sábado, 15 de novembro de 2014

3658) grandesertão.br (14.11.2014)


Na bibliografia enorme sobre Guimarães Rosa, tem muita coisa preciosa e muita coisa irrelevante.  A maldição de um grande autor é virar um cômodo pretexto para trabalhos de estudiosos meio indolentes, que têm preguiça de ter idéias originais, e estudam os autores mais famosos porque sabem que o tema é nobre e conta pontos, a bibliografia é vasta, e a esta altura ninguém espera grandes novidades a respeito.

 

Willi Bolle é o autor de grandesertão.br, assim mesmo em minúsculas como num nome de saite (Editoras Duas Cidades / 7Letras, 2004).  É uma dessas investigações minuciosas que dão gosto, porque é como se o autor relesse o livro inteiro para nós, descobrindo, destacando, reinterpretando.  A tese principal de Bolle é de que o romance de Rosa é um romance de formação do Brasil.  A história de Riobaldo vale como uma alegoria ou uma ilustração prática, rica, variada, minuciosa e nítida, da formação da nação brasileira que temos, com suas qualidades e defeitos. 

 

É uma tese detalhadamente exemplificada e argumentada.  O sistema jagunço (o exercício da força das armas, para afirmar e legitimar o poder político e econômico) está no cerne da nossa formação. Riobaldo, um homem velho que no fim da vida reconta sua história, tenta entender seu próprio percurso, justificar suas ações, e livrar-se um pouco das culpas que carrega, das muitas mortes que praticou e da cegueira que o afastou de Diadorim.

 

Bolle examina o conflito entre discurso erudito e linguagem popular, e contrasta as abordagens de Euclides em Os Sertões (o intelectual que glorifica o povo, mas não lhe dá voz) e de Rosa, que dá voz ao povo procurando a síntese entre a sabedoria tradicional e a cultura livresca. Bolle observa que o pacto com o Diabo nas Veredas Mortas é “uma representação criptografada da modernização do Brasil”.  Quando Riobaldo diz, referindo-se ao seu trato com o Demônio: “Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, era eu que dava a ordem”, isso reflete os pactos sociais brasileiros, uma “retórica do faz de conta”, em que as duas partes (elites e povo) são supostamente iguais em direitos, mas é uma delas que manda.  Ecoando a famosa frase de Orwell na Revolução dos Bichos: “Todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”.

 
Riobaldo é sempre visto como o jagunço vivendo aventuras guerreiras e uma história de amor, mas Bolle o recoloca com clareza na sua posição final de fazendeiro, dono de terras herdadas do pai biológico, alguém que fez carreira dentro do sistema jagunço e de empregado tornou-se patrão. Para isso, ele faz um sacrifício: ele é “um homem que deixou morrer o grande amor de sua vida”.
 

3657) O balão de Dumont (13.11.2014)


Li numa matéria sobre Santos Dumont que o seu quarto balão, chamado (numa contagem descontraidamente brasileira) “no 3” se destacou pelo fato de ter sido o primeiro que se elevou com gás de iluminação, e o primeiro para o qual foi construído um hangar.   O gás de iluminação substituía o hidrogênio, que até então era o gás mais utilizado para inflar os balões da época.   O vôo foi realizado no dia 13 de novembro de 1899 – o dia exato em que, segundo os videntes do "fim do século", o mundo iria se acabar. 

 

Não sei por que motivo nostradâmico se previa o fim do mundo para esta data, e não para 31 de dezembro, o que pelo menos teria alguma lógica cronológica. Vai ver que assim como 13 é 31 ao contrário, novembro é dezembro ao contrário – para essa turma pêndulo-de-foucault, qualquer coisa pode ser demonstrada verbalmente.

 

Santos Dumont, ao que parece, não tinha problemas com o número 13, pois além de desafiar o Apocalipse anunciado, construiu e pilotou um balão com este número, mesmo vindo de duas tentativas abortadas com os números 11 e 12.  O no 13, ao que parece, sofreu algum tipo de sabotagem, mas logo em seguida veio o 14 e seu upgrade 14-Bis, e o resto é história. 

