quinta-feira, 8 de maio de 2014

3493) Contracapa de WhatsApp (8.5.2014)



(ilustração: Ron Miller)

&  no discurso político, a veemência é um mero ensaio para a violência  

&  o mais democrático do carnaval é o direito de sair à rua sem usar nenhuma fantasia  

&  o tempo que me resta é curto demais para que eu o desperdice lendo o que não me agrada, não me tumultua, não me ilumina  

&  um poema é a rachadura na vidraça por onde o sol surpreende com um arco-íris  

&  não adianta exigir honestidade aos desonestos, é como exigir vegetarianismo aos felinos  

&  toda letra de bolero se torna possível depois das duas da manhã  

&  ser fã é considerar a si próprio um mero efeito colateral de algo mais importante  

&  a política é a arte da esperança obrigatória, da amnésia por conveniência, do regateio infinito  

&  você sabe que está ficando importante quando todo mundo começa a lhe prestar favores sem você nem pedir  

&  aquela sensação de pequeno lorde inglês estudando entre atiradores de bumerangue lá num outback da vida  

&  confiar, mas verificando; desconfiar, mas discretamente  

&  dá pena pensar em todas as gírias brilhantes que se evaporaram sem chegar ao papel  

&  basta uma coisa dentro de uma mochila para varrer Manhattan do mapa  

&   a memória é uma ponte elástica ligando o passado ao futuro  

& até hoje nenhum cientista conseguiu provar por a+b que é possível provar alguma coisa por a+b  

&  a gente se esforça tanto e no fim vira apenas o rei da gafe, o campeão do mico, o especialista em meter os pés pelas mãos  

&  criança de rico é bonsai, criança de pobre é erva daninha  

&  toda comida tem algo de veneno  

&  o sujeito está com o saldo bancário no vermelho e ainda passa uma tarde preocupado com a Conjetura de Riemann sobre os números primos  

&  inventou um vibrador que diz “quer casar comigo?” e ficou rico  

&   certos jogos de futebol deixam a alma da gente mais massacrada do que a grama onde aconteceram  

&  mandar é como obedecer: depois que o cara acostuma aquilo vai por si só  

&  um apartamento flutuando sobre o abismo até que alguém abre a porta  

&  ser imortal é estar condenado à prisão perpétua sem chance de fuga  

&  a única vez que tentei conversar com uma árvore ela me disse: vai correr, aproveita que tem perna!  

&  há duas maneiras de perder uma mulher: tratá-la como um mero animal, e tratá-la como alguém sem animalidade nenhuma  

&  o poeta é um voyeur clandestino espiando as frestas dentro de si mesmo  

& ainda veremos políticos contratando romancistas para escreverem biografias deles onde tudo deu certo  

&  depois de uma noite de bebida incessante e escrita furiosa, eu apago a luz e me aconchego aos ácaros  

&  você paga a vida com a vida, e o que o mundo lhe dá é troco  &


quarta-feira, 7 de maio de 2014

3492) O nome do celular (7.5.2014)



Quando aparece uma novidade tecnológica, ela muitas vezes já vem batizada do laboratório (pelos técnicos que a criaram) ou da fábrica (pelos marqueteiros que vão colocá-la ao alcance do público).  Mas também acontece do produto sair com um nome e bem depressa a rua batizá-lo de novo. O produto na rua é outra coisa. É como você batizar um filho de Gumercindo e descobrir que no colégio ele virou Gugu.

O caso do telefone celular é interessante porque nos EUA ele é chamado de “cell phone” e na Inglaterra de “mobile”, e neste caso, pelo menos, seguimos os EUA. A gente não diz “Liga amanhã pro meu móvel”, embora a expressão “telefonia móvel”, para falar da indústria, seja corrente na imprensa e nos documentos jurídicos.

Um blog (aqui: http://tinyurl.com/qcroh6c) fez um levantamento sobre o modo de chamar esse aparelho em vários países. É um levantamento informal, mas em princípio merece uma olhada. O nome “cellphone” (e derivados, como “celular”) é predominante nos EUA, Brasil e Filipinas, e presente na Argentina e Cuba.  O termo “móvel”, nos seus derivados como “mobile”, predomina no Irã, Espanha, Dinamarca, Reino Unido, Nova Zelândia, Índia, Holanda.

