sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

3404) Ódromo (24.1.2014)






Pode-se contar a história de um idioma através das palavras que ele inventa quando precisa dizer algo pela primeira vez.  Isso vem desde a invenção da fala, então já estamos acostumados.  Uma coisa curiosa nesse processo são certos memes etimológicos, não sei se é este o termo, mas em todo caso – certas estruturas-de-formação-de-palavras-novas que se reiteram, se reproduzem.  Quando o Rio de Janeiro construiu a atual Passarela do Samba feita de concreto (substituindo as passarelas de armação desmontável que havia na Marquês de Sapucaí até o começo dos anos 1980), logo surgiu o nome “sambódromo”, dado (ao que parece) por Darcy Ribeiro. Não por semelhança ao hipódromo da Gávea, creio, mas porque na época o autódromo de Jacarepaguá vivia seus dias mais ruidosos.  (Também o nome da Praça da Apoteose, aliás, deve-se a um arroubo retórico de Darcy, numa de suas euforias criativas.)

Ódromo começou a significar “lugar adequado para tal coisa”.  Deve ter sido com o aumento das campanhas anti-fumo nos anos 1990 que cada escritório ou local de trabalho passou a ter um “fumódromo” onde os funcionários davam um tempo após cada cafezinho.  E Brasília inaugurou há algum tempo o Beijódromo, o Centro Cultural Darcy Ribeiro, o que mostra como um meme-palavra fica girando feito satélite em volta de um cara, até depois de morto.

Quando fizeram o camelódromo da Rua Uruguaiana sabiam que o fenômeno ia transbordar da Rua Uruguaiana, o que não imaginavam é que o nome fosse transbordar por cima de todo o Brasil.  Toda capital ou cidade de médio porte ou já tem um camelódromo, ou está construindo, ou ainda não sabe que precisa.

E foi aí que surgiu essa conotação guetorizante. Quando o pau quebrou e o fogo ardeu nas ruas do Rio ano passado, discutiu-se a sério a possibilidade de construção de um “manifestódromo” onde se poderiam realizar agitações daquele tipo.  Proposta prontamente avacalhada nas redes sociais.  E agora, devido ao impasse dos jovens paulistas que querem dar um “rolezinho” nos shopping centers, surge a proposta: “Vamos construir um rolezódromo!” 

Se a sugestão foi a sério ou por zoação, é irrelevante.  Ela me lembra a piada dos irmãos Marx, num filme em que procuram, desesperados, um documento. Groucho grita: “Procurem na casa ao lado!”. Alguém: “Mas não existe casa ao lado!”. Groucho: “Então mandem construir, e procurem nela!”.  No caso brasileiro, todo mundo percebe o paradoxo lógico de um lugar onde as pessoas são autorizadas a fazer coisas-sem-autorização.  É como uma gravura de Escher.   A questão não é o bizarro da idéia, é que existe gente capaz de pensar nisso a sério e de construir isso, se tiver a chance.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

3403) Os Refugiados do Tempo (23.1.2014)




O transmissor temporal o desintegrou e o recompôs dentro de poucos segundos. Ele não sentiu nada, talvez uma vertigem, uma sensação cega de estar caindo.  Veio uma queda de verdade, na verdade um cambaleio para o lado, como se o chão tivesse se inclinado. Apoiou-se na parede de metal da cabine. 

A porta se abriu. Um homem velho, num uniforme rasgado e sujo, gritou algo mandando-o sair. Ele cambaleou para fora. Era um galpão de tijolo, muito alto, larguíssimo, e ao longo da interminável parede enfileiravam-se cabines idênticas à que ele acabava de deixar.

Parou olhando. Teve tempo de perceber que de vez em quando uma das cabines se abria e um guarda apressava para fora uma pessoa tão desnorteada e cambaleante quanto ele. 

