quarta-feira, 6 de agosto de 2014

3570) Os jovens milionários (6.8.2014)



A primeira Corrida do Ouro na Califórnia foi em meados do século 19, quando a descoberta de jazidas de ouro à flor do solo fez milhares de pessoas pegarem seus carroções e partirem para o Oeste; foi a Serra Pelada deles. A nova corrida do ouro não é feita de ouro e sim de silício. O Vale do Silício é o novo lugar onde rapazes ambiciosos podem ficar ricos do dia para a noite. O único problema é que, como diz a Bíblia, “são muitos os chamados e poucos os escolhidos”. Uma ótima matéria de Gideon Lewis-Kraus na revista Wired de maio (http://tinyurl.com/lvlfn8b) acompanha a saga da Boomtrain, uma empresazinha de dois rapazes que lutam para levantar um milhão de dólares e colocar no mercado um novo sistema de busca e seleção de vídeos.

Cinquenta e uma novas empresas de informática são criadas todo mês na região de San Francisco. Muitas querem ser o novo Google, o novo Facebook. Outras querem apenas crescer o bastante, atrair a atenção das grandes, e ser adquiridas. Isso gera o dilema nos seus criadores: ficar lutando mais 10 anos pensando em valer um bilhão de dólares, ou vender pela primeira oferta de 100 milhões que aparecer?  Vi muito tempo atrás um documentário sobre “os fracassados do vale de Silício”. Eram os caras que tinham percentagem numa empresa mixuruca e quando a empresa começou a crescer venderam essa percentagem por um bilhão de dólares. O problema é que a empresa era o Yahoo, o Google, a Microsoft, sei lá o quê. Um dos entrevistados, um cara de seus 40 anos, com a linda esposa no jardim deslumbrante de uma fantástica mansão, dizia: “Eu levo uma vida de príncipe, mas sempre que encontro um amigo ele me diz: Que pena que você jogou seu futuro pelo ralo, você podia ter hoje dez vezes mais.” E ele conclui: “Eu não preciso de dez vezes mais, mas não sei se digo isso só para me consolar.”

O capitalismo é alimentado fisicamente por tecnologia e dinheiro, mas ele é alimentado mentalmente pelo delírio quantitativo, a vertigem do número. Se você tem 100, você pode com esses 100 ganhar 200. Já que tem 200, por que não lutar para ter 400, uma coisa tão fácil?  E chegando aos 400, nada nos impede de chegar aos 800. É uma coisa parecida com encher um balão de soprar. Vai sempre haver um ponto em que a bolha pipoca e tudo vai pelos ares, mas enquanto a ilusão se mantém, você diz (como o viciado em droga): “Só mais este, e depois eu paro.”  Não para, ou melhor, é a bolha quem para, e aí você fica sem nada.

“Quer ser um jovem milionário?”  Todo mundo quer ser, e muitos conseguem. E muitos voltam à pindaíba porque ouviram a pergunta fatal, que vem depois: “Quer ser um jovem bilionário?”


terça-feira, 5 de agosto de 2014

3569) "Viagem" de Graciliano (5.8.2014)



(1a. edição - capa de Cândido Portinari)

“Viagem” (1954) é um livro póstumo de Graciliano Ramos, contando sua visita à Checoslováquia e à União Soviética em 1952. O visitante já morreu e os países visitados não existem mais; o livro vale pela lenda deixada por cada um e pelo resíduo pessoal que livros assim guardam para sempre. Graciliano, um comunista sincero, descreve os triunfos industriais e copia as estatísticas acachapantes fornecidas pelas autoridades stalinistas, mas é tão reticente e desconfiado quanto sempre o foi com sua própria pátria. (Ou até sobre seu Estado natal, pois ele disse uma vez que Alagoas “daria um excelente golfo”.) O escritor foi numa caravana de dezenas de brasileiros (o livro tem várias fotos deles misturados a escritores russos) e percorreu o roteiro propagandístico habitual nessas viagens, em que os visitantes são ciceroneados por guias solícitos, sempre prontos a dar a versão oficial de qualquer coisa.

