sábado, 5 de abril de 2014

3465) O tamanho do livro (5.4.2014)



No dia 1º. de abril, entre outras brincadeiras na imprensa, disseram que um grupo de editoras portuguesas, incluindo o grupo LeYa, tinha estabelecido o número máximo de 200 páginas para qualquer livro apresentado por seus autores. A brincadeira tinha uma certa aparência de verdade. Logo ergueu-se o clamor nas redes sociais. “Ditadura!”, bradaram alguns. “Pressão corporativa sobre a criatividade individual!”, disseram outros. E por aí foi.

Pois olhe... fazendo as devidas ressalvas, principalmente a questão da obrigatoriedade (sou contra obrigatoriedades e proibições) eu acho que não seria uma má idéia.  Dificilmente vejo um livro de 400 páginas que não pudesse, com proveito, ser reduzido para 200.  Quando se trata de livro de estreante, então...  Escrever é fácil, ao contrário do que muita gente pensa. A maioria das pessoas não tem facilidade para escrever, mas as que de fato a têm costumam abusar dela. Escrever, pra certos tipos de temperamento, é fácil. Difícil é reler, revisar, cortar excessos.  A maioria dos livros de autores estreantes não peca por dizer pouco, peca por dizer alongadamente, repetidamente, redundantemente, o que poderia ter sido dito de maneira mais compacta e proveitosa (e mais literariamente eficaz) em metade daquela extensão.

O autor estreante parece um pouco com aquelas pessoas que narram qualquer fato com verdadeiras orgias de detalhes. Nossa amiga chega meia hora atrasada para o chope com a turma. O que aconteceu? “Precisei dar uma carona a minha prima e fiquei presa num engarrafamento, pois houve uma batida na esquina do prédio onde ela mora.”  Pronto – já está tudo explicado em duas linhas. Mas tem gente que narra assim: “Olha, eu vinha direto pra cá, mas aí minha prima me pediu uma carona, sabe aquela minha prima, Mércia, uma baixinha que trabalha no Banco? Ela tinha ido lá em casa falar com minha mãe sobre umas poltronas que ela herdou e que mamãe pediu para comprar, então ela foi lá em casa hoje e acabou ficando pra jantar, até porque ela mora sozinha e adora a sopa que mamãe faz. Mas quando eu peguei na chave do carro pra sair ela me disse: Ah, você está indo onde? E eu falei: Tou indo ali no boteco, encontrar uma turma de amigos. E ela: Dava pra você me dar uma carona até em casa? E eu: Tudo bem. Aí ela e mamãe foram terminar os cálculos de quanto custariam as poltronas, porque é um modelo antigo que é difícil de encontrar...”

Sosseguem; fico por aqui. Notem que as duas ainda nem entraram no carro, mas um parágrafo substancial de texto já foi consumido com uma explicação totalmente desnecessária. Tem gente que é assim.  Livros de 400 páginas são escritos assim.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

3464) Chandler e a gíria (4.4.2014)



Gíria é linguagem espontânea, palavras e formas de dizer inventadas por gente de verdade, e não pelo dicionário.  Muita gente pensa que as palavras são inventadas por uma equipe de velhinhos de barba branca e sobrecasaca preta, e que usar palavras que não estão no dicionário é como passar dinheiro falso.  Não é.  As palavras novas são inventadas geralmente por pessoas que nunca abriram um dicionário, mas que têm uma certa agilidade verbal, percepção intuitiva de como o idioma se comporta, e na hora do aperto são capazes de dar nomes a bois nunca dantes batizados.

Existe uma nuance técnica de diferença entre palavra inventada e gíria; não sei explicar, se alguém puder explicar para mim eu agradeço. Imagino que a gíria seja uma palavra inventada por uma pessoa mas que pega, se alastra, passa a ser usada por dezenas, centenas, milhares de pessoas. Vira um “fato social”. Uma das características da gíria é ser um tipo de linguagem que surge fortemente localizada no tempo e no espaço. Algumas gírias vigoram numa cidade durante anos sem serem absorvidas, sequer conhecidas, nas cidades vizinhas. Algumas formas de falar tidas como nordestinas são (aos meus olhos) meramente do Ceará, ou do Rio Grande do Norte. Nunca as vi usadas na Paraíba.