Outros homens, com uniformes diferentes, agora conduziam todos, aos empurrões, para uns veículos longos de metal, acorrentados em fila, grandes quase como galpões também, mas sobre rodas. Seguiram-se horas de sol, poeira, vento áspero, mas tudo aquilo ele absorvia em êxtase, numa excitação que o distraía dos solavancos, dos esbarrões daquela multidão apinhada. 

Um céu azul como lhe tinham prometido. Um sol amarelo e bravio como nunca imaginara existir.

Não falava as línguas dali, mas era forte e diligente, logo arranjou onde trabalhar, o que comer, como dormir. Achou um jeito de se comunicar. Quando perguntavam de onde vinha, mostrava os documentos da viagem e explicava que não lia ideogramas. 

Cruzava na rua com outros e não havia como não se distinguirem dos habitantes locais. Somente eles, os infiltrados, tinham aquela cara de fuinha, aquele olhar assustado, aquela agitação incessante de quem não pode pensar demais no que está fazendo, e ao mesmo tempo aquela maneira de ficar acariciando paredes, tocando em folhas de mato, acocorando-se diante das telinhas coloridas e ruidosas, com pena de dormir e parar de ver aquilo tudo.

A chuva martelava o teto corrugado do canteiro de obras e ele amava a chuva. Enrolava-se nos lençóis descorados, cheirava-os, feliz. Um dia teria um barraco só para si, conseguiria uma mulher. 

Claro que estava valendo a pena. Depois que os Tubos foram construídos e começou o êxodo, diziam os temerosos que se morria, que não se ia a lugar nenhum, que a propaganda de “Volte 100 Anos no Passado e Refaça Seu Futuro!” era para exterminar bilhões que disputavam a pouca água e a pouca comida em jogo. “Século 21... A Melhor Fronteira!”. 

Ele acendia no escuro a maquininha luminosa, olhava a própria foto, pensava, “sim, eu consegui, não estou morto, estou num mundo onde problemas pode ser resolvidos, onde tudo pelo menos é possível!”. E se deixava embalar pelo aguaceiro.




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

3402) O mulato Isaías (22.1.2014)



Isaías é um rapaz da Baixada Fluminense, gosta de ler, tem boas notas, quer tentar a carreira no Rio.  Consegue uma carta de recomendação para um deputado e vem. Na pensão, torna-se amigo de jornalistas, comerciantes. O tal deputado não se interessa em ajudá-lo. Logo as economias que trouxe se evaporam. Começa a passar fome. E ao mesmo tempo frequenta, parasitariamente, as noitadas dos amigos que “têm boas colocações”. Acaba sendo admitido como servente na redação de um jornal chamado “O Globo”. E aí começa a vingança: sua narração na primeira pessoa destrói moralmente o jornal, os jornalistas, a imprensa carioca, a política brasileira.

Diz-se que Lima Barreto fez de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) uma provocação ao Correio da Manhã de Eduardo Bittencourt (O Globo, de Irineu Marinho, só viria a ser criado em 1925).  Típico das muitas atitudes murro-em-ponta-de-faca do autor, o livro, que desmascarava a imprensa carioca, foi ignorado pela imprensa carioca.  É um livro cruel pelo modo quase monocórdio como o jovem Isaías, servindo cafezinhos, enchendo tinteiros, fazendo mandados, ridiculariza a pompa e a fatuidade de jornalistas abonados, muitos dos quais leram menos e conhecem menos do que o mulatinho do café.

Isaías sobe profissionalmente – tendo que levar um recado urgente ao dono do jornal, ele o surpreende num bordel, e desse dia em diante o dono começa a tratá-lo bem, fazer-lhe agrados (certamente temendo uma chantagem), até promovê-lo a jornalista.  E Isaías, que sonhava em fazer carreira intelectual nas letras e tornar-se doutor, acaba se transformando numa daquelas cavalgaduras engravatas que tanto ridicularizou.