O frio e a vodka são personagens constantes dessa trajetória entre hotéis, aeroportos (Graciliano ainda usa o termo “aeródromo”), escolas, fábricas, paradas militares, recepções, concertos, uma agenda estafante de visitas, para exibir aos visitantes (de dezenas de países) os triunfos e a eficiência do regime comunista. A visita ocorreu menos de um ano antes da morte de Stálin (em março de 1953) e reflete uma época em que a fama dele como “pai do povo”, “grande líder”, estava no auge. Graciliano não era imune a essa fama, e o capítulo 9 do livro é uma defesa do ditador que ainda hoje incomoda nossa crítica literária. Expressões (dirigidas a Stalin) como “tremendo condutor de povos”, “defensor da classe trabalhadora”, soam mais como editoriais do jornal do Partido do que como uma expressão literária espontânea.

Aliás, o livro inteiro desagrada aos que têm envolvimento político: os comunistas esperavam um elogio eufórico, os anti-comunistas esperavam uma crítica demolidora, uma denúncia indignada dos expurgos e fuzilamentos. O autor, embora claramente a favor do regime, é meio incrédulo diante das estatísticas, desconfiado de tantas amabilidades, incomodado pelo excesso de solicitude. O capítulo 9 chega a parecer um texto destinado a ser lido pelos censores do Partido para garantir o “imprima-se”. Os melhores momentos são aqueles em que o comunista cede lugar ao escritor, como a noite em que se perde nas ruas desertas e geladas, sem encontrar o hotel, ou o encontro com uma descendente de príncipes num jardim onde vê um nordestino pé de quipá.  Era um Graciliano velho, carcomido pela doença, já sem forças para duvidar. Graciliano morreu também em 1953, duas semanas depois de Stalin.


domingo, 3 de agosto de 2014

3568) Escrever para crianças (3.8.2014)



Isaac Bashevis Singer é um excelente contista de origem judaica. Parece que foi o primeiro escritor no idioma iídiche a ganhar o prêmio Nobel (em 1978).  É conhecido por sua obra para adultos, da qual já li uns dois volumes de contos excelentes sobre o cotidiano de pessoas excêntricas. Alguns dos seus contos fantásticos produzem um clima inesquecível de estranheza, de um terror sem monstros.

Singer escreveu para crianças também, embora eu nunca tenha avaliado essa parte de sua obra. O que me atraiu foi esta curiosa lista que ele intitulou “Por que comecei a escrever para crianças”, que tem algumas indicações importantes para que se dedica a essa atividade que tem algo de cabra-cega. Eis os itens listados por ele, durante o seu discurso no banquete do Nobel, em Estocolmo:

“1) Crianças leem livros, não leem resenhas de livros. Elas estão se lixando para as críticas. 2) Crianças não leem para descobrir a própria identidade.  3) Elas não leem para se libertar da culpa, para saciar sua sede de rebelião, ou para se livrar da alienação.  4)  Elas não veem utilidade na psicologia.  5) Elas detestam sociologia.  6) Elas não tentam entender Kafka ou o “Finnegans Wake”.  7) Elas ainda acreditam em Deus, família, anjos, demônios, bruxas, goblins, lógica, clareza, pontuação, e outras coisas obsoletas.  8) Elas gostam de histórias interessantes, e não de comentários, guias de leitura ou notas de rodapé.  9) Quando um livro as entedia, elas bocejam abertamente, sem nenhum constrangimento e sem medo de alguma autoridade. 10) Elas não esperam que seus escritores mais queridos salvem a humanidade. Jovens como são, elas sabem que ele não tem esse poder. Somente os adultos mantêm ilusões tão infantis.”