Há outros termos interessantes,  como por exemplo “portable”, em francês, que se alterna com “mobile”, porque também é usado para computadores portáteis. A Coréia, a Alemanha, a Indonésia e a China usam “handphone” (ou “handy”), “telefone de mão”, que é simples e intuitivo.  Na Turquia, o também óbvio “pocket phone”, “telefone de bolso”, que seria o meu preferido numa votação, até porque me lembra “pocket book”.  Israel usa “Pelefon” que o saite em inglês traduz por “wonder phone”, “fone maravilha”.

Aqui no Brasil começamos usando “telefone celular” que foi logo abreviado para “celular” para distingui-lo do “telefone de linha”. Todo mundo diz: “Não me liga no telefone, liga no celular”.  Usamos também assim: “Não me liga no fixo, liga no celular”. “Fixo” é uma denominação retroativa, porque esse tipo de telefone só foi chamado assim depois que os telefones móveis apareceram. A interferência mais criativa do Brasil foi criar a piada do “telefone molecular”, que consiste em chamar um moleque, dar-lhe um recado e dizer que vá correndo. É uma cena machadiana (os personagens de Machado de Assis não vivem sem um moleque de recados capaz de disparar pela cidade afora para levar mensagens urgentes), mas ao mesmo tempo fico imaginando um tradutor estrangeiro de um romance nosso que se deparasse com esta expressão; se o contexto não desse mais informações, pensaria tratar-se de uma história de ficção científica.


terça-feira, 6 de maio de 2014

3491) Policarpo Quixote (6.5.2014)



É quase um lugar comum da crítica dizer que Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) de Lima Barreto é um romance sobre a loucura. A trajetória do protagonista é comparada à loucura mansa de Dom Quixote, que vive num mundo mental diferente da “realidade consensual” das pessoas à sua volta. O Major Quaresma, no entanto, é um cidadão muito mais integrado ao mundo. Trabalha numa repartição; conhece pessoalmente o Presidente da República; compra um sítio; dedica-se à agricultura; alista-se como voluntário no exército durante uma revolta armada... Ou seja: faz o que outros cidadãos também fazem ou gostariam de fazer. Não come merda nem rasga dinheiro, e toda vez que atravessa uma rua chega inteiro do outro lado.  Doido, ele não é. Ou pelo menos não é mais do que eu.

E no entanto o major acaba internado num sanatório, tal como aconteceu com o próprio Lima Barreto. Por que?  Porque cismou que o Brasil tinha que ser diferente. É a megalomania do paranóico, o qual acredita que o mundo inteiro gira em redor do seu umbigo, que o mundo inteiro espera dele intervenções grandiosas e decisivas. Quaresma é acometido de surtos de amor fervoroso pela Pátria, convence-se do grande destino que a espera, e tudo que quer é sacudir o povo brasileiro pelos ombros, despertá-lo, pô-lo de pé, encaminhá-lo para seu grande destino. Isto é ser doido?  No Brasil, parece que sim.

Lima Barreto diz: “O primeiro fato surpreendeu, mas vieram outros e outros, de forma que o que pareceu no começo uma extravagância, uma pequena mania, se apresentou logo em insânia declarada.”  O requerimento que ele faz à Câmara propondo que o tupi seja adotado como língua oficial do Brasil fica famoso da noite para o dia.  Quaresma, por assim dizer, torna-se um meme das redes sociais da época. “Publicado em todos os jornais, com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma pilhéria sobre ele... Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o major foi apontado na rua.”