O jornalismo e a literatura do Brasil estão repletos de antas semi-alfabetizadas, que estão somente um degrau acima do embrutecimento mental dos seus leitores, mas criam um sistema de elogios mútuos que os mantém à tona.  Isaías percebe isso e não perdoa.  Torcemos pelo mulatinho de periferia, mas ele próprio não nos poupa seu ressentimento (a cada capítulo aumenta o seu lado “não confiável” como narrador), sua inveja, seu desprezo; e quando parece que vai escorregar no maniqueísmo, ele se transforma naqueles que despreza.  O fato de ter escapado dali (são recordações, redigidas muitos anos depois) lhe dá o equilíbrio necessário para evocar aquilo tudo e poder ver à distância seus erros tanto quanto os dos outros.

Isaías Caminha é um livro brasileiro sem esforço, e atual, com sua imprensa mantida às custas de propinas políticas, suas manifestações de rua, seus intelectuais da indústria do entretenimento, suas questões mal resolvidas de raça e de classe social.


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

3401) "A Química do Mal" (21.1.2014)



Está passando na TV aberta, desde esta semana, o seriado A Química do Mal (TV Record), que nada mais é do que o famoso Breaking Bad que no ano passado encerrou uma carreira vitoriosa de seis temporadas na TV norte-americana.  A conquista mais recente foi na entrega dos Globos de Ouro, em que ganhou o prêmio de melhor série dramática, e o ator principal, Bryan Cranston, o de melhor ator.

BB é uma excelente série de TV, e minha única preocupação é que seus fãs mais entusiasmados fazem um escarcéu tão grande (“A melhor série de TV de todos os tempos!”, etc.) que o pessoal começa a assistir esperando ver algo transcendental e se logo se decepciona.  Elogios entusiasmados trabalham contra, muito mais do que se pensa. Criam uma expectativa fantasiosa, que nunca se realiza.  A gente fica esperando algo que vai transformar nossa vida, alterar todos os nossos parâmetros de qualidade artística. Aí, vê uma série de TV muito boa... e sai dizendo: “Que série fraquinha!”.

Não costumo ver séries, de modo que minha avaliação não é comparativa, falo apenas do impacto pessoal.  É uma série policial, basicamente realista (com alguns momentos de grotesco e de bizarro, principalmente na primeira metade), cujo enredo é simples o bastante para manter uma história compacta, coesa, e ao mesmo tempo permite reviravoltas, pois a história completa da série acontece ao longo de uns três anos, acho, da vida dos personagens.  Existem transformações notáveis de personalidade, para melhor e para pior, os atores são bons, inclusive os eventuais.  Tem crime, droga, violência, mas é uma série de situações de suspense, e de longas e sofridas decisões morais, mais do que uma série de tiroteios.  Os tiroteios são poucos e cirúrgicos. Há muitos crimes cruéis, alguns deles menos por sadismo do que por incompetência do assassino.

O professor de química, todo nerd, todo bundão, de repente se transforma num cientista louco e logo depois num líder de gang.  Walter White é o médico e o monstro nessa história de descida aos infernos.  A ambientação em Albuquerque (Novo México) dá um perfil único à história e ainda fornece uma cidade pequena o bastante para certas coincidências não serem tão espantosas.  Nas duas primeiras temporadas a série usa uma imaginação selvagem e bizarra, quase de filme dos irmãos Coen ou de romance de Bolaño; depois vai se fechando em thriller policial e psicológico mais realista, tipo Dennis Lehane. Trama e diálogos geralmente são muito bons, não sei como vai ser a dublagem. O subtítulo A Química do Mal é desajeitado, mas é um preço a se pagar pela manutenção do nome original, para não haver dúvidas.


domingo, 19 de janeiro de 2014

3400) Tem livro que (19.1.2014)