Alguns itens fazem parte daquela eterna luta de muitos escritores contra o vanguardismo, o intelectualismo, o cerebralismo excessivo na literatura. Singer usa as crianças, me parece, como imagens idealizadas de um estado pré-intelectual em que alguém é capaz de receber uma história como história em si, e não como uma ilustração de princípios abstratos de qualquer natureza (estética, ideológica, religiosa, etc.).  A história concreta, não os conceitos abstratos. No item 6, minha interpretação é de que Kafka e o “Finnegans Wake” são exemplos de literatura pura, e Singer, acho, está nos dizendo que as crianças não tentam “entendê-los” intelectualmente; elas, se lessem os dois, fariam o que seria (pra mim) a leitura correta: absorver o texto sem tentar explicá-lo. Ou, numa frase de Chesterton parafraseada por Neil Gaiman: “As crianças não aprendem, nos contos de fadas, que os dragões existem, mas que os dragões podem ser derrotados”.


sábado, 2 de agosto de 2014

3567) Tradutores, uni-vos! (2.8.2014)



(cartum de Samuel)

A frase me surgiu de improviso ao discutir uma questão inesperada: “Tradutores, uni-vos! Sem a gente não existia esse livro!”.  Não se pense que estou conclamando multidões à rua; basta me conhecer para saber da impossibilidade científica de tal evento. Melhor trazer outra explicação.  O “uni-vos” não quer dizer que tenham de sair à meia-noite de archote em punho ou que conquistem praças, esquadras e palácios à frente de um milhão de mujiques. Uma forma de união seria tornar mais frequente e mais pública a discussão das traduções e de suas dificuldades, até mesmo para que o público leitor entendesse o que é de fato uma tradução. (Muita gente ainda pensa que tradução é como exercício de caligrafia: já está tudo feito, e ganha nota boa quem fizer mais parecido com o original.)

OK, creio que existem fóruns de tradutores, portais de debates, de trocação de figurinhas e de lavação de roupa suja, mas o leitor em geral fica alheio a esses conciliábulos. As editoras, principalmente as que lidam com os clássicos (livros com numerosas versões) bem que poderiam desembolsar uns caraminguás extras, e contribuir para que os leitores lessem melhor. E comprassem melhor.

Uma das vantagens do texto eletrônico-digital é a possibilidade de expandir e contrair grande quantidade de texto. Podia haver uma espécie de meta-edição de clássicos em que algumas partes mais importantes ou mais obscuras pudessem, a um comando de link ou de toque, abrir janelas laterais com um certo número de traduções para vários idiomas, cada uma delas comentada, justificada, de modo a ser proveitosa a quem não soubesse o idioma original. Poderíamos ter, por inevitável exemplo, o Ulisses de Joyce em inglês, e a cada passo poderíamos ler um parágrafo do original tendo ao lado janelinhas com as respectivas traduções de Antonio Houaiss, Bernardina Pinheiro e Caetano Galindo.

Como será que idiomas mais visuais e menos analíticos do que os nossos imaginam, por exemplo, o “Ser ou não ser?” de Hamlet? Como resolvem o contraste entre essa linha inicial tão yin-yang e o jorro de imagens vívidas, sensoriais, com simbologia moral, emoções diametralmente opostas, que vem a seguir?  Quando a gente traduz, mesmo que seja uma notícia de jornal ou um trecho de entrevista, a gente traduz não somente a letra, traduz também a música, é forçado a mudar também a música do original, a sua combinação feliz ou desajeitada de vogais tônicas, as aliterações, o modo da frase se erguer no ar, dizer alguma coisa e depois deitar-se na linha novamente.  Toda frase bem escrita tem um desenho que nosso ouvido sempre reproduz, não importa se a leitura em si é silenciosa.


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

3566) O agente duplo (1.8.2014)



(túmulo de Kim Philby na Rússia)

Espiões duplos são um tema fascinante. Imagine só: o cara é um espião inglês, e mora em Moscou, disfarçado de adido de embaixada ou outra coisa assim. Um dia, sigilosamente, ele se oferece à URSS para entregar segredos britânicos, e é aceito. Ele começa a fazer esse jogo.  Mas a certa altura ele vai ao governo inglês e conta o que aconteceu: está trabalhando para os russos, que têm toda confiança nele... porque não se aproveitar disso? Ele ganha um aumento e, orientado pelo Serviço Srecreto britânico, passa a transmitir aos russos segredos falsos. Mais adiante, ele é descoberto pelos russos e forçado a confessar essa jogada. E têm uma idéia: por que não aproveitar a situação, dar mais uma reviravolta, e recomeçar tudo?  Os russos lhe dão um novo aumento, e ele passa a transmitir segredos verdadeiros da Inglaterra... O agente duplo ideal trabalha para os dois lados e não trabalha para nenhum. Só ele sabe a qual dos dois está de fato ajudando, e às vezes nem mesmo ele.

Um livro policial de Kyle Hunt, que li séculos atrás, tinha este ótimo título: “Quem mata torna a matar”. Eu diria que na espionagem, e na vida em geral, num sentido mais metafísico, quem mente torna a mentir. No momento em que o sujeito conta sua primeira mentira, e um raio não cai do céu reduzindo-o a pó de traque, ele percebe que é indestrutível, e aí mente de novo, e de novo, e de novo. Não me refiro a mentirinhas bobas, tipo ir beber com os amigos e dizer à esposa que jantou com o patrão. Falo de mentir para o Serviço Secreto da própria pátria. Quando nada acontece, o cara percebe que pode fazer aquilo impunemente, mesmo que suas chances de ser apanhado sejam sempre imprevisíveis.

Duas outras coisas sobre espiões. Já li um ensaio sobre espiões britânicos apontando o alto índice de homossexualidade entre eles. Segundo o autor do ensaio, ser gay no tempo da Guerra Fria não era brincadeira (vejam o que a Inglaterra fez com Alan Turing, pra dar só um exemplo). O jogo de máscaras, de duplicidades, de fingimento 24 horas por dia era algo a que um gay já estava acostumado, e para ser espião não requeria nenhum upgrade. Segunda coisa: um espião duplo, geralmente, tem um certo desprezo pela noção de pátria. Ele se liga em pessoas; é para com elas a pouca lealdade que tem. Frio, distanciado, brechtiano, embora afável e receptivo por fora, ele não tem o idealismo romântico do soldado de trincheiras, que julga defender uma bandeira, um hino, um ideal político. Mercenário mas humano, ele pode virar a casaca ao vento de um novo contexto pessoal; são assim alguns personagens de John Le Carré, Graham Greene e outros.


quinta-feira, 31 de julho de 2014

3565) Billy Wilder ensina (31.7.2014)



(túmulo de Billy Wilder)

Billy Wilder, roteirista e diretor alemão, fugiu do nazismo e veio parar bastante jovem em Hollywood, onde dirigiu filmes como Pacto de Sangue (1944), Crepúsculo dos Deuses (1950), A Montanha dos 7 Abutres (1951), Quanto mais quente melhor (1959) etc. Numa série de entrevistas para Cameron Crowe, Wilder deu várias dicas de como construir uma história para o cinema. São dicas que valem para a arte da narrativa em geral: literatura, HQ, teatro, etc.

Dizia ele: “Quanto mais sutilmente você esconder os detalhes essenciais do seu enredo, mais competente você é como escritor”. E dizia também: “Uma dica de Ernst Lubitsch: deixe a platéia somar dois mais dois, e ela vai amá-lo para sempre”.  São duas dicas importantes e aparentemente contraditórias. Na primeira, ele nos diz para esconder elementos importantes da platéia, pegá-la de surpresa. Ocultar dados essenciais de maneira sutil, às vezes deixando-os à mostra, sem lhes dar importância, mas fazendo o público registrar a informação, para lembrar dela no momento da surpresa. Na hora do perigo, quando o mocinho achar a arma que vai salvá-lo, a arma tem que ter sido mostrada, sob outro pretexto, lá no começo da história; mas houve fair-play. “Eu mostrei, vocês é que não deram a devida atenção”.

Wilder diz também: faça o público tirar suas conclusões, sem lhe dar a resposta. Dê apenas as pistas. Obrigue-os a ficar de olho em tudo. Quando o espectador deduz algo e vê essa dedução confirmada, ele se acha inteligente, e com isso acha o diretor inteligente também. Raymond Chandler citava como bom exemplo de roteiro esta cena, cujo objetivo era mostrar um casal em crise. Marido e esposa entram no elevador. Marido de chapéu na cabeça. Elevador para noutro andar. Entra uma mulher. Marido tira o chapéu, cavalheirescamente. O roteiro fornece o 2+2 e a conclusão é por conta da platéia: ele não dá a mínima para a esposa. (O exemplo é dos anos 1940: como seria um exemplo equivalente para 2014?)

Esses conselhos (estimular a surpresa, estimular a dedução) mostram que uma das raízes da narrativa é a interatividade.  É da tensão entre essas perguntas e respostas que a narrativa (literária, cinematográfica, etc.) vai construindo sua relação com o leitor, e se tanto o autor quanto o leitor são inteligentes, essa relação vai se tornando cada vez mais complexa e prazerosa. Vira um jogo. Eu diria que nesse aspecto a história de mistério (mais tipicamente o mistério policial, detetivesco) é a narrativa por excelência, porque nenhuma outra se baseia tanto nesse jogo de pequenos enigmas que brotam num minuto e são respondidos (ou adivinhados pelo público) no minuto seguinte.


quarta-feira, 30 de julho de 2014

3564) A mensagem do livro (30.7.2014)




Um dos vícios mais recorrentes na apreciação de um livro, consequência de um ensino errado de literatura no colégio, é ter que perguntar, como num guia do professor: “Qual a mensagem do livro? Qual a idéia que o autor quis transmitir?” E coisa e tal. 

Não estou dizendo que um livro não possa ter uma mensagem. Há muitos que têm, mas geralmente são os mais chatos e desnecessários. Foram provavelmente escritos por pessoas que ouviram esse tipo de questionário na escola, e a partir daí começaram a ler os livros em busca da mensagem de cada um. 

Acabam largando os livros rapidinho ao perceber que eles não têm mensagem nenhuma, ou têm duas ou três mensagens contraditórias, ou têm milhares de mensagens que não batem umas com as outras, etc.

Um dia esses leitores tornaram-se escritores.  Seu processo criativo, provavelmente, passou a acontecer assim: 

1) Conceber uma mensagem, geralmente com o objetivo de ensinar a alguém alguma lição-de-vida útil; 

2) Imaginar uma situação em que essa mensagem seja necessária para um personagem ou grupo de personagens que a desconhecem; 

3) Fazer com que, no momento culminante, perto do fim, um dos personagens diga a mensagem, de forma clara e inequívoca, aos demais. (E ao leitor.)

É a existência desse tipo de literatura simplória que acaba prejudicando o restante, porque começam a cobrar esse tipo de mensagismo rudimentar aos livros de verdade – e a considerá-los livros defeituosos, “herméticos”, “elitistas”, quando descobrem que eles não funcionam dessa forma. 

Ficam como certos leitores de fábulas (de Esopo, de La Fontaine, etc.) para quem a “moral da história” é o que importa, e a história está ali só para justificar a moral. (Por isso as melhores fábulas são somente a história, e deixam a “moral” para ser descoberta – ou inventada – por quem lê.)

Uma ótima resposta para isso é a do dramaturgo Harold Pinter, que uma vez recebeu uma carta de uma espectadora de sua peça The Birthday PartyA madame dizia: 

“O sr. pode me informar o significado desta sua peça? Há três pontos que não compreendi: 1) Quem são os dois homens? 2) De onde veio Stanley? 3) Devemos considerá-los normais? Espero que o sr. entenda que sem as respostas a estas perguntas não poderei entender sua peça.”

Pinter respondeu: 

“Prezada senhora: Ficaria grato se me explicasse o significado de sua carta. Há três pontos que não compreendi: 1) Quem é a senhora?  2) De onde a senhora vem?  3) Devo considerar que a senhora é normal?  Espero que a sra. entenda que sem as respostas a estas perguntas não poderei entender sua carta.”

E nada mais disse nem lhe foi perguntado.







terça-feira, 29 de julho de 2014

3563) Forster e a burocracia (29.7.2014)



Quando se diz que o ser humano vai ser destruído por máquinas que ele mesmo criou, tem gente que imagina logo hordas de andróides assassinos ou de robôs desregulados. 

Não vou dizer que isso é impossível, porque não quero queimar minha língua daqui a dez anos, mas por enquanto acho que essas tais máquinas destruidoras são de outra natureza. A burocracia, por exemplo, é uma máquina – um conjunto de processos interligados, cheios de vetores hierárquicos (séries de atos que só podem ser cumpridos se outros atos forem cumpridos primeiro) e assim por diante. 

Numa crônica anterior (“O que é um Loop”, em http://tinyurl.com/myqtz37) falei sobre um desses aspectos.

Conta-se que quando publicou em 1922 seu livro de viagens Alexandria, E. M. Forster (autor de Passagem para a Índia, etc.) recebeu certo dia uma carta da editora, informando que tinha havido um incêndio no depósito e, entre outras coisas, toda a primeira edição do livro fora destruída. 

Por sorte a edição estava no seguro, o seguro já tinha sido pago, e acompanhava a carta um cheque (“com uma soma substancial”) referente aos direitos autorais daquela tiragem.

Forster achou aquilo muito chato, mas não tinha jeito a dar; embolsou o cheque e foi pensar noutra coisa. Semanas depois, entretanto, chega outra carta. Os editores acabaram descobrindo que o porão do armazém havia sido poupado do fogo, e justamente lá tinha sido estocada toda a edição do livro dele.  

Parecia uma solução, mas na verdade era um problema. A destruição tinha sido comunicada à seguradora, que achara suficientes as provas apresentadas. O dinheiro já tinha sido pago e provavelmente gasto, ia ser difícil não só devolvê-lo como desmanchar todos os trâmites legais que conduziram ao pagamento. Qual foi a solução que a editora encontrou? Incinerar os livros. 

Acontecem coisas assim o tempo todo na administração pública e privada. Me lembro que o Brasil já mandou destruir milhões de toneladas de café colhido e ensacado para provocar escassez do produto e aumentar o preço dele no mercado.   

A história me lembra também certas soluções políticas em que é impossível desfazer um erro e o jeito é cometer outro erro do mesmo tamanho para equilibrar os pratos da balança. Em Limite de Segurança de Sidney Lumet, os EUA jogam sem querer uma bomba atômica sobre Moscou. Para mostrar que estavam de boa fé e evitar um holocausto nuclear, o presidente norte-americano manda jogar uma bomba idêntica sobre Nova York. 

Os processos da política, da administração, da economia são de tal natureza que um erro acaba gerando uma cadeia de soluções tão catastróficas quanto o problema original. E la nave va.








domingo, 27 de julho de 2014

3562) O momento poético (27.7.2014)



("A Grande Onda de Kanagawa", de Hokusai)

Em sua biografia do poeta japonês Matsuo Bashô, o mestre do haikai, Paulo Leminski transcreve este curto poeminha do mestre: “dia de finados / do jeito que estão / dedico as flores”. E comenta: 

“Na festa de Ulambamma, os japoneses homenageiam os mortos. Nesse dia, todos colhem flores para levar aos que já se foram. Bashô, também: é um budista, articulado com os ritos da tribo. No haikai, porém, a subversão súbita: as flores que vê, Bashô as oferece aos defuntos, sem tirá-las do pé. Uma afirmação de vida: um sim para a poesia.”

Olha que coisa mais bonita. Ele olha para as flores. Poderia arrancá-las e levá-las até os túmulos. Mas ele prefere deixar as flores vivas, unidas à sua planta de origem; prefere permitir que elas continuem vivendo mas, num gesto simbólico, dedicar a beleza e a vida delas aos mortos humanos, aos que já se foram. E ele deposita as flores, apenas metaforicamente, aos pés dos mortos queridos.

Isso é o gesto poético. E ele se equivale, de maneira antipodamente semelhante, ao gesto modernista e irreverente de Marcel Duchamp quando pegou um mictório de porcelana e o enviou a uma exposição de arte sob o título de “Fonte”. 

O que houve de artístico nesse gesto de Duchamp (que, infelizmente, produziu uma gigantesca bola-de-neve de mal-entendidos, porque cada sujeito preguiçoso julgou-se no direito de pegar qualquer objeto encontrado e chamá-lo de obra de arte)?  

Duchamp percebeu que um ingrediente essencial da arte é essa intenção, esse modo-de-ver, essa decisão íntima do artista projetando significado no gesto de depositar flores invisíveis ou de sagrar como arte um objeto banal.

Note-se que Bashô não se limitou a pensar no gesto de dedicação das flores: ele escreveu um haikai descrevendo esse gesto. O haikai substitui o gesto, de forma artisticamente satisfatória (pelo menos pra mim). Um gesto convencional (levar flores aos finados) tornou-se artístico quando não foi executado e foi substituído por uma obra de arte (o poema). 

No caso de Duchamp, a obra de arte (uma pintura, uma escultura, etc.) que alguém talvez esperasse dele não foi executada: foi substituída por um gesto banal, o de enviar alguma coisa. Dois fatos artísticos, um sendo o contrário do outro, e os dois se equivalendo.

A extrema sutileza de ambos passou despercebida não só pelos críticos que os combateram, como também pelos pseudo-discípulos que tentaram imitá-los. Porque do ponto de vista artístico um gesto assim só pode ser pensado uma vez, um momento poético assim pertence por inteiro a quem o concebeu, e não pode ser imitado ou transformado em gênero, em ideologia, em atitude. É arte porque é único. E morreu aí. 





sábado, 26 de julho de 2014

3561) Achei dentro dum livro (26.7.2014)



Quando estou folheando os livros das minhas estantes encontro de tudo um pouco. 

Como tenho o costume de fazer anotações, uso muitas vezes como marcador de página uma pequena ficha pautada, onde vou anotando detalhes ou os números de páginas onde há algo interessante, quando é um livro que por um motivo ou outro não quero rabiscar. (Quando é um livro comum, anoto tudo na última página em branco.)  

Mas me acontece muito encontrar fotos, tickets de avião (nos livros que leio durante o voo), bilhetes, contas, canhotos de ingressos de cinema ou de shows, cartões postais, o escambau. 

O websaite Abebooks publicou um levantamento feito com livreiros de livros usados do mundo inteiro, onde eles relatam o que acham nos acervos que vêm parar nas suas mãos. (Aqui: http://tinyurl.com/5q2qlk)

Há a história de uma mulher que comprou um livro antigo num bazar, no Novo México, e encontrou dentro 40 notas de mil dólares. Essas notas, de uma série impressa pela última vez em 1934, valem mais até do que seu valor nominal.  

Outro item valioso foi achado por um livreiro da Califórnia: um cartão de Natal com uma assinatura ilegível, que ele levou anos para identificar como sendo de L. Frank Baum, o autor de O Mágico de Oz. O cartão foi vendido depois num leilão por 2.500 dólares. 

Alguns livreiros são mais honestos do que o normal. Uma livreira de Idaho achou cem dólares num livro e os devolveu à pessoa que deixara o livro em consignação. (Tenho certeza de que muitos leitores dirão: “Ah, não tinha que devolver! Se o dono do livro não viu o dinheiro, azar o dele!”)

Esses livreiros já acharam dentro de livros antigos uma receita médica datada de 1785, uma carta manuscrita por C. S. Lewis (o autor de Narnia), o texto integral de uma conferência astronômica proferida por alguém em 1895. 

Há também registro de pequenos objetos encontrados entre as páginas, desde um dente de criança até um anel de ouro com um pequeno diamante ou uma tesoura ou uma camisinha não usada ou uma mecha de cabelo ou um biscoito de chocolate ou uma fatia de bacon. 

Um livreiro de Michigan achou num livro sobre futebol um cupom de poupança no valor de 500 dólares, e ao contactar a família descobriu que o cupom estava perdido há onze anos, e eles tinham revirado a casa inteira à sua procura. O achado acabou custeando a entrada de uma das filhas, agora adulta, na universidade.

Um livro qualquer acaba se tornando às vezes um bolso de ocasião, um pequeno cofre, uma cápsula do tempo onde a gente se depara com o estranho, o bizarro, o inesperado. Alguém poderia organizar uma antologia de contos com esse tema. Dou esta idéia de graça.