Alguns escritores são grandes recolhedores de gírias, desde João Antonio e Plínio Marcos até outros mais recentes como Ferrez. Mergulham numa comunidade que pode ser geográfica (um bairro) ou social (o universo dos cafetões, ou dos jogadores de sinuca, etc.) e registram suas formas de falar. Surge daí uma questão interessante: o uso dessas gírias numa obra literária pode ou não lhes dar uma certa permanência que talvez não tivessem sem isso. (As gírias morrem com a mesma facilidade com que nascem.)

Raymond Chandler, que conhecia bem as gírias dos policiais e bandidos que descrevia em seus romances, tem uma opinião interessante a respeito. Dizia ele, em 1949: “O uso literário da gíria constitui um estudo à parte. Descobri que existem apenas dois tipos que se salvam: termos de gíria que já estão incorporados à linguagem, e termos que o próprio escritor inventa. Tudo o mais corre o risco de estar ultrapassado antes mesmo do livro ir para a gráfica”.

Esta é uma questão importante para escritores e tradutores. Livros de vinte anos atrás nos provocam um choque de desconforto quando usam gírias que tiveram uma voga intensa e breve e depois foram descartadas. São como roupas, como penteados, como outras coisas sujeitas ao terrível conceito de “moda”. O que têm de exuberantes, atraentes e inovadoras hoje, têm de ridículas e ultrapassadas amanhã.


quinta-feira, 3 de abril de 2014

3463) Outra entrevista (3.4.2014)




PERGUNTA) Oi Braulio, é um prazer estar neste chat em tempo real. Como foi que você descobriu o cordel? Aarão. 
RESPOSTA) Fala Aarão, tu deve ter um trauma de levar falta na hora da chamada, hem? Bem, eu via aquela fila de folhetos suspensos horizontalmente no ar e alguma coisa me dizia: tem mutrêta! tem mutrêta!  Aí descobri o cordel. 

PERGUNTA) Oi BT, valeu estar aqui, sou seu fã. Por que você enche tanto a bola desse tal de Borges? Hnbem14.  
RESPOSTA) Olha, Hnbem14, eu acho que Borges é um dos maiores xilogravadores que o Nordeste já teve, e que ainda tem, porque se você cruzar a cidade de Bezerros rumo ao sertão vai ver do lado esquerdo da rodovia o ateliê dele; dê uma parada e olhe, que é uma beleza.

PERGUNTA) Senhor Braulio, por que motivo o paraibano é tão discriminado no Sul Maravilha? dezessete700.  
RESPOSTA) Olha, 17, se você aceitar se diminuir por causa de um rótulo qualquer você nunca vai ser maior do que esse rótulo. Minha ordem do dia é mostrar ao mundo que os paraibanos são mais produtivos, mais inteligentes, mais criativos e mais gente boa do que todos os outros povos; claro que não vou conseguir nunca, mas o que conta é o resíduo.  

PERGUNTA) Como é possível que você goste do cinema de um verme catatônico chamado Jean-Luc Godard? ladyL.  
RESPOSTA) Minha querida ladyL, caso seja isso mesmo: o cinema de Godard é um extremo, é para ser usado só em casos extremos, como a primeira e a última tecla do piano; é um marco miliário, é um parâmetro, é um farol; se você ultrapassar aquele ponto, saiba que já não é mais o teclado, não é mais o cinema.

PERGUNTA) Oi Trupizupe, beleza, quanta coisa meu velho, sensacional ver isso, a Internet, o mundo, a juventude, cacete, tudo bom demais, e você aqui, arrasando. Valeu! Aqualung71. 
RESPOSTA) Eita, tás aqui também?  Beleza digo eu, você não sabe metade do montante. Grande abraço e te cuida.  

PERGUNTA) Meu caro Braulio, pode-se servir a dois senhores, o rock-and-roll e o cordel? Unhadegato. 
RESPOSTA) O artista serve apenas a uma senhora, a Poesia; e esse grupos a servem também, cada qual em seu templo, que um do outro não distam mais que alguns passos. 