Tem livro que eu tenho tanta vontade de ler que toda vez que eu vejo uma edição nova eu compro e boto na estante; aumenta as minhas chances de conseguir ler algum dia.  Tem livro que você compra no lançamento, pega o autógrafo do autor, mas quando começa a ler pensa que era melhor ter trazido para autografar um exemplar do livro que você mais gosta.  Tem livro que começa de um jeito mas a certa altura já virou uma história tão diferente que você imagina como pensaria no livro se tivesse desistido da leitura antes de presenciar daquela reviravolta.  Tem livro que você sabe que já leu: vê os riscos e as anotações feitos por sua própria mão, mas não recorda uma só daquelas frases que sublinhou. Tem livro que tem história legal, o projeto gráfico é legal, mas botaram o desafortunado do texto numa fonte que tanto tinha de elegante quanto de ilegível.

Tem livro “cult” que a gente espera trinta anos até ver um exemplar; compra, leva, e não lê, porque sem ter lido já sabe de cor.  Tem livro tão grosso que a gente começa a pensar: “Isso é um livro pra ler pelo resto da vida”, e o tamanho do volume nos dá uma ilusão de longevidade. Tem livro que cada vez que é relido pode ser cada vez mais subdividido em interpretações. Tem livro que você compra esbagaçado, retalhado, mutilado, e leva pra casa e cuida, você cuida daquele exemplar como cuidaria de um cachorro faminto e doente, se gostasse de cachorros.

Tem livro com ingredientes que a gente gosta, é de um autor que a gente aprecia, mas a gente nunca consegue passar da página dez. Tem livro que eu li pela primeira vez em edições defeituosas, com “cadernos” trocados, o que equivale a trocar os rolos de um filme de celulóide no cinema, e só li a história direito vinte anos depois.  Tem livro que é como uma música que a gente está ouvindo, livro que é como uma história que está acontecendo, que é como um jogo, um quebra-cabeças, tem livro que é como se fosse uma carta de uma pessoa desconhecida que conhece você bastante bem.

Tem livro famoso que você lê e não vê nada de mais, e tem livro que na página 3 você pensa, “está começando uma coisa que eu nunca vou esquecer”, e lê até o fim.  Tem livro besta que eu comprei e guardo só por causa da capa.  Tem livro que eu gosto tanto que planejei lê-lo em todas as línguas que consigo. Tem livro que não é importante, mas vive nas minhas prateleiras há décadas, sem ser consultado, talvez com a única função de ser aberto por acaso uma noite e revelar dentro de si um bilhete, um canhoto de ingresso, uma filipeta de show, um recorte de jornal, uma foto; como uma caixa enorme contendo um pequeno diamante.


sábado, 18 de janeiro de 2014

3399) Os Prisioneiros (18.1.2014)



(Ilustração: Mana Neyestani)

No começo do mês fui eleito o MC para os próximos trinta dias. O sorteio não me indicava há tempos, mas vida de agente penitenciário envolve não somente talento para Relações Públicas e Comunicação de Massas, requer também uma resignação filosófica diante do inevitável. Como estou sempre prevenido, joguei na mesa as idéias que tinha esboçado: um festival de música, a eleição para o refeitório (que vem sendo adiada desde o ano passado), um novo profeta messiânico (Neco Chumbinho, que venho preparando há meses com leituras e laboratórios), e, caso seja necessário um confronto de facções, decidi que o ideal seria um entrevero entre os NecroMobs e os Rasga, que andam meio enfarruscados um com o outro por causa de roubos de celulares.

Marcamos três eliminatórias e uma final para o festival de canções, e acertamos com as facções quem ganharia o quê.  No refeitório, sugerimos um rodízio entre as equipes candidatas, três dias de cardápio e execução para cada uma, com cédulas de avaliação distribuídas na saída e postas nas urnas. Neco Chumbinho foi liberado para percorrer as alas a qualquer horário, orando. Tudo isso deve dar uma sacudida no grupo, e dentro de dez dias o primeiro confronto armado estará maduro. No festival de canções teremos torcidas organizadas, faixas, enquetes; fóruns gastronômicos e nutricionistas na luta política pelo refeitório. Para meu orgulho, o Presídio há muito tempo não dava tantos sinais de vitalidade e espírito participativo.  Começamos a ver nos rostos a exaltação, o entusiasmo, o impulso de realizar coisas. “Você conseguiu chamá-los aos brios”, elogiou o Diretor, sempre cheio de retórica.