 

Não imagino que Santos Dumont fosse imune a superstições. Ao que parece foi por superstição que ele pulou o número 8, e na prática isso equivale a recear o 13, o 7 ou qualquer outro.  Mas, como temos o hábito mental de tirar lições de fatos aleatórios, aproveitemos para lembrar a reação de Santos Dumont, que foi provavelmente a de dizer: "Não, não tenho medo de que o mundo vá acabar hoje.  Para falar a verdade, acabei de construir um troço complicadíssimo que nem eu mesmo tenho certeza se vai voar ou não, e não tenho tempo de pensar em fim do mundo."

 

O mundo não acabou: o balão de Santos Dumont foi quem acabou voando.  Podemos aproveitar a outra informação (foi para este balão que ele construiu o primeiro hangar) como uma prova de seu otimismo, de sua certeza de que não apenas o mundo não ia acabar, mas talvez chovesse daí a alguns dias, e era preciso guardar o balão num lugar coberto.  Era um sujeito cheio de manias, e quase todas eram de ordem prática.

 
Mas, e o número 8?  Terá sido a prudência de Santos Dumont, evitando este número tão evidentemente perigoso, que salvou o Universo em que vivemos hoje?  Bem, tudo é possível.  Mas o melhor complemento da lição será, talvez, pensar que não comemoramos a data em que Fulano deixou de voar: comemoramos aquela em que ele de fato voou, sem se preocupar com milênios, cabalismos, superstições, e catástrofes anunciadas que afinal só interessam a quem vive passando cheque pré-datado.


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

3656) Os dois eleitores (12.11.2014)


Dizem que por onde se olhar existem dois Brasis: o pobre e o rico, o branco e o preto, o tropical e o serrano, e por aí vai.  Prestando atenção em todo esse bulício das eleições recentes, pensei em dividir em dois os eleitores brasileiros.  De um lado os eleitores conscientes, de outro os eleitores meramente arrastados por algum tipo de propaganda, coação ou vaga promessa de alguma coisa. 

Vejamos o grupo dos eleitores conscientes, no qual me incluo, por hipótese de trabalho.  Por que eu sou mais consciente?  Bem, eu sou um escritor, um intelectual, tive direito a alguns anos de universidade, leio sobre tudo e escrevo sobre isso e mais alguma coisa.  Então devo saber distinguir entre dois projetos de candidatura à – digamos, pra facilitar – Presidência da República. O “pobrema” é que se eu fosse um intelectual sério teria de ler e comparar os projetos em campanha, mas a verdade é que eu nunca li um projeto de candidato.  No máximo, li em jornais a opinião de quem leu (ou dizia que).  Sou eleitor consciente?  Acho que não.

Ler projeto de governo? É como ouvir um candidato em cima de um caminhão, no engarrafamento da carreata, com um megafone, lendo em voz alta a ata da reunião do condomínio.  Não, preferimos votar num rosto, preferimos votar em alguém onde se ajustam nossos personagens, preferimos votar numa fantasia de desafio ou de exemplo.

O que eu sei da política, da economia brasileira?  Sei o que sai na imprensa, confiabilíssima que é.  E o que vaza para a Internet (ou cresce direto de lá, cópia sem original): sempre experiências de segunda mão. O Brasil é grande: todo dia há eventos públicos, entrevistas, pronunciamentos, transações, compras e vendas, leis promulgadas, tudo público e legal, mas que o “Brasil” não sabe, nem vai saber nunca, porque todo mundo está como eu, ocupado em cuidar da própria vida.  Acompanhar a economia nacional é um negócio muito chato. Ninguém tem saco. (E o que é secreto? Não sabemos nada do que acontece a portas fechadas. Nenhum político, nenhum jornalista pode afirmar em público a maioria das coisas que sabe. Seria um suicídio.)

Quantos eleitores sabem de fato o que acontece no país e conhecem as intenções secretas dos candidatos?  Não sei, só sei que certamente não sou um deles. Somos induzidos a votar, manipulados por notícias, bombardeado por memes, combatendo preconceitos de um lado com preconceitos do outro. Votamos em fantasias movidas pelo oportunismo, ou pela afetividade, ou por um interesse específico de grupo. Votamos até por mero diletantismo, como o de eleitores que se envolvem com política porque é um futebol a mais, uma religião a mais, uma droga a mais.



terça-feira, 11 de novembro de 2014

3655) Paris, Argentina (11.11.2014)



(Cortázar, por Petros V.)

A literatura de Julio Cortázar é uma literatura da grande metrópole, dos labirintos da grande cidade, que no seu caso é geralmente Paris, com uma ou outra incursão por Buenos Aires.  Em O Jogo da Amarelinha, o protagonista Horácio Oliveira percorre as ruas de Paris como uma agulha de vitrola percorre os sulcos de um disco, e do atrito entre os dois brota uma sinfonia de paixões, desencontros, crises existenciais, mortes, bebedeiras, cigarros, mates, esbarrões com o absurdo e o surreal.  

Cortázar era leitor profundo e concentrado dos surrealistas. Uma das epígrafes do livro é uma carta de Jacques Vaché a André Breton: “Nada acaba tanto com um homem como a obrigação de representar um país”.  Coisas que passam pela cabeça de todo migrante em metrópole alheia, vendo o olhar dos donos da cidade voltados para ele e aquele enorme balloon de pensamento por cima de suas cabeças: “Ah... então é assim que os paraibanos são.”

Oliveira percorre Paris à procura da Maga, a mulher que o fascina, mesmo que ele negue estar apaixonado, mas, fiel ao impulso anárquico dela, ele não marca encontros.  Sai vagando pelas ruas, indo visitar um sebo, ouvir música num clube de jazz, tomar um café num “arrondissement” mais distante, e sabendo que ao chegar lá pode encontrá-la sorrindo, como se estivesse à sua espera.  Os dois habitam (diz ele) “um mundo onde você se movia como um cavalo de xadrez que se movesse como uma torre que se movesse como um bispo”.  “Encontraria a Maga?” é a frase de abertura do livro, e que cristaliza essa atitude.  Acontecerá um milagre, somente pelo fato de eu ter saído andando ao acaso pelas ruas da cidade?

O encontro casual dos amantes, deliberadamente não-combinado, faz brotar a fagulha surrealista (o amor louco e o acaso criativo) nessa Paris minuciosamente inventariada. (A edição da Cátedra, Madrid, 1992, é bem anotada por Andrés Amorós, e cheia de fotos das esquinas e cafés citados pelo autor).  A andarilhagem do intelectual argentino sem-tostão, à procura da estudante uruguaia que tem “um passarinho na cabeça”  e um filho pequeno, mostra o quanto essa cidade era para ele um tesouro de surpresas e de fatalidades:

“Em plena satisfação precária, em plena falsa trégua, estendi a mão e toquei no novelo de Paris, com a sua infinita matéria enrolando-se sobre si mesma, toquei no magma do ar e de tudo o que se desenhava na janela, nuvens e águas-furtadas; nesse então, não havia desordens; nesse então, o mundo continuava sendo algo petrificado e estabelecido, um jogo de elementos girando nos seus gonzos, uma madeixa de ruas e árvores e nomes e meses.”



domingo, 9 de novembro de 2014

3654) Os dentes e os ossos (9.11.2014)



Foi altamente constrangedor aquele fim de semana, um mês após a morte do Dr. Medeiros, em que fomos todos convidados para a casa da família em Mury, para a leitura do testamento.  Por que não faziam aquilo no apartamento do Leblon, meu Deus? Eu era genro tinha que ir, até porque havia uns primos velhos que só estavam ali porque (segundo meu concunhado Anchieta, casado com a irmã de minha mulher) queriam pegar nem que fosse uma raspa do tacho, e achavam que estando presentes à abertura do testamento poderiam influenciar o modo como ele tinha sido redigido há pelo menos dois anos. 



Pudessem ou não, não conseguiram. No dia e hora aprazados, a família inteira coreografou sua chegada em Mury, foram as instruções obedecidas, foi o cofre aberto, foi  o testamento lido pelos advogados, com gravação em HD e testemunhas juramentadas. O grupo de causídicos direcionou o óbvio na direção do inevitável. Talvez seja medida do meu “ennui” registrar que duas ou três famílias fizeram naquela breve tarde de sábado sua independência financeira com a merreca herdada, mas eu nem pensava nisso. Só pensava em quem teria assassinado o velho.



Todos podiam e gostariam de tê-lo feito. Faço parte desta família há catorze anos. O pior não é que fossem hipócritas. Não eram. Não é que dissessem que amavam o paizinho quando na verdade mal podiam esperar que ele batesse-o-trinta-e-um e deixasse para eles todas as escrituras, as ações e os rendimentos que tinha. De fato o tinham amado, mas quando a morte se prenunciou todos pensaram rapidamente no equilíbrio de suas contas bancárias, na pá-de-cal em velhos compromissos, no cala-a-boca em certo nível de credor que começava a ficar inconveniente. Ninguém deve tanto dinheiro quanto os ricos. E de repente tudo estava possível, ao alcance de uma assinatura.


A fatia-de-espólio da minha digníssima consorte resultou tão suculenta que até meu cinismo vacilou um pouco, mas me recompus a tempo e pensei que subornar depois de morto é uma dupla covardia.  Quando só restava uma página impressa na mão do advogado, começou a me dar um calor, um sufocamento, uma vontade de estar longe dali, rápido. Mal percebi quando ele leu, hesitante, as últimas linhas daquele documento cujo lacre rompera minutos atrás: “A abertura do cofre determina a ignição dos pontos iniciais do processo, que a esta altura (o advogado hesitou, voltou a ler) já está em pleno andamento. Não tentem fugir.  Se abrirem a porta da frente, o vento irromperá com tudo, inflamando as labaredas, consumindo esta maldita casa e vocês, malditos também, até o derradeiro osso.”  E foi exatamente o que aconteceu.




sábado, 8 de novembro de 2014

3653) As Ruritânias (8.11.2014)





As Ruritânias são aqueles países imaginários em que muitos escritores gostam de ambientar seus livros sem a obrigação de verossimilhança, exatidão, pesquisa, etc., que seria exigida por uma ambientação num país de verdade como Hungria ou Romênia.  Quem propôs essa nação fictícia foi Anthony Hope numa série de romances de aventuras iniciada com O Prisioneiro de Zenda (1894), uma clássica história do cara que é sósia de um príncipe, serve de dublê e substituto para ele, e acaba sendo confundido de verdade com ele.  (É uma história já filmada várias vezes, inclusive com Peter Sellers em vários papéis.) A Ruritânia é um país vagamente situado entre a República Tcheca e a Alemanha, e suas histórias transcorrem entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do 20.



O cinema nos deu um exemplo recente com Zubrowka, país imaginário do filme O Grande Hotel Budapeste de Wes Anderson.  Ali está todo o clima ruritano: os hotéis de luxos cheios de aristocratas, políticos, militares; as intrigas e conspirações de gabinete; a ameaça permanente da guerra, numa Europa Central sempre inquieta e belicosa.



Além de seus numerosos livros de FC e fantasia, Avram Davidson (1923-1993) tem uma excelente série de contos com uma espécie de detetive, Dr. Eszterhazy, que se situam numa nação híbrida conhecida como Scythia-Panonia-Transbalkania, e que guarda todo aquele clima de lampiões a gás, trens, carruagens, arquiduques, intrigas diplomáticas e tecnologia virada-do-século.  Ursula LeGuin também produziu sua Ruritânia pessoal com a coletânea Orsinian Tales (1976), situados em Orsinia, também uma nação de perfil austro-húngaro, situada na Europa Central. No universo dos Role-Playing Games (RPGs) temos o exemplo de Castelo Falkenstein, jogo ambientado numa região imaginária nos Alpes da Bavária por volta de 1870.


Mesmo com toda essa diversidade, o termo “Ruritânia” tornou-se o mais típico dessas nações imaginárias.  Hoje pode ser encontrado não só na ficção, mas no jornalismo e em ensaios acadêmicos, toda vez que alguém precisa dar um exemplo situado num país hipotético.  Alegorias políticas, questões jurídicas complicadas, ilustrações de teorias econômicas, para tudo isto os redatores recorrem à Ruritânia como um país-experimento, um país-laboratório, que serve para ilustrar uma hipótese sem atrair as inevitáveis ressalvas que um leitor poderia fazer caso o exemplo sugerido ocorresse num país de verdade: “Ah, mas isso jamais poderia ocorrer na Polônia, pois sabe-se que o PIB da Polônia é em torno de tanto por cento, etc. etc.”  Falar em Ruritânia deixa o redator à vontade para compor seus exemplos da maneira mais conveniente.




sexta-feira, 7 de novembro de 2014

3652) André Carneiro (7.11.2014)




(foto: Sophia Pedro / Editora Três)


Devo ter lido André Carneiro pela primeira vez por volta de 1965, ano da publicação da antologia Além do Tempo e do Espaço (editora Edart, SP), talvez a primeira antologia de FC brasileira que li.  Incluía, curiosamente, um elenco de autores que ninguém identificaria com o gênero: Domingos Carvalho da Silva, Lygia Fagundes Telles, Álvaro Malheiros, Nelson Leirner e outros.  Não lembro muito do conto dele; o conto marcante, para mim, foi “Da Mayor Speriencia” de Nilson Martello. Depois ele foi reaparecendo em revistas e antologias, e assim formou-se na minha memória a trinca dos grandes autores da chamada Geração GRD: André Carneiro, Fausto Cunha e Rubens Teixeira Scavone.



André foi poeta da Geração de 45 antes de escrever FC.  Foi editor de um importante jornal literário, Tentativa, sobre o qual já falei nesta coluna (aqui: http://tinyurl.com/m5p3puc). Foi fotógrafo, cineasta, artista plástico.  A FC era apenas uma das suas muitas atividades, um aspecto dele com que sempre me identifiquei, porque o escritor típico de FC não apenas não faz outra coisa, ele nem sequer escreve outra coisa.



Tinha um estilo fluente, fácil, e parecia produzir sem muito esforço. Aos 75 anos publicou um encorpado volume de contos, A Máquina de Hieronymus, e aos 85 outra coletânea, Confissões do Inexplicável, com mais de 600 páginas (fez também as ilustrações, uma série de colagens). Nos anos mais recentes, encontramo-nos algumas vezes no Fantasticon, o evento de literatura fantástica em São Paulo.  E nos falamos por telefone quando incluí contos dele em duas antologias minhas: “A escuridão”, talvez sua obra-prima, em Páginas de Sombra, e “Do outro lado da janela”, em Páginas do Futuro.



Depois dos 80 anos a vista piorou; ele saiu de São Paulo e foi morar com o filho, em Curitiba.  Ao telefone, comentava com entusiasmo este ou aquele livro que estava lendo. Eu perguntava: “Mas André, você não disse que a vista estava ruim?” “E está, mas eu pluguei a câmera digital na TV grande da sala, fico filmando a página e vendo as letras bem grandes na TV, passo o dia lendo.”


André Carneiro faleceu esta semana, aos 92 anos.  É o nosso escritor de FC mais publicado fora do Brasil: tenho textos dele numa revista uruguaia, numa antologia inglesa.  Sua presença constante, publicando com regularidade ao longo da vida inteira, o aproximou das sucessivas gerações de escritores e críticos mais jovens.  O fanzine Somnium publicou por anos as “Crônicas do André”, relatos memorialísticos e de circunstância, que bem poderiam ser compilados e republicados num saite.  Um brinde para o grande André, que viveu o futuro até o fim.



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

3651) Os cinco sentidos (6.11.2014)



“Audição, visão e tato / mais olfato e paladar”: são os nossos cinco sentidos, que conhecemos desde a infância.  A audição é o mais abrangente deles (a vista alcança mais longe, mas só vemos o que está à nossa frente, e não como ouvimos, em 360 graus à nossa volta).  Nosso olfato tem pouca utilidade, e nos serve mais para o prazer do que para o trabalho.  A boa cozinha é uma homenagem simultânea ao olfato e ao paladar.  O tato é, como os dois anteriores, sujeito à contiguidade física: só funciona ao termos contato físico com o outro objeto.  Visão e audição (e olfato, um pouquinho) nos mostram o mundo à nossa volta; tato, paladar e olfato nos dão informações sobre algo físico com que fazemos contato.



Daí que a expressão “sexto sentido” seja tão usada, porque volta e meia estamos percebendo algo, ou tendo a sensação de algo, e não sabemos como encaixar aquilo nesse repertório tão limitado.  Li agora um oportuno post de Mark Lorch (aqui: http://tinyurl.com/kn2ghdv) sobre noções científicas superficiais que aprendemos na escola e nunca mais nos livramos. Uma delas, diz ele, é essa limitação de “cinco sentidos”.  Na verdade, temos mais do que isso.



Sentimos o movimento com acelerômetros localizados no vestíbulo, uma região do ouvido interno.  Nosso sentido de equilíbrio se deve ao movimento de fluidos através de canais muito finos, também nos ouvidos: se você ficar tonto, vai sentir um perturbação desse sentido, que usamos o tempo inteiro. O autor também diz: “Quando prendemos a respiração, sentimos nosso sangue se tornando mais ácido à medida que o dióxido de carbono se dissolve nele formando o gás carbônico”.  Bem, eu nunca senti isso, mas quem sou eu para questionar os sentidos alheios; vai ver que sou daltônico nesse aspecto. 



Lorch argumenta: “Não estou sugerindo que comecemos a ensinar a crianças de seis anos coisas estudadas em laboratórios ganhadores do Nobel, nem que o currículo deles seja soterrado de detalhes a respeito de dezenas de sentidos. Mas podíamos parar de contar lorotas.  Podíamos dizer, por exemplo, numa aula de biologia: Nós temos muitos sentidos, e estes aqui são os cinco que vamos estudar.” 


O texto de Lorch questiona estas e outras simplificações, que têm função didática mas acabam se transformando em Tábuas da Lei. Os três estados da matéria, por exemplo (sólido, líquido e gasoso): ele mostra que existem vários outros inclusive o plasma, que é o estado da matéria que compõe o sol.  Dizemos três estados como dizemos cinco sentidos: para facilitar, para poder concentrar o foco em algo mais presente na nossa experiência diária.  Mas a realidade sempre vai muito além disso.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

3650) O café de Balzac (5.11.2014)


Ainda vou escrever um conto futurista sobre uma sociedade onde várias drogas são proibidas a-ferro-e-fogo pelo Estado, entre elas café e açúcar.  Não existe estimulante mais poderoso, não é verdade?  Vai que de uma hora para outra a gente acaba votando (por motivos totalmente outros) num Congresso Nacional cuja maioria é composta de pessoas para quem nada pode haver de mais terrível e imoral do que a absorção dessa infusão negra e tenebrosa (dirão eles), demoníaca (dirão seus teólogos), viciante (dirão seus médicos).



Vôte!  Ainda bem que vivemos numa democracia.  Posso todo dia encher minha caneca fumegante e sentar aqui folheando Balzac, um adicto famoso.  Em seu texto de 1838 “Tratado dos Estimulantes Modernos” (aqui, em francês: http://tinyurl.com/7acapw2) ele fala das cinco substâncias de excitação artificial: o álcool, o açúcar, o café, o chá e o tabaco.  É um texto que antecipa o texto famoso de Baudelaire, Os Paraísos Artificiais (1860), onde o poeta fala do vinho, do ópio e do haxixe. 



Balzac era um cafezeiro hardcore, e sugere variadas maneiras de preparar a beberagem (ele é um dos que consideram uma heresia você jogar água fervendo em cima do pó – a água deve estar apenas quente).  E depois de comparar várias maneiras de administração do café ele diz: “Por fim, descobri um método horrível e brutal que recomendo apenas a homens de excessivo vigor. (...)  É o uso de café pulverizado muito fino, concentrado, frio e com pouca água ou nenhuma, consumido de estômago vazio.”  Ele explica que nessas circunstâncias o café é total e rapidamente absorvido pelo estômago, e a consequência imediata é o aumento da atividade cerebral, que ele descreve com metáforas militares:



“Logo as idéias se põem em marcha, como esquadrões de um exército se espalhando no campo de batalha, e a guerra principia. As lembranças fazem sua carga, com os estandartes tremulando; a cavalaria das metáforas se apresenta com seu magnífico galope; a artilharia da lógica avança com um clangor de máquinas e de munições; a uma ordem da imaginação, os atiradores de elite fazem mira e disparam; formas e silhuetas e personagens ficam prontos; o papel se cobre de tinta, porque essa vigília se abre e se fecha com torrentes dessa água negra, tal como uma batalha se inaugura e se encerra com o negror da pólvora.”


Poder discutir abertamente as vantagens e as desvantagens do café, do chá, do açúcar, etc.  é uma conquista cultural que não devemos desprezar.  Acho que isso tudo faz um pouco de mal, principalmente o açúcar branco, mas acho que proibi-los iria aumentar, e não diminuir, o número de suas vítimas.


terça-feira, 4 de novembro de 2014

3649) Os Reptilianos (4.11.2014)


Tenho uma má e uma boa notícia.  Primeiro a má: os Reptilianos existem. (São aqueles seres possivelmente alienígenas, que se metamorfoseiam de humanos para conviver na sociedade humana, mas nos momentos mais sutis se desmascaram, mostram sua natureza iguana, sua vocação serpente, sua frieza réptil.)  Para compensar, digo logo a boa notícia: somos nós mesmos.  Ou, como dizia um personagem da tirinha de Al Capp, “they is us”.  Eles é nóis.

Minha teoria é de que os Reptilianos não são uma espécie biológica, algo que se distingue da nossa pela diferença genética.  Os Reptilianos são um estado de espírito.  São um software mental, um conjunto de ações, reações, estímulos, reflexos, impulsos, tudo executado por humanos biologicamente iguais a nós.  Por nós mesmos, na verdade. Eles não têm o corpo diferente do nosso, eles têm o corpo da gente, a mente deles é que é outra linguagem, outro volapuque, outro Fortran.

Eles têm uma moral binária; só enxergam sim ou não, preto ou branco.  (Isso vale para os répteis, mas não para ao mamíferos, que é o que somos por “default”. Só viramos reptilianos quando começamos a ver TV.)  Eles dominam um conjunto de algoritmos super complicados que lhes permitem, em fração de segundo, criar diante de qualquer massa de dados duas categorias nítidas (sim/não, on/off, etc.) e despejar tudo nesses dois pratos da balança.  No mundo mental deles, tudo deve ser dividido binariamente, porque na verdade eles são comandados por um cérebro primordial que divide tudo em “a favor / contra”.  O que é a meu favor deve ser preservado; o que é contra mim precisa ser destruído.

Os Reptilianos derivam com facilidade para o esporte e a política, duas atividades onde, por mais que haja “áreas cinzentas”, tudo se decide com resultados numéricos: sim/não, ganhou/perdeu, campeão/vice, governo/oposição.  Uma das frases preferidas dos Reptilianos, ao discutir, é: “Você tem que optar por um dos dois, não pode ficar em cima do muro”, porque para eles é imprescindível estar contra ou a favor deles.  Se eles dizem que a humanidade se divide entre os que gostam de hamburger e os que gostam de pão francês com bife, você tem (pra eles) a obrigação moral de optar por um dos dois. Não pode simplesmente dizer que essa divisão lhe parece irrelevante ou capciosa.

Estamos sendo treinados (pela imprensa, pela TV, pela Internet) para raciocinar sempre nesses termos, “meu lado / o outro lado”, “comigo / contra mim”.  Por que? Não sei, pode ser que os Reptilianos estejam se preparando para uma batalha e precisem de soldados assim, que dividam conceitos com presteza, obedeçam com eficiência, destruam sem remorsos.