PERGUNTA) Boa noite. O senhor acha que o senhor representa bem a Paraíba, longe da Paraíba? Brejeira10. 
RESPOSTA) Olhe, Brejeira10, eu acho que represento bem todo mundo, qualquer que seja o filtro de escolha: os paraibanos, os poetas, os nascidos em ano terminado com zero, os branquelos destros, os virginianos, os tigres chineses, o escambau. Minha obrigação moral é não envergonhar nenhum desses grupos, sempre levando em conta que uns são bem cheios de si, e outros nem percebem que existem.




quarta-feira, 2 de abril de 2014

3462) "Pacto de Sangue" (2.4.2014)



Para alguns historiadores do cinema, este é o filme que começou (ou pelo menos cristalizou numa forma nítida, pois antecessores havia muitos) o filme policial “noir”, que (como tantas outras coisas da cultura pop) os norte-americanos inventaram e os franceses descobriram. Double Indemnity (1944), baseado num excelente romance de James M. Cain, foi dirigido por Billy Wilder, e roteirizado por Wilder e Raymond Chandler. Foi um período em que o chamado Código Hays imperava em Hollywood, passando um pente-fino moralista nos roteiros e nos filmes prontos. Contando uma história sórdida de adultério, traição, ganância e assassinato, o filme conseguiu driblar a censura e mostrar um lado da América que a América, em plena guerra, saturada de propaganda democrática e triunfalista, não fazia questão de revelar.

Este filme talvez seja a mais bem sucedida das contribuições de Chandler para o cinema (ele viria a negar com veemência que tivesse restado algo seu em, por exemplo, Pacto Sinistro de Hitchcock, embora seu nome apareça nos créditos).  O filme tem pequenos detalhes seus, como por exemplo a tornozeleira (“anklet”) de ouro usada pela personagem de Barbara Stanwyck; um detalhe presente no romance A Dama do Lago e ausente no livro em que o filme se baseou. Pacto de Sangue tem também a única imagem preservada de Chandler: ele faz uma aparição hitchcockiana numa cena em que o protagonista, interpretado por Fred MacMurray, caminha por um corredor.

No mais, o filme é uma antologia de efeitos fotográficos magistrais: contrastes de claro/escuro, composições em linhas paralelas, superposição de tons de cinza, ângulos expressivos, presença subliminar de sombras e de reflexos. O “noir” norte-americano deve muito ao expressionismo alemão que fez parte da formação do diretor Wilder, um estilo que ele retomaria depois em Crepúsculo dos Deuses e outros filmes. O mundo desses filmes é uma espécie de caverna repleta de reflexos, imagens duplas ou distorcidas, linhas que se entrecruzam como flechas num campo de batalha, corpos aparentemente sólidos que se desfazem ao saírem do cone de luz de uma lâmpada...  O filme noir é um filme realista na superfície (nada acontece ali de fantástico, nada de impossível pelas leis naturais) mas é um realismo totalmente subjetivo, soma do mundo exterior iluminado e nítido e do mundo mental dos personagens, que nele se projeta sobre a forma de “clima”; daí ser uma forma especial de expressionismo. Realistas são as cenas de escritório de Fred MacMurray com os colegas; expressionistas as cenas dele com a mulher fatal que o arrasta para o crime e a morte.




segunda-feira, 31 de março de 2014

3461) A palavra websaite (1.4.2014)



Na escola somos tantas vezes punidos por erros de ortografia que, das duas uma: ou o sujeito manda tudo pro inferno e continua a escrever “concerteza”, ou vira um Inquisidor espanhol, de fogueira em punho, pronto para imolar o primeiro que der uma escorregada.  Eu, por mim, acho que o pior erro de escrita é o que muda o sentido do que se estava querendo dizer, o que prejudica a comunicação. Não sendo assim, é um pecado menor, como mau hálito ou maus modos à mesa. Feio pra danado, mas fácil de corrigir.

Leitores vêm às vezes me corrigir o modo como escrevo certas palavras.  As mais notórias são “saite” e “websaite”.  Sempre tem um bom samaritano para me explicar que são termos em inglês, e que se escrevem “site, website”.  Beleza.  Acontece que uma das dinâmicas apropriativas da língua portuguesa é justamente esquecer como as palavras são escritas na língua de origem, e escrever o modo como nós as pronunciamos aqui. Funcionou assim com futebol, abajur, mídia (cujos originais são “foot-ball”, “abat-jour”, “media”) e mil outros.  Bato de novo numa das minhas teclas preferidas: a linguagem é primeiro falada e escutada, só depois é escrita e lida. Nosso caminho intuitivo para formação de palavras é o som, não as letras com que aludimos a ele.

A grafia inglesa “site” nos sugere instintivamente a pronúncia “síte”. Já com “saite” não tem dúvida nenhuma. Já se cogitou (e ainda se pratica) a substituição por “sítio” (“vi isso num sítio na Internet”), mas aos meus ouvidos isso não encaixa 100%. Sítio me parece uma palavra muito contaminada por outros usos. Saite é uma palavra nova para um conceito novo.

Já me brandiram triunfantes um argumento: “Então, por que escrever websaite, e não uebsaite?”.  Explico.  Esse dáblio inicial não tem perigo de ser confundido com o som de “vê”, até pela quantidade de Williams, Washingtons, etc. à nossa volta.  Nunca vi nenhum novato dizer “vebsaite”. Conserva-se a pronúncia, e neste caso conserva-se a grafia. Uma solução salomônica, que nos ajuda a identificar com presteza todo esse campo temático (“webmaster, web design”, etc.) através da letra escrita, sem prejuízo do som pronunciado.

Não espero que a língua portuguesa vá consagrar essa grafia só em atenção a minha modesta pessoa. Mas a língua é assim. As novas formas são propostas por qualquer um, como eu e você. Nunca saberemos a mecânica que faz umas dessas formas “pegarem” e outras não. (Corrigindo: não temos, por enquanto, meios confiáveis de averiguar por que motivo umas pegam e outras não.)  Cabe a cada um que propõe uma forma saber pelo menos explicar por que a está propondo. O resto é com o tempo e o vento.


domingo, 30 de março de 2014

3460) Escolhendo títulos (30.3.2014)



Ainda sobre a questão do título de um livro (ou de uma obra de outra natureza, mas que comporte um título): sua escolha deveria ser objeto das mesmas discussões madrugada adentro que os casais geralmente fazem para escolher o nome de um bebê.  Com um fator de dificultação a mais, porque o nome do bebê basta ser interessante e agradável, não tem a obrigação de condensar a essência do bebê (que nem existência tem ainda, coitado, quanto mais isso), ao passo que título de livro precisa ser tão elucidativo quanto um nome próprio, tão personalizado quanto uma impressão digital e tão expressivo quanto um rosto.

No blog de Marcelino Freire “Ossos do Ofídio” (http://bit.ly/N2DOm8) li uma divertida discussão de Clarice Lispector com dois colegas. Ela queria intitular um livro seu A veia no pulso. Fernando Sabino foi contra, porque achou que o título sugeria Aveia no pulso. João Cabral disse que o título era ótimo, que não se tratava de um cacófato, e que as veias e o pulso são coisas que a mente associa uma à outra sem muito esforço, de modo que só um idiota entenderia errado. Aliás, o livro acabou se chamando A Maçã no Escuro – muito melhor, pelo meu gosto.

O jovem romancista perseguia o escritor veterano e enchia-lhe o saco pedindo sugestão de título para um romance. Um dia o cara se encheu e disse: Me diga uma coisa. Aparece algum tambor no seu livro? O rapaz: Não, não aparece.  Ele: Bom. Tem alguma corneta? O rapaz: Claro que não!  Ele:  Então está aí seu título: Sem Tambor nem Corneta!

Esse tipo de definição por exclusão lembra o conselho de Mark Twain de que sempre que se fosse criar uma biblioteca a primeira coisa a fazer seria não comprar os livros de Jane Austen. “Mesmo que nenhuma outra obra venha a ser comprada,” dizia Twain, “só pelo fato de não ter nenhum livro dessa senhora já será uma excelente biblioteca”.

Que ave misteriosa e insondável, a Coruja da Desinspiração, habitava o campanário mental de Machado de Assis, quando ele, a certa altura, anunciou que seu próximo romance seria intitulado Último?  (Não foi: é o atual Esaú e Jacó).  Ver que mesmo um indivíduo capaz de alguns títulos primorosos, como é o caso de Machado, considera usar um título tão torto e instável como Último, mostra que nenhuma fórmula esgota as possibilidades da resposta lá fora, de centenas, de milhares de pessoas diferentes. Você está acostumado a ler Os Pardaillans, ou Anos de Tormenta ou A Mansão Misteriosa, aí de repente ergue um livro no balcão da livraria e lê: Um Pouco Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo, você se pergunta que palavrão é aquele. Aí compra – porque o título inquietou. 


sexta-feira, 28 de março de 2014

3459) É o jeito (29.3.2014)




Sim, o jeito é manter a cabeça fria, o olho focado, a mão pronta, os pés afastados, os nervos zumbindo acesos como um cabo de alta tensão de Itaipu.  

Cruzar correndo a superfície do lago, confiando na tensão superficial daquela água pouco sujeita a ondas. 

Saltar na hora do atropelamento para sair do chão no primeiro impacto e cair depois no vácuo do carro, que já seguiu seu caminho.  

Driblar uma bala perdida não é mais difícil do que fintar um miúra abufelado.  Não tem perigo que a gente não consiga eludir, não tem catástrofe que não se possa atenuar, não tem beco sem saída onde não haja uma janela baixa que alguém deixou só encostada, não tem estava-escrito que a gente não possa pedir vistas no processo e reabrir um questionamento.

É o jeito. 

Seguir em frente como a água do rio, escorrendo por onde der passagem, ou como a ave de arribação que não tem a mínima idéia de como está se orientando mas sabe que um dia chega.  

Claro que a batalha é ferrenha e muitos tombam pelo meio do caminho, e é bem provável que eu tombe também, só que não vou tombar aqui, vou tombar, se for o caso, lá depois daquela volta da estrada, depois daquela montanha bem azulzinha, mas aqui, não.  

O jeito é teimar, o jeito é continuar respirando, antes de tudo o mais, e o fato de que hoje respirei em paz o dia todo resolveu estes 95% dos meus problemas, então que venha o restante.

O jeito é tentar não dar murro em ponta de faca, não abrir janelas na parede a golpes de cabeça, não pular do prédio sem reparar se a providencial carroça-de-feno está estrategicamente colocada no ponto exato.  

Também é preciso saber tergiversar, sofismar, botar panos quentes, tapar o sol com uma peneira, ficar acordado a noite inteira, fazer redemunho de carrossel. Jeito pra tudo tem, a vida é uma bolinha que vem e você tem só que ficar rebatendo, a vida toda ela vindo e você rebatendo, porque quando erra só erra uma vez.

Jeito. Quando você menos espera, em pleno começo do Dilúvio, você se lembra que tinha feito uma arca trinta anos atrás, só pra se divertir durante uma tarde!..  

Você cai do arame rumo ao chão sem rede mas alguém rebobina e você sobe às avessas: era um filme, e você não existe. 

Mesmo na jaula dos leões ou no porão dos abutres haverá alguma porta secreta ou gaveta com fundo falso, e você escapa para um universo mais negociável. 

Ninguém pode garantir que o jeito significará necessariamente a salvação, mas o fato é que pra tudo tem jeito.  Sempre tem a terceira face da moeda, a serrilhada. Tem o rio reto, tem o pulo do gato e o salto do cavalo, tem o sexto lado do pentágono e a nobre arte de avançar mais uma casa no tabuleiro.


3458) 1984 de Orwell (28.3.2014)




Reli agora este livro que eu tinha lido apenas uma vez, em 1971, e fiquei pasmo: era exatamente o mesmo livro que eu lembrava.  Claro que durante esse período o cinema (Michael Radford) e o rock (Rick Wakeman) reavivaram a memória, mas não é qualquer livro que grava as coisas assim na memória da gente, como cinzel no metal. 

Nineteen Eighty-Four (o título original é por extenso) já foi apontado como o livro mais depressivo, ou mais pessimista, de toda a literatura, e até como “o livro que matou George Orwell”, pois o autor, trabalhando em condições difíceis, viu sua tuberculose piorar ao longo de 1948, quando concluiu o livro, publicado em junho de 1949.  Ele morreu em janeiro de 1950.

Para muita gente a obra de Orwell foi profética ao criar conceitos como o do Big Brother, que deixou de ser simplesmente a pessoa do ditador paternal, tipo Stálin ou Getúlio, e tornou-se sinônimo da sociedade supervigiada, com uma câmara-tela espiã em cada aposento. (Não literalmente – mas hoje sabemos que qualquer atividade eletrônica nossa é tão sujeita a espia quanto o diário manuscrito que Winston Smith escondia em seu apartamento, na esperança de que ninguém o revistasse.)  

O reality show que adotou esse nome acabou dando-lhe uma curiosa e atual conotação.  O Big Brother não é apenas alguém que vigia você. É alguém que faz você querer vigiá-lo o dia inteiro, passar o dia pensando nele, na programação dele, e se viciar nas imagens oferecidas por ele 24 horas por dia.

Criação de Orwell, a palavra “duplipensar” (doublethink) é muito citada mas não se incorporou à nossa linguagem, se bem que o hábito do duplipensamento seja cada vez mais generalizado. Sem duplipensar ninguém sobrevive. 

Políticos que mudam de lado e de credo com a maior das convicções, e num estalar de dedos “trocam o sinal” de seus aliados e adversários. Senhoras e senhoras respeitáveis que às escondidas mantêm vícios proibidos (drogas, sexo, etc.). Funcionários públicos trabalhando para um governo que desaprovam. 

Casais que traem e escondem.  Amigos que mentem e escondem.  Pais e filhos que mentem e escondem uns dos outros.  Isso é invenção dos tempos modernos?  Não: é da natureza humana, e volta em qualquer sociedade decadente, ou sob pressão. 

Por um lado, é a hipocrisia (e a cautela) de quem não pode revelar o que pensa. Por outro, é a disponibilidade permanente que se induz na população para que abrigue na mente idéias opostas. 

O povo tem que estar pronto para achar que “X” é bom e que “X” é ruim. Nunca se sabe de qual das duas opiniões o Big Brother vai precisar para seus objetivos, que, de qualquer modo, ninguém jamais saberá quais são.






quinta-feira, 27 de março de 2014

3457) Numa casca de noz (27.3.2014)



Vi uma postagem numa rede social, numa troca de idéias entre tradutores, comentando um livro que traduziu assim um título em inglês: A História das 40 Horas de Devoção em uma Casca de Noz. O original deve ser algo como The History of the 40 Hours’ Devotion in a Nutshell. A expressão “in a nutshell” tem o sentido de: “de forma resumida, de forma compacta, em poucas palavras”. Talvez tenha origem na famosa frase do Hamlet de Shakespeare: “O God, I could be bounded in a nutshell, and count myself a king of infinite space—were it not that I have bad dreams.”  Algo como: “Oh, Deus, eu podia ser trancado numa casca de noz e me considerar um rei dos espaços infinitos, não tivesse os sonhos maus que tenho”.

Dessa fonte clássica, talvez, veio a expressão popular “in a nutshell”, ou quem sabe ela já era popular no tempo do dramaturgo. Em todo caso, é uma dessas frases feitas, em torno de uma imagem fortemente concreta, de que a língua inglesa é rica. “Money makes a hole in his pocket” poderia ser traduzido por “dinheiro na mão dele é vendaval”, mas a imagem física da frase original suportaria ser vertida diretamente. (Ressalva: o personagem estaria deixando de dizer um clichê banal, e dizendo uma frase aparentemente fora do comum.) “I put my foot in my mouth yesterday” é mais visual do que, e tão coloquial quanto, “rapaz, eu ontem paguei o maior mico”.

Expressões populares tipo provérbios, comparações, frases feitas, aforismos, usam muitas vezes de uma força imagética que tanto tem de vívida quanto de meio sem sentido. Falar de corda em casa de enforcado?  Cor de burro quando foge?  Contar com o ovo no cu da galinha?  Pegar ar (=irritar-se)? E quando a gente traduz expressões estrangeiras, elas têm expressões de função equivalente em português, mas usando imagens completamente diversas. E algumas dessas frases, traduzidas com aquela literalidade de Millôr Fernandes em The Cow Went to the Swamp, ficam muito engraçadas, porque ninguém as diz assim em português. 

Muitas vezes a gente precisa traduzir “drunk as a lord” por “bêbado como um gambá”, mas “bêbado como um lorde” passaria imagem diferente, um contexto diferente; passaria uma ironia diferente, e como tal seria uma frase com luz literária própria. Outras não transporiam tão bem; mas quando alguma frase transpõe, o resultado literário pode ficar interessante. Se um sueco traduzir “Fulano pegou ar” para o idioma sueco conseguindo transmitir a idéia de algo inflável que vai inchando até estar bufando e a ponto de explodir... Se ele traduzir assim, pode ficar mais interessante do que a expressão equivalente lá deles.


quarta-feira, 26 de março de 2014

3456) Ferrovia subterrânea (26.3.2014)


“The Underground Railroad” foi uma organização clandestina criada nos EUA para facilitar a fuga de escravos.  Era uma série de endereços ao longo de uma linha, como uma linha de metrô onde em cada “estação” era possível esconder-se, descansar, alimentar-se, etc., mas o trajeto entre uma e outra geralmente era feito pelos fugitivos na base do “cruze os dedos e seja o que Deus quiser”.  Há um bom livro que reúne histórias de escravos e abolicionistas: Forbidden Fruit – Love Stories from the Underground Railroad de Betty DeRamus (New York, Atria, 2005).  De pouso em pouso, os escravos fujões se afastavam cada vez mais, indo rumo ao Norte, já que a maior parte da mão-de-obra escrava vivia no Sul.

Não sei se houve algo parecido aqui no Brasil, mas Joaquim Nabuco em Minha Formação (1900) faz referências às atividades abolicionistas de André Rebouças. No capítulo 21 de seu livro, Nabuco transcreve um itinerário redigido por Rebouças para a fuga de escravos paulistas rumo ao Ceará:

“Caminho de Ferro Subterrâneo do Alto São Francisco ao Ceará Livre. Estação inicial: São Paulo, junto ao túmulo de Luís Gama. Segunda estação: Pirassununga.  Terceira estação: Cachoeira de Mogi-Guaçu.  Quarta estação: Em pleno sertão, com rumo de Nordeste; o Sol deve amanhecer à direita e cair, à tarde, à esquerda.  Quinta estação: Piunhi, nascente do rio São Francisco, acompanhando sempre o belo rio, abundante de peixes e de frutos deliciosos.  Sexta estação: De um lado Goiás livre; do outro o sertão da Bahia, onde não há capitães-do-mato.  Sétima estação: Na Vila da Barra, onde começam as grandes cachoeiras do São Francisco.  Oitava estação: No varadouro das águas do São Francisco, para as do Parnaíba. Nona estação: no Paraíso – no Ceará Livre.”

Nabuco avalia esse texto de Rebouças como “pura fantasia, mas tão cheio para todos nós de vestígios de sua originalidade, de toques de sua generosa sensibilidade, quase impessoal”. 

Foi por acaso que descobri esse “exército das sombras” protegendo os negros dos EUA. Joguei “underground railroad” no Google para fazer uma pesca de livros de FC que usassem essa imagem. Por que?  Por causa do romance de Emilia de Freitas A Rainha do Ignoto (1899), descrevendo uma ilha no litoral do Ceará, onde se chega por um trem subterrâneo, num reino só de mulheres. O livro tem influências feministas e abolicionistas.  Na época em que a autora cearense escreveu, a expressão devia circular na imprensa abolicionista da época, e o que fez ela?  Recriou fisicamente essa expressão que antes era meramente metafórica.  No livro dela, entra-se numa gruta, pega-se o trem subterrâneo, chega-se à ilha.