Não é fácil administrar um Presídio como este, com 1.200 detentos das mais variadas tendências. “Não pare e não pense”, é o meu lema, e todo o nosso esforço é para transformar isto aqui num redemoinho de atividade, de novidades, de coisas pelas quais vale a pena lutar, sorrir, chorar, vibrar, viver. Não há trancas nas portas, grades nas janelas; não há guaritas, muros ou portões. A partir da última calçada dos alojamentos estende-se um relvado aberto em todas as direções. A estrada fica a um quilômetro, a cidade a dez. Descobrimos depois de tantos anos que mais fácil do que impedi-los de fugir é impedi-los de desejar a fuga; de imaginar a necessidade de uma fuga.  Claro, dá um pouco mais de trabalho, mas eliminamos a necessidade de repressão, o desgaste eterno de vigiar e punir. Eles são felizes, e nós temos a tranquilidade do dever cumprido. O melhor cárcere é aquele de onde o prisioneiro não quer fugir, e para onde ele voltaria correndo, se fosse levado para longe.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

3398) "Mais um dia de vida - Angola 1975" (17.1.2014)



Pelas praças, ruas e avenidas da capital, principalmente as que convergem para o aeroporto ou para o cais, por entre as casas e edifícios de pedra, começa a surgir uma outra cidade de madeira, uma cidade de caixotes, de contêiners, de todo tipo de embalagem sólida onde os milhares de fugitivos possam embalar e amontoar seus televisores, seus sofás, candelabros, roupas de cama e mesa, porcelanas, flores artificiais. É uma cidade de madeira que brota em poucas semanas, e que vai fazer-se ao mar para sempre. Mais um dia de vida – Angola 1975 (Lisboa: Tinta da China, 2013, tradução de Ana Saldanha), de Ryszard Kapuscinski, é a reportagem dos últimos três meses da guerra civil em Angola, entre a evacuação catastrófica dos portugueses e dos angolanos brancos, e as batalhas finais entre os exércitos do MPLA, da FNLA e da UNITA, que lutavam pelo poder.

Kapuscinski, correspondente de guerra polonês, atuando em vários continentes, já foi acusado de falsear os fatos, mas não de escrever livros insípidos. Ele mostra a crueza da guerra com descrições cruas mas imperturbáveis, mesmo quando afirma que se perturbou quando aquilo aconteceu. Um repórter com estilo suficiente para transformar aquilo num thriller de campo de batalha e ao mesmo tempo no olho investigativo de um polonês sobre a sociedade, a mente e os valores dos angolanos, tanto brancos quanto negros.

Luanda é evacuada, as duas ofensivas convergem para a capital que o MPLA tenta manter sob seu domínio. FNLA ao norte e UNITA ao sul, com tropas sul-africanas, convergem para a capital, e Kapuscinski fica saltando pelo país de jipe, de avião, de comboio, tentando ver com os próprios olhos a situação no front Sul, e voltar a Luanda para transmiti-la por telex. E a cada passo a terrível gratuidade da morte, a morte aleatória, a morte por coincidência, a morte individual desnecessária a qualquer vitória coletiva.

Um cinema drive-in reexibe sem parar Emmanuelle, a única cópia que ficou em suas mãos. Sem água, sem luz, sem lixeiros nem bombeiros, a cidade arde e apodrece. Ele diz que “embora os dois mundos, o conforto e a pobreza, se encontrem a dois passos um do outro e ninguém esteja a guardar o bairro rico dos europeus, os negros das cubatas de adobe não tentaram mudar-se para lá. A idéia não lhes passou pela cabeça”. Depois, Kapuscinski, na estrada, pergunta a Diógenes, um líder, por que eles andavam em caminhões tão precários quando as cidades estavam cheias de veículos em bom estado, deixados pelos portugueses. O outro responde que esses veículos eram propriedade dos portugueses. Não poderiam tocá-los. E de fato não tocam. Guerreiam com o que têm.


