quinta-feira, 8 de maio de 2014
3493) Contracapa de WhatsApp (8.5.2014)
(ilustração: Ron Miller)
& no discurso político, a veemência é um mero ensaio para a violência
& o mais democrático do carnaval é o direito de sair à rua sem usar nenhuma fantasia
& o tempo que me resta é curto demais para que eu o desperdice lendo o que não me agrada, não me tumultua, não me ilumina
& um poema é a rachadura na vidraça por onde o sol surpreende com um arco-íris
& não adianta exigir honestidade aos desonestos, é como exigir vegetarianismo aos felinos
& toda letra de bolero se torna possível depois das duas da manhã
& ser fã é considerar a si próprio um mero efeito colateral de algo mais importante
& a política é a arte da esperança obrigatória, da amnésia por conveniência, do regateio infinito
& você sabe que está ficando importante quando todo mundo começa a lhe prestar favores sem você nem pedir
& aquela sensação de pequeno lorde inglês estudando entre atiradores de bumerangue lá num outback da vida
& confiar, mas verificando; desconfiar, mas discretamente
& dá pena pensar em todas as gírias brilhantes que se evaporaram sem chegar ao papel
& basta uma coisa dentro de uma mochila para varrer Manhattan do mapa
& a memória é uma ponte elástica ligando o passado ao futuro
& até hoje nenhum cientista conseguiu provar por a+b que é possível provar alguma coisa por a+b
& a gente se esforça tanto e no fim vira apenas o rei da gafe, o campeão do mico, o especialista em meter os pés pelas mãos
& criança de rico é bonsai, criança de pobre é erva daninha
& toda comida tem algo de veneno
& o sujeito está com o saldo bancário no vermelho e ainda passa uma tarde preocupado com a Conjetura de Riemann sobre os números primos
& inventou um vibrador que diz “quer casar comigo?” e ficou rico
& certos jogos de futebol deixam a alma da gente mais massacrada do que a grama onde aconteceram
& mandar é como obedecer: depois que o cara acostuma aquilo vai por si só
& um apartamento flutuando sobre o abismo até que alguém abre a porta
& ser imortal é estar condenado à prisão perpétua sem chance de fuga
& a única vez que tentei conversar com uma árvore ela me disse: vai correr, aproveita que tem perna!
& há duas maneiras de perder uma mulher: tratá-la como um mero animal, e tratá-la como alguém sem animalidade nenhuma
& o poeta é um voyeur clandestino espiando as frestas dentro de si mesmo
& ainda veremos políticos contratando romancistas para escreverem biografias deles onde tudo deu certo
& depois de uma noite de bebida incessante e escrita furiosa, eu apago a luz e me aconchego aos ácaros
& você paga a vida com a vida, e o que o mundo lhe dá é troco &
quarta-feira, 7 de maio de 2014
3492) O nome do celular (7.5.2014)
Quando aparece uma novidade tecnológica, ela muitas vezes já vem batizada do laboratório (pelos técnicos que a criaram) ou da fábrica (pelos marqueteiros que vão colocá-la ao alcance do público). Mas também acontece do produto sair com um nome e bem depressa a rua batizá-lo de novo. O produto na rua é outra coisa. É como você batizar um filho de Gumercindo e descobrir que no colégio ele virou Gugu.
O
caso do telefone celular é interessante porque nos EUA ele é chamado de “cell
phone” e na Inglaterra de “mobile”, e neste caso, pelo menos, seguimos os EUA.
A gente não diz “Liga amanhã pro meu móvel”, embora a expressão “telefonia
móvel”, para falar da indústria, seja corrente na imprensa e nos documentos
jurídicos.
Um
blog (aqui: http://tinyurl.com/qcroh6c) fez
um levantamento sobre o modo de chamar esse aparelho em vários países. É um
levantamento informal, mas em princípio merece uma olhada. O nome “cellphone” (e
derivados, como “celular”) é predominante nos EUA, Brasil e Filipinas, e
presente na Argentina e Cuba. O termo
“móvel”, nos seus derivados como “mobile”, predomina no Irã, Espanha,
Dinamarca, Reino Unido, Nova Zelândia, Índia, Holanda.
Há
outros termos interessantes, como por
exemplo “portable”, em francês, que se alterna com “mobile”, porque também é
usado para computadores portáteis. A Coréia, a Alemanha, a Indonésia e a China
usam “handphone” (ou “handy”), “telefone de mão”, que é simples e intuitivo. Na Turquia, o também óbvio “pocket phone”,
“telefone de bolso”, que seria o meu preferido numa votação, até porque me
lembra “pocket book”. Israel usa
“Pelefon” que o saite em inglês traduz por “wonder phone”, “fone maravilha”.
terça-feira, 6 de maio de 2014
3491) Policarpo Quixote (6.5.2014)
É quase um lugar comum da crítica dizer que Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) de Lima Barreto é um romance sobre a loucura. A trajetória do protagonista é comparada à loucura mansa de Dom Quixote, que vive num mundo mental diferente da “realidade consensual” das pessoas à sua volta. O Major Quaresma, no entanto, é um cidadão muito mais integrado ao mundo. Trabalha numa repartição; conhece pessoalmente o Presidente da República; compra um sítio; dedica-se à agricultura; alista-se como voluntário no exército durante uma revolta armada... Ou seja: faz o que outros cidadãos também fazem ou gostariam de fazer. Não come merda nem rasga dinheiro, e toda vez que atravessa uma rua chega inteiro do outro lado. Doido, ele não é. Ou pelo menos não é mais do que eu.
E no entanto o major acaba internado num sanatório, tal
como aconteceu com o próprio Lima Barreto. Por que? Porque cismou que o Brasil tinha que ser
diferente. É a megalomania do paranóico, o qual acredita que o mundo inteiro
gira em redor do seu umbigo, que o mundo inteiro espera dele intervenções
grandiosas e decisivas. Quaresma é acometido de surtos de amor fervoroso pela
Pátria, convence-se do grande destino que a espera, e tudo que quer é sacudir o
povo brasileiro pelos ombros, despertá-lo, pô-lo de pé, encaminhá-lo para seu
grande destino. Isto é ser doido? No
Brasil, parece que sim.
Lima Barreto diz: “O primeiro fato surpreendeu, mas
vieram outros e outros, de forma que o que pareceu no começo uma extravagância,
uma pequena mania, se apresentou logo em insânia declarada.” O requerimento que ele faz à Câmara propondo
que o tupi seja adotado como língua oficial do Brasil fica famoso da noite para
o dia. Quaresma, por assim dizer,
torna-se um meme das redes sociais da época. “Publicado em todos os jornais,
com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma pilhéria sobre ele...
Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o major foi apontado na
rua.”
domingo, 4 de maio de 2014
3490) Jovens tradutores (4.5.2014)
Muitos jovens (ou nem tanto) me perguntam às vezes: “Como se faz pra trabalhar como tradutor?” O mais simples é mandar um email para uma editora, dizendo que quer traduzir e as suas áreas de preferência. Eu costumava dizer: “Traduzo do inglês, e tenho bom conhecimento de ficção científica, fantasia, terror e policial”. Minhas primeiras traduções (sob pseudônimo) foram de romances de amor tipo Sabrina ou Bianca, e livrinhos de faroeste. Pegue. É treinamento, é um aprendizado sobre você mesmo. Não ligue se o livro é bom. Faça o melhor possível. Se você é incapaz de traduzir um livro ruim, nunca vai traduzir um livro bom.
Às vezes eu juntava à carta um pequeno texto (1 ou 2
páginas) com um exemplo de tradução feita por mim. Escolhia um conto curto ou trecho de livro, mandava
o original e minha tradução para eles terem uma idéia. Isso não elimina uma fase indispensável: a
editora lhe manda um texto (em geral um capítulo de um livro) e lhe dá um
prazo, digamos uma semana.
É o teste. Todo mundo passa por isso, se nunca traduziu
profissionalmente, mesmo que tenha todos os diplomas de Cultura Inglesa ou
Aliança Francesa. Saber uma língua não implica saber traduzir. Saber traduzir é
saber escrever. Ser tradutor é ser escritor. Se você não se acha capaz de escrever
um livro saído de sua própria cabeça, seja literatura ou não-ficção (um livro
técnico sobre sua profissão, por exemplo), como diabo vai ser capaz de escrever
em português um livro de outro cara, escrito noutra língua?
Se você pode dar tempo integral a isso, ótimo. Se não,
reserve algumas horas por dia só para traduzir. Não importa se num dia você fez
dez páginas e no outro só fez uma. O importante é avançar. E não ficar muito
tempo “longe do livro”. Às vezes a gente fica duas, três semanas sem pegar na
tradução, pensando em fazer um “esforço concentrado” no final; isso pode dar
certo, ou não. Escolha o método que produza melhores resultados.
sábado, 3 de maio de 2014
3489) Policial existencialista (3.5.2014)
Albert Camus afirmou que, ao escrever o clássico O Estrangeiro (1942) estava tentando escrever um daqueles romances de crime-norte-americanos que gostava de ler, e que ficaram conhecidos como “roman noir” (batizando depois o gênero cinematográfico do “film noir”), devido a uma famosa coleção francesa de capas pretas. Para alguns puristas pode parecer uma heresia a noção de que o Filósofo do Absurdo estava querendo imitar autores como Dashiell Hammett, mas o Romance Policial Existencialista, gênero que acabo de batizar neste momento histórico, tem raiz nesse curioso movimento de trocas culturais entre EUA e França.
O movimento se dá mais ou menos assim: a cultura popular
dos EUA produz alguma coisa que faz relativo sucesso em seu país mas é esnobada
pelos intelectuais. Algum tempo depois, intelectuais franceses descobrem
aquilo, maravilham-se, e começam a imitá-lo ou dedicar-lhe exegeses. Com esse
súbito acesso de respeitabilidade, geralmente a obra original passa a ser vista
com mais atenção no país de origem. Cineastas como Samuel Fuller e Jerry Lewis
são muito mais respeitados na França do que em sua terra. Edgar Allan Poe
talvez tivesse sumido no submundo da literatura de gênero se não fosse
Baudelaire. E o romance de crime ganhou esse verniz existencialista graças a
praticantes como o próprio Camus, Alain Robbe-Grillet etc.
O romance policial, além do lado de enigma e mistério,
tem um lado “social”, de mostrar o que existe por baixo do tapete da
civilização. E pode ser também a grande
literatura trágica do nosso tempo, porque nada melhor do que o crime para
exprimir a tragédia humana. A tragédia
da civilização fora-dos-eixos, da vida que não deu certo, dos destinos
individuais presos na teia dos acasos, fatalidades e outros ingredientes da
tragédia grega. Alguns tentam fazer isso recheando seus enredos com reflexões
filosóficas.
sexta-feira, 2 de maio de 2014
3488) Foi sinistro o negócio (2.5.2014)
Véio, foi sinistro o negócio. Sabe essas noite que o caba sai sem saber pra quê e acaba virando o bagulho mais surreal? Apois eu tava de bobeira na pensão e desci pra comprar cigarro, não foi nem que o cigarro acabou, eu que fiquei assim, sabe aquela nóia que o cigarro vai acabar de madrugada? Aí enfiei a bermuda, calcei uma havaiana e fui lá no bar de Mirim dar um alô na galera e comprar um maço. Fui só rapidinho, eu nem ia beber nem nada, porque oito da manhã tinha uma entrevista de emprego. Saco esse moído de entrevista, mas fazer o quê, a pensão já atrasou de novo e o véio já tava enchendo o saco. Meu irmão, quando em entro lá quem eu vejo, Carminha minha ex, bêba que só a desgraça, batendo boca com um gordo, o caba puxando ela pelo braço, assim feito dono dela. Eu cheguei, ‘meu irmão, qué que tu tá aprontando aí com a guria’, pois ele já tava alterado, num é que o filadaputa virou logo a mão na minha cara?! Aí não prestou não, me fiz logo numa cadeira e estiquei o condenado no chão com a cabeça aberta, quis arrastar ela pra calçada já pensando em levar pro quarto e comer, quando eu vejo se levanta dois caba que tava com o caba, vem os dois por cima de mim. Aí foi porrada que comeu e mesa virada, a mulherada gritando e derrubando garrafa e copo, um dos caba me pegou mesmo aqui, olha só como tá, eu perdi o fôlego, véio, foi sinistro. Mas Mirim se atravessou pra apartar, segurou o caba, mas o outro veio por trás, meu irmão, caraio, o caba enterrou uma faca em Mirim mesmo por aqui, lado direito de baixo pra cima, e correu. Nessa hora eu num vi mais nada, quebrei uma garrafa e fui atrás do caba. Ele subiu no beco e a gente subiu atrás, nessa já vinha o irmão de Mirim e mais dois, atrás de mim. Meu irmão, aí foi desgraça muita. O caba se escondeu na casa dum povo, e a gente botou porta e janela abaixo, o povo gritando e a gente tacando a mão preles sair da frente, quando a gente chegou na cozinha o canto mais limpo, o caba saiu pelos fundos. A gente botemo atrás! Mas aí uns amigos do caba apareceram não sei de onde, e começou a rolar tiro. Um deles me agarrou numa esquina, que azar da porra que eu saí sem calçar minha bota, senão eu tinha afundado os dente do cachorro, mas a bala comeu no beco e nós rolando agarrado. Aí chegou polícia, começou aquele foi-não-foi, levaram a gente pra Nona, eu tive que pedir um celular emprestado e ligado pra Dra. Vívia, aquela do motel. Foi sinistro, véio, tive que recolocar a véia em circulação, maior saia justa mas ela foi firmeza, soltou a gente tudo, e pior, saí dali às 7 da manhã, direto pra entrevista do emprego, sou muito mole, véio, adivinha o resultado.
quinta-feira, 1 de maio de 2014
3487) Garcia Márquez (1.5.2014)
(Garcia Márquez, por Charles Burns)
A imprensa do mundo inteiro está dando um balanço na
obra literária de Garcia Márquez, falecido recentemente. Não direi que ele era
uma unanimidade junto ao público e à crítica; conheço pessoalmente gente que
não gosta, que o acha meio “macumba para turistas”, um “folclorizador da
miséria, como Jorge Amado” (já ouvi isto). Eu não acho. A leitura de Cem Anos
de Solidão aos 20 anos mudou minha compreensão da literatura e da América
Latina. Curiosamente, muitos que não gostam de Márquez são fãs de Borges. Veem Borges como o que todo latino-americano
deveria ser: civilizado, lendo latim e alemão, conhecendo a filosofia clássica
e pensando de forma apolínea (Borges detestaria essa descrição, aliás injusta;
é o modo como ele é visto, não o que ele era). Márquez era um escritor formado
em redação de jornal, esquerdista, bigodudo, plebeu total.
Seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel traça
duas linhas paralelas de sua visão da América Latina, dando substância ao que
veio a se chamar de realismo mágico. Por um lado, há os aspectos bizarros e
extraordinários da realidade física e mental do continente, tudo que parece
estranho aos que vêm do Hemisfério Norte e determinam o que é normal e o que
não é. Por outro lado, há a espantosa desigualdade social do continente,
resultado da pororoca inicial e posterior convivência entre a brutalidade do
colonizador e a do colonizado (aqui se praticava a escravidão, o canibalismo,
os sacrifícios humanos).
Nos seus romances, muitos detalhes atribuídos ao
realismo mágico eram meras reconstituições de fatos históricos. Nisso, Márquez
dava uma lição que autores tão diferentes como Tim Powers ou Bruce Sterling
souberam utilizar bem: pegue da realidade o que ela tiver de mais
inacreditável, e deixe sua ficção apenas um ponto abaixo. Qualquer crítico que
listar as coisas mais impossíveis do enredo vai quebrar a cara ao ver que eram
reais.
terça-feira, 29 de abril de 2014
3486) Zumbis vs Pensadores (30.4.2014)
Nós éramos pálidos, cinéfilos, apolíticos, neuróticos e
noturnos; era como se estivéssemos implorando para sermos chamados “os zumbis”.
E eles eram sobranceiros, empedernidos, profundos, enciclopédicos e sonhadores,
e não é de admirar que a gente o chamasse “os pensadores”. E, como todo mundo na turma sabe, quem deu
esse nome fui eu.
Na verdade, éramos as editorias dos dois jornais de
Altavista (PB), o Diário Popular, reduto zumbi, e a Gazeta da Manhã,
quilombo dos Pensadores. O Diário defendia o simbolismo, o livre comércio, a livre iniciativa estética amparada
pela asa pública. A Gazeta pugnava por liberdade de associação, imunidades
sindicais, o regionalismo, o cooperativismo, e alguns estilos de canção popular. A cidade tinha um cinema, e a 2a.feira
era a Sessão Cult: o ingresso era mais caro e o filme mais problemático. Ambos
os jornais tinham que ver o filme e já na terça-feira publicar uma crítica
consagradora ou impiedosa.
Claro que éramos amigos-e-inimigos. A cidade era grande, mas
os jornais eram na mesma rua, com um botequim no meio do caminho. Bebíamos juntos, conversávamos, travávamos
polêmicas políticas ou por causa dos atributos de alguma atriz estrangeira que
nunca ouviu falar em nós e que se nos visse chamaria a polícia e a
carrocinha. Nunca uma frase foi travada
entre nós-todos que não fosse uma cuidadosa, sopesada, dissecada, bem avaliada
equação capaz de duplos e triplos sentidos e de triplos e quádruplos
mortais.
Um diálogo que ainda hoje, tanto tempo depois, ainda é
contado entre risadas foi aquele dia em que bebíamos (quatro, divididos em três
e um) Serra Limpa com ribaçã e entrou no bar o restante dos dois grupos,
encerrando um expediente intenso, após a sessão do filme, todos doidos pra
relaxar. Houve então, numa mesa, o
seguinte diálogo.
3485) "A Desintegração da Morte" (29.4.2014)
Com todo esse moído em relação à Copa do Mundo,
acabei me lembrando de um dos romances mais curiosos da ficção científica
brasileira: A Desintegração da Morte (1948) de Orígenes Lessa. Escrito pouco antes da Copa de 50, ele conta
que um cientista chamado Klepstein consegue “desintegrar a morte” em seu
laboratório (como, ele não explica) e que daí em diante ninguém mais morre,
mesmo esfaqueado, fuzilado, reduzido a pasta. Continua sofrendo, e vivo. Há
cenas dantescas, como é de esperar. As guerras produzem partes mutiladas que se
recusam a morrer.
Lessa adota o estilo de H. G. Wells do romance com
múltiplos pontos de vista, em escala planetária. (Veja-se “A estrela” de Wells,
no livro O país dos cegos, e “A gargalhada” de Lessa, que incluí na antologia
Páginas de Sombra). São capítulos
curtos, compactos, pulando de país em país, de continente em continente, com
flashes de personagens que surgem, produzem uma cena extraordinária, e somem
para sempre. Cada capítulo é um pequeno mosaico na construção de um grande
painel.
E o capítulo XLII começa dizendo: “É quando se
realiza em Santiago mais um campeonato sul-americano de futebol.” (É engraçado que, em 1948, o Sul-americano de
seleções, pelas rivalidades regionais, parecia motivar mais do que a Copa do
Mundo.) Há um clima de antagonismo entre as seleções, relembrando campanhas
bélicas antigas, Humaitá, Tacna, Arica, Monte Caseros. Na véspera do primeiro
jogo, atletas de várias seleções fogem da concentração e vão ao mesmo bordel, o
“La Quintala”. Um argentino e um brasileiro brigam por causa de uma mulher. No
capítulo XLIII, durante o jogo, os dois se estranham. O argentino quebra a
perna do brasileiro. E começa ali uma briga que se estende para fora do estádio,
e pelos dois países.
domingo, 27 de abril de 2014
3484) Motes e glosas (27.4.2014)
Pra quem não sabe do que se trata: o mote é um tema que se propõe ao poeta, em geral sob a forma de um ou dois versos que fornecem um assunto a ser desenvolvido até completar uma estrofe de dez versos, que segue um esquema de rimas obrigatório.
Desse modo, glosar um mote é fazer uma parceria momentânea, em que você me lança um desafio, fornecendo essas linhas (que deverão ser o final do verso, da estrofe) e eu aceitarei o desafio, improvisando na hora outros versos que desenvolvem o assunto até chegar nos versos que recebi.
Isso é a cara do Nordeste? É a cara do Brasil
antigo, um Brasil que já houve, e que no Nordeste se manteve vivo, ao
contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro.
No conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899) Machado de Assis mostra estudantes cariocas propondo a um amigo o mote “Podia embrulhar o mundo / a opa do Elisiário” (meu comentário sobre o conto, aqui: http://tinyurl.com/nlqsjep).
No conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899) Machado de Assis mostra estudantes cariocas propondo a um amigo o mote “Podia embrulhar o mundo / a opa do Elisiário” (meu comentário sobre o conto, aqui: http://tinyurl.com/nlqsjep).
No capítulo XII (“Um episódio de 1814”) de Brás Cubas ele descreve o Dr. Vilaça, “glosador insigne”, num ritual
semelhante ao que vejo ainda hoje em qualquer mesa de glosas em Campina ou no
Pajeú:
“Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado.”
“Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado.”
E hoje, procurando outra coisa nas Memórias da
Cidade do Rio de Janeiro (1955) de Vivaldo Coaracy, encontro este episódio
saboroso:
"Eram as freiras [do convento] da Ajuda carinhosamente benquistas pela população carioca que as tinha em alta estima. Não as impediam a clausura e a sua devoção de serem alegres. Por ocasião de certas festividades religiosas, atiravam elas, pelas janelas, rebuçados, biscoitos e outras guloseimas aos grupos que se formavam em frente ao mosteiro. Nem só doces e balas jogavam. Com frequência atiravam pelas grades do locutório papeluchos em que vinha escrito algum mote, em desafio a ser glosado por qualquer poeta presente. E nunca faltavam vates para, entre aplausos ou apupos, improvisar as glosas sugeridas”.
"Eram as freiras [do convento] da Ajuda carinhosamente benquistas pela população carioca que as tinha em alta estima. Não as impediam a clausura e a sua devoção de serem alegres. Por ocasião de certas festividades religiosas, atiravam elas, pelas janelas, rebuçados, biscoitos e outras guloseimas aos grupos que se formavam em frente ao mosteiro. Nem só doces e balas jogavam. Com frequência atiravam pelas grades do locutório papeluchos em que vinha escrito algum mote, em desafio a ser glosado por qualquer poeta presente. E nunca faltavam vates para, entre aplausos ou apupos, improvisar as glosas sugeridas”.
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