou estruturais do equívoco, me basta o argumento biográfico.  Tolkien detestava o conceito de trilogia.  Na cabeça dele, estava escrevendo um romance, a ser publicado como romance.  Seus editores tinham tido uma bela vendagem com O Hobbit e tiveram paciência bastante para passar meses argumentando.  Tolkien não era um escritor profissional.  Era um filólogo, um acadêmico, e livros com 1.500 páginas faziam parte de seu repertório de consulta habitual.  Ele mal lia a literatura de seu tempo, era carrança e ranzinza, e foi um trabalho para a editora Allen & Unwin convencê-lo a desmembrar o livro em três, mesmo tendo este uma estrutura que favorecia essa subdivisão.

Chegaram a um acordo: o livro seria apresentado como trilogia, mas a publicação seria em rápida sequência, num espaço de menos de dois anos.  Quando o leitor terminava um, o próximo já estava nas vitrines.  Mas... o carimbo tolkieniano foi forte.  O conceito de trilogia se impôs na Fantasia Heróica de um modo que nunca tinha se imposto na FC, apesar de exemplos como a Trilogia da Fundação de Asimov.  E se hoje você publica um livro no gênero, os fãs ficam perguntando “quando é que saem os outros dois”.