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

3397) "Click, Enter e Play" (16.1.2014)




“Minha primeira revista literária foi na Paraíba. Eram os anos 1950, mas chegavam muitos contos pelo correio. Criamos um concurso, prêmios, sorteios.  Por dois anos a revista se pagou, com venda e alguns anúncios. Um dia chegou um conto, 20 páginas bem datilografadas, papel meio caro, paramos tudo para examinar. Se fosse bom, ocuparia o espaço de dois contos padrão. Ficaríamos com um a mais em nossa reserva, que andava escassa.

“Li. Era meio americanizado demais. Rapaz entra na aeronáutica, vai para a guerra a contragosto, no final é morto por um desertor. Mas se passava no Brasil, era bem escrita, pedi a leitura ao saudoso Domiciano Eiras. Ele ligou no outro dia. Tinha gostado, achou as paisagens da ilha deserta o máximo, os piratas sensacionais, mas preferia que “no final ele e a imperatriz ficassem juntos”.  Eu tinha pressa, desliguei intrigado. Ilha?  Imperatriz?

“Misael Lemos foi o terceiro a ler, e disse que era uma história cavernosa e interplanetária, com monstros bizarros que em alguns momentos o tinham assustado de verdade. Perguntei sobre o título. Ele respondeu: “Parece uma indicação técnica, das peças do tempo de Shakeapeare. ‘Click’ é o sinal dado por um contrarregra, e depois o ator entra, e atua.” Era citado na história, que era toda ela uma espécie de encenação.

“Misael mandou o conto para o escritório de Formiga, editor-chefe. Falou que a gente tinha gostado, mas não sabia se tinha entendido direito.  Na noite seguinte, foi lá, e Formiga falou: “Ambientada no Sertão do Rio do Peixe seria uma ótima história de cangaço. Gostei das perseguições, das cavalgadas.” Pousaram o texto na mesa sem discuti-lo: detiveram-se na língua do título, que Formiga dizia ser em inglês, e Misael que o título tornava-se em português em virtude daquele “e”, e as outras três palavras sendo meros estrangeirismos não digeridos.

“A campainha tocou, chegou a pizza que haviam pedido, e após o repasto os dois limparam a mesa, ensacaram o lixo, fecharam a sala e foram tomar uma. Misael disse depois que pensava no conto como um paradoxo divertido e intrigante. Formiga, envolvido com o trabalho, só tentou procurar o datiloscrito dois dias depois. Remexeu a sala uma manhã inteira até lembrar. A pizza, o lixo. O conto, seu envelope com endereço e com o nome do autor, que nenhum de nós lembrava, estava, caso existisse ainda, a caminho de algum lixão sanitário com milhões de toneladas cúbicas.

“Mas isso era nos velhos tempos, de máquina de escrever, papel carbono, estêncil, mimeógrafo, carimbo, linotipo, composição em chumbo... Hoje, com a modernidade, e principalmente com a Internet, nada disso aconteceria.”


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

3396) Um som sem trovão (15.1.2014)




O filme de Kleber Mendonça Filho, O som ao redor, recebeu um dilúvio de elogios ano passado, e, talvez por conta disso, veio em seguida uma segunda onda de opiniões desdenhosas, no tom de “não achei essas cocacola toda”. Eu li pouquíssimo sobre o filme antes de vê-lo agora. Só sabia que era sobre um grupo de personagens espalhados por uma rua do Recife. Os elogios mais vigorosos foram feitos, em email, por W. J. Solha, o coronel Francisco do filme, que me elogiou o trabalