quinta-feira, 27 de março de 2014

3457) Numa casca de noz (27.3.2014)



Vi uma postagem numa rede social, numa troca de idéias entre tradutores, comentando um livro que traduziu assim um título em inglês: A História das 40 Horas de Devoção em uma Casca de Noz. O original deve ser algo como The History of the 40 Hours’ Devotion in a Nutshell. A expressão “in a nutshell” tem o sentido de: “de forma resumida, de forma compacta, em poucas palavras”. Talvez tenha origem na famosa frase do Hamlet de Shakespeare: “O God, I could be bounded in a nutshell, and count myself a king of infinite space—were it not that I have bad dreams.”  Algo como: “Oh, Deus, eu podia ser trancado numa casca de noz e me considerar um rei dos espaços infinitos, não tivesse os sonhos maus que tenho”.

Dessa fonte clássica, talvez, veio a expressão popular “in a nutshell”, ou quem sabe ela já era popular no tempo do dramaturgo. Em todo caso, é uma dessas frases feitas, em torno de uma imagem fortemente concreta, de que a língua inglesa é rica. “Money makes a hole in his pocket” poderia ser traduzido por “dinheiro na mão dele é vendaval”, mas a imagem física da frase original suportaria ser vertida diretamente. (Ressalva: o personagem estaria deixando de dizer um clichê banal, e dizendo uma frase aparentemente fora do comum.) “I put my foot in my mouth yesterday” é mais visual do que, e tão coloquial quanto, “rapaz, eu ontem paguei o maior mico”.

Expressões populares tipo provérbios, comparações, frases feitas, aforismos, usam muitas vezes de uma força imagética que tanto tem de vívida quanto de meio sem sentido. Falar de corda em casa de enforcado?  Cor de burro quando foge?  Contar com o ovo no cu da galinha?  Pegar ar (=irritar-se)? E quando a gente traduz expressões estrangeiras, elas têm expressões de função equivalente em português, mas usando imagens completamente diversas. E algumas dessas frases, traduzidas com aquela literalidade de Millôr Fernandes em The Cow Went to the Swamp, ficam muito engraçadas, porque ninguém as diz assim em português. 

Muitas vezes a gente precisa traduzir “drunk as a lord” por “bêbado como um gambá”, mas “bêbado como um lorde” passaria imagem diferente, um contexto diferente; passaria uma ironia diferente, e como tal seria uma frase com luz literária própria. Outras não transporiam tão bem; mas quando alguma frase transpõe, o resultado literário pode ficar interessante. Se um sueco traduzir “Fulano pegou ar” para o idioma sueco conseguindo transmitir a idéia de algo inflável que vai inchando até estar bufando e a ponto de explodir... Se ele traduzir assim, pode ficar mais interessante do que a expressão equivalente lá deles.


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