A não ser em casos graves e extremos, um doido pode viver em paz e ser considerado apenas como excêntrico ou “cheio de manias”. O erro de Quaresma é tornar-se visível, primeiro pelo requerimento, depois quando por distração faz enviar um ofício em tupi (que fizera como mero exercício) na repartição onde trabalha. Tivesse ficado em casa com sua mania, seria deixado em paz. Seu erro é o erro de todos os idealistas: querer colocar em prática seus ideais. É o erro dos filósofos que não se contentam em explicar o mundo, querem mudá-lo também. Todo mundo aceitaria Dom Quixote lendo seus livros de cavalaria e sonhando em paz. Mas pegou em armas?  É doido.


domingo, 4 de maio de 2014

3490) Jovens tradutores (4.5.2014)


Muitos jovens (ou nem tanto) me perguntam às vezes: “Como se faz pra trabalhar como tradutor?”  O mais simples é mandar um email para uma editora, dizendo que quer traduzir e as suas áreas de preferência. Eu costumava dizer: “Traduzo do inglês, e tenho bom conhecimento de ficção científica, fantasia, terror e policial”.  Minhas primeiras traduções (sob pseudônimo) foram de romances de amor tipo Sabrina ou Bianca, e livrinhos de faroeste. Pegue. É treinamento, é um aprendizado sobre você mesmo. Não ligue se o livro é bom. Faça o melhor possível. Se você é incapaz de traduzir um livro ruim, nunca vai traduzir um livro bom.

Às vezes eu juntava à carta um pequeno texto (1 ou 2 páginas) com um exemplo de tradução feita por mim.   Escolhia um conto curto ou trecho de livro, mandava o original e minha tradução para eles terem uma idéia.  Isso não elimina uma fase indispensável: a editora lhe manda um texto (em geral um capítulo de um livro) e lhe dá um prazo, digamos uma semana.

É o teste. Todo mundo passa por isso, se nunca traduziu profissionalmente, mesmo que tenha todos os diplomas de Cultura Inglesa ou Aliança Francesa. Saber uma língua não implica saber traduzir. Saber traduzir é saber escrever. Ser tradutor é ser escritor. Se você não se acha capaz de escrever um livro saído de sua própria cabeça, seja literatura ou não-ficção (um livro técnico sobre sua profissão, por exemplo), como diabo vai ser capaz de escrever em português um livro de outro cara, escrito noutra língua?

Se você pode dar tempo integral a isso, ótimo. Se não, reserve algumas horas por dia só para traduzir. Não importa se num dia você fez dez páginas e no outro só fez uma. O importante é avançar. E não ficar muito tempo “longe do livro”. Às vezes a gente fica duas, três semanas sem pegar na tradução, pensando em fazer um “esforço concentrado” no final; isso pode dar certo, ou não. Escolha o método que produza melhores resultados.  

Para ganhar dinheiro com tradução você precisa ser do tipo que gosta de escrever, porque vai ter que escrever e reescrever muito. Hoje, tudo ajuda o tradutor sério: Google, Google imagens, dicionários online, fóruns online, redes sociais onde a galera troca figurinhas e tira dúvidas entre si.  Tradução não é uma coisa para ser feita às pressas e entregue antes do prazo. Se pedem para o dia 30 e você no dia 25 já terminou, não mande ainda. Volte ao começo e vá passando um pente fino. Estourar o prazo é uma coisa chata, mas pior ainda é entregar antes do prazo, só pra mostrar serviço, um trabalho cheio de pequenos defeitos, de esquecimentos, de repetições, de coisas que teria dado para ajeitar.


sábado, 3 de maio de 2014

3489) Policial existencialista (3.5.2014)



Albert Camus afirmou que, ao escrever o clássico O Estrangeiro (1942) estava tentando escrever um daqueles romances de crime-norte-americanos que gostava de ler, e que ficaram conhecidos como “roman noir” (batizando depois o gênero cinematográfico do “film noir”), devido a uma famosa coleção francesa de capas pretas.  Para alguns puristas pode parecer uma heresia a noção de que o Filósofo do Absurdo estava querendo imitar autores como Dashiell Hammett, mas o Romance Policial Existencialista, gênero que acabo de batizar neste momento histórico, tem raiz nesse curioso movimento de trocas culturais entre EUA e França.

O movimento se dá mais ou menos assim: a cultura popular dos EUA produz alguma coisa que faz relativo sucesso em seu país mas é esnobada pelos intelectuais. Algum tempo depois, intelectuais franceses descobrem aquilo, maravilham-se, e começam a imitá-lo ou dedicar-lhe exegeses. Com esse súbito acesso de respeitabilidade, geralmente a obra original passa a ser vista com mais atenção no país de origem. Cineastas como Samuel Fuller e Jerry Lewis são muito mais respeitados na França do que em sua terra. Edgar Allan Poe talvez tivesse sumido no submundo da literatura de gênero se não fosse Baudelaire. E o romance de crime ganhou esse verniz existencialista graças a praticantes como o próprio Camus, Alain Robbe-Grillet etc.

O romance policial, além do lado de enigma e mistério, tem um lado “social”, de mostrar o que existe por baixo do tapete da civilização.  E pode ser também a grande literatura trágica do nosso tempo, porque nada melhor do que o crime para exprimir a tragédia humana.  A tragédia da civilização fora-dos-eixos, da vida que não deu certo, dos destinos individuais presos na teia dos acasos, fatalidades e outros ingredientes da tragédia grega. Alguns tentam fazer isso recheando seus enredos com reflexões filosóficas.

Se de fato considerarmos O Estrangeiro (que poderia ter se chamado “O Estranhamento”, no sentido brechtiano de “ver as coisas pelo lado de fora”) como a grande obra do gênero, juntamente com Crime e Castigo de Dostoiévski, é pela sua disposição de não comentar nada, não explicar nada, não fazer notas de pé de página direcionando ideologicamente a tragédia que estava narrando. Apenas os fatos nus e crus, contados no tom de voz monocórdio de quem se lembra de absolutamente tudo mas não caiu-a-ficha de absolutamente nada. Assim como a história de Édipo é a tragédia do Destino (tudo estava escrito; é impossível escapar), a de Meursault é a tragédia do Acaso: nada está escrito, tudo está sendo criado a cada momento, e é impossível escapar.


sexta-feira, 2 de maio de 2014

3488) Foi sinistro o negócio (2.5.2014)



Véio, foi sinistro o negócio. Sabe essas noite que o caba sai sem saber pra quê e acaba virando o bagulho mais surreal? Apois eu tava de bobeira na pensão e desci pra comprar cigarro, não foi nem que o cigarro acabou, eu que fiquei assim, sabe aquela nóia que o cigarro vai acabar de madrugada? Aí enfiei a bermuda, calcei uma havaiana e fui lá no bar de Mirim dar um alô na galera e comprar um maço. Fui só rapidinho, eu nem ia beber nem nada, porque oito da manhã tinha uma entrevista de emprego. Saco esse moído de entrevista, mas fazer o quê, a pensão já atrasou de novo e o véio já tava enchendo o saco. Meu irmão, quando em entro lá quem eu vejo, Carminha minha ex, bêba que só a desgraça, batendo boca com um gordo, o caba puxando ela pelo braço, assim feito dono dela. Eu cheguei, ‘meu irmão, qué que tu tá aprontando aí com a guria’, pois ele já tava alterado, num é que o filadaputa virou logo a mão na minha cara?!  Aí não prestou não, me fiz logo numa cadeira e estiquei o condenado no chão com a cabeça aberta, quis arrastar ela pra calçada já pensando em levar pro quarto e comer, quando eu vejo se levanta dois caba que tava com o caba, vem os dois por cima de mim. Aí foi porrada que comeu e mesa virada, a mulherada gritando e derrubando garrafa e copo, um dos caba me pegou mesmo aqui, olha só como tá, eu perdi o fôlego, véio, foi sinistro. Mas Mirim se atravessou pra apartar, segurou o caba, mas o outro veio por trás, meu irmão, caraio, o caba enterrou uma faca em Mirim mesmo por aqui, lado direito de baixo pra cima, e correu. Nessa hora eu num vi mais nada, quebrei uma garrafa e fui atrás do caba. Ele subiu no beco e a gente subiu atrás, nessa já vinha o irmão de Mirim e mais dois, atrás de mim. Meu irmão, aí foi desgraça muita. O caba se escondeu na casa dum povo, e a gente botou porta e janela abaixo, o povo gritando e a gente tacando a mão preles sair da frente, quando a gente chegou na cozinha o canto mais limpo, o caba saiu pelos fundos. A gente botemo atrás!  Mas aí uns amigos do caba apareceram não sei de onde, e começou a rolar tiro. Um deles me agarrou numa esquina, que azar da porra que eu saí sem calçar minha bota, senão eu tinha afundado os dente do cachorro, mas a bala comeu no beco e nós rolando agarrado. Aí chegou polícia, começou aquele foi-não-foi, levaram a gente pra Nona, eu tive que pedir um celular emprestado e ligado pra Dra. Vívia, aquela do motel. Foi sinistro, véio, tive que recolocar a véia em circulação, maior saia justa mas ela foi firmeza, soltou a gente tudo, e pior, saí dali às 7 da manhã, direto pra entrevista do emprego, sou muito mole, véio, adivinha o resultado.


quinta-feira, 1 de maio de 2014

3487) Garcia Márquez (1.5.2014)



(Garcia Márquez, por Charles Burns)

A imprensa do mundo inteiro está dando um balanço na obra literária de Garcia Márquez, falecido recentemente. Não direi que ele era uma unanimidade junto ao público e à crítica; conheço pessoalmente gente que não gosta, que o acha meio “macumba para turistas”, um “folclorizador da miséria, como Jorge Amado” (já ouvi isto). Eu não acho. A leitura de Cem Anos de Solidão aos 20 anos mudou minha compreensão da literatura e da América Latina. Curiosamente, muitos que não gostam de Márquez são fãs de Borges.  Veem Borges como o que todo latino-americano deveria ser: civilizado, lendo latim e alemão, conhecendo a filosofia clássica e pensando de forma apolínea (Borges detestaria essa descrição, aliás injusta; é o modo como ele é visto, não o que ele era). Márquez era um escritor formado em redação de jornal, esquerdista, bigodudo, plebeu total.

Seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel traça duas linhas paralelas de sua visão da América Latina, dando substância ao que veio a se chamar de realismo mágico. Por um lado, há os aspectos bizarros e extraordinários da realidade física e mental do continente, tudo que parece estranho aos que vêm do Hemisfério Norte e determinam o que é normal e o que não é. Por outro lado, há a espantosa desigualdade social do continente, resultado da pororoca inicial e posterior convivência entre a brutalidade do colonizador e a do colonizado (aqui se praticava a escravidão, o canibalismo, os sacrifícios humanos).

Nos seus romances, muitos detalhes atribuídos ao realismo mágico eram meras reconstituições de fatos históricos. Nisso, Márquez dava uma lição que autores tão diferentes como Tim Powers ou Bruce Sterling souberam utilizar bem: pegue da realidade o que ela tiver de mais inacreditável, e deixe sua ficção apenas um ponto abaixo. Qualquer crítico que listar as coisas mais impossíveis do enredo vai quebrar a cara ao ver que eram reais.

Na outra mão desse processo, Márquez fazia relatos jornalísticos, reconstituições de episódios reais, com os artifícios da ficção: Relato de um Náufrago, Notícia de um Sequestro, A Aventura de Miguel Littín clandestino no Chile... Alguns amigos meus (e alguns críticos literários) se queixam de que isso não é jornalismo, porque Márquez mudava detalhes, personagens ou situações para acomodá-los a sua conveniência narrativa. Muito bem, que não seja jornalismo, que seja então ficção inspirada em fatos reais. O que importa é que a volúpia narrativa está toda ali, e eu não sei se Euclides em Os Sertões ou Graciliano em Memórias do Cárcere foram mais fiéis aos fatos do que ao significado dos fatos. Há uma diferença.


terça-feira, 29 de abril de 2014

3486) Zumbis vs Pensadores (30.4.2014)



Nós éramos pálidos, cinéfilos, apolíticos, neuróticos e noturnos; era como se estivéssemos implorando para sermos chamados “os zumbis”. E eles eram sobranceiros, empedernidos, profundos, enciclopédicos e sonhadores, e não é de admirar que a gente o chamasse “os pensadores”.  E, como todo mundo na turma sabe, quem deu esse nome fui eu.

Na verdade, éramos as editorias dos dois jornais de Altavista (PB), o Diário Popular, reduto zumbi, e a Gazeta da Manhã, quilombo dos Pensadores.  O Diário defendia o simbolismo, o livre comércio, a livre iniciativa estética amparada pela asa pública. A Gazeta pugnava por liberdade de associação, imunidades sindicais, o regionalismo, o cooperativismo, e alguns estilos de canção popular.  A cidade tinha um cinema, e a 2a.feira era a Sessão Cult: o ingresso era mais caro e o filme mais problemático. Ambos os jornais tinham que ver o filme e já na terça-feira publicar uma crítica consagradora ou impiedosa.

Claro que éramos amigos-e-inimigos. A cidade era grande, mas os jornais eram na mesma rua, com um botequim no meio do caminho.  Bebíamos juntos, conversávamos, travávamos polêmicas políticas ou por causa dos atributos de alguma atriz estrangeira que nunca ouviu falar em nós e que se nos visse chamaria a polícia e a carrocinha.  Nunca uma frase foi travada entre nós-todos que não fosse uma cuidadosa, sopesada, dissecada, bem avaliada equação capaz de duplos e triplos sentidos e de triplos e quádruplos mortais. 

Um diálogo que ainda hoje, tanto tempo depois, ainda é contado entre risadas foi aquele dia em que bebíamos (quatro, divididos em três e um) Serra Limpa com ribaçã e entrou no bar o restante dos dois grupos, encerrando um expediente intenso, após a sessão do filme, todos doidos pra relaxar.  Houve então, numa mesa, o seguinte diálogo.

A: A melhor cena do filme, todo mundo, OK?  A minha é a da tempestade.  B: Bom, eu fico com aquela cena onde ela recupera a memória, e é tudo na rua, som ambiente, câmara parada, e ela faz só com os olhos.  C: Eu gostei da cena da cama, embora o melhor fosse o som, claro, mas ele achou superfícies refletoras em tudo que tinha no quarto.  D: Eu posso indicar duas?  Não? É, já sei como é, tudo ter que ser de acordo com o Estatuto, com o olho do juiz em cima... Ah, fico com a cena daquele bicho, aquela coisa que eu não sei o nome, matando o passarinho. Me senti mal até.  Muito bem fotografada.  E: A da passagem do tempo, todo um verão.  F: A da perseguição do menino pelo mercado da China, pelas vielas da Índia, pelo sol da Palestina, pelo rumo da caatinga, pelo infinito do sevagram.


3485) "A Desintegração da Morte" (29.4.2014)



Com todo esse moído em relação à Copa do Mundo, acabei me lembrando de um dos romances mais curiosos da ficção científica brasileira: A Desintegração da Morte (1948) de Orígenes Lessa.  Escrito pouco antes da Copa de 50, ele conta que um cientista chamado Klepstein consegue “desintegrar a morte” em seu laboratório (como, ele não explica) e que daí em diante ninguém mais morre, mesmo esfaqueado, fuzilado, reduzido a pasta. Continua sofrendo, e vivo. Há cenas dantescas, como é de esperar. As guerras produzem partes mutiladas que se recusam a morrer.

Lessa adota o estilo de H. G. Wells do romance com múltiplos pontos de vista, em escala planetária. (Veja-se “A estrela” de Wells, no livro O país dos cegos, e “A gargalhada” de Lessa, que incluí na antologia Páginas de Sombra).  São capítulos curtos, compactos, pulando de país em país, de continente em continente, com flashes de personagens que surgem, produzem uma cena extraordinária, e somem para sempre. Cada capítulo é um pequeno mosaico na construção de um grande painel.

E o capítulo XLII começa dizendo: “É quando se realiza em Santiago mais um campeonato sul-americano de futebol.”  (É engraçado que, em 1948, o Sul-americano de seleções, pelas rivalidades regionais, parecia motivar mais do que a Copa do Mundo.) Há um clima de antagonismo entre as seleções, relembrando campanhas bélicas antigas, Humaitá, Tacna, Arica, Monte Caseros. Na véspera do primeiro jogo, atletas de várias seleções fogem da concentração e vão ao mesmo bordel, o “La Quintala”. Um argentino e um brasileiro brigam por causa de uma mulher. No capítulo XLIII, durante o jogo, os dois se estranham. O argentino quebra a perna do brasileiro. E começa ali uma briga que se estende para fora do estádio, e pelos dois países.

O capítulo XLIV começa: “Vinte e quatro horas depois a guerra acabara. Meio Rio de Janeiro não passava de um montão de ruínas. São Paulo era escombros. Buenos Aires, menos protegida pelos acidentes naturais, plana e entregue, estava praticamente destruída. Erro de cálculo, nunca se soube se argentinos ou brasileiros tinham varrido do mapa a pequenina Assunção. Montevidéu sofrera horrivelmente. O fogo lavrava em Porto Alegre, Rosário, Córdoba, Florianópolis. (...) E milhões de seres humanos eram fragmentos dispersos, inidentificáveis, que as turmas de emergência recolhiam em carros, em caixões, em depósitos sanguinolentos.  Naquele macabro recolher de restos humanos palpitava, entretanto, o princípio trágico da vida.” Moral da história: qualquer problema que venhamos a ter com esta Copa do Mundo, sempre vai ficar aquém da imaginação dos escritores de FC.

domingo, 27 de abril de 2014

3484) Motes e glosas (27.4.2014)




A arte de dar motes para que alguém crie uma glosa parece hoje ser exclusiva dos que vivem no meio da poesia popular.  

Pra quem não sabe do que se trata: o mote é um tema que se propõe ao poeta, em geral sob a forma de um ou dois versos que fornecem um assunto a ser desenvolvido até completar uma estrofe de dez versos, que segue um esquema de rimas obrigatório.  

Desse modo, glosar um mote é fazer uma parceria momentânea, em que você me lança um desafio, fornecendo essas linhas (que deverão ser o final do verso, da estrofe) e eu aceitarei o desafio, improvisando na hora outros versos que desenvolvem o assunto até chegar nos versos que recebi.

Isso é a cara do Nordeste? É a cara do Brasil antigo, um Brasil que já houve, e que no Nordeste se manteve vivo, ao contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro. 

No conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899) Machado de Assis mostra estudantes cariocas propondo a um amigo o mote “Podia embrulhar o mundo / a opa do Elisiário” (meu comentário sobre o conto, aqui: http://tinyurl.com/nlqsjep).  

No capítulo XII (“Um episódio de 1814”) de Brás Cubas ele descreve o Dr. Vilaça, “glosador insigne”, num ritual semelhante ao que vejo ainda hoje em qualquer mesa de glosas em Campina ou no Pajeú: 

“Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado.”

E hoje, procurando outra coisa nas Memórias da Cidade do Rio de Janeiro (1955) de Vivaldo Coaracy, encontro este episódio saboroso: 

"Eram as freiras [do convento] da Ajuda carinhosamente benquistas pela população carioca que as tinha em alta estima. Não as impediam a clausura e a sua devoção de serem alegres. Por ocasião de certas festividades religiosas, atiravam elas, pelas janelas, rebuçados, biscoitos e outras guloseimas aos grupos que se formavam em frente ao mosteiro. Nem só doces e balas jogavam. Com frequência atiravam pelas grades do locutório papeluchos em que vinha escrito algum mote, em desafio a ser glosado por qualquer poeta presente. E nunca faltavam vates para, entre aplausos ou apupos, improvisar as glosas sugeridas”.

O Rio já cultivou esses hábitos, que nós da Paraíba consideramos tão sertanejos. Mas a roda do tempo não para. Veio a ordem... veio o progresso... e o sertão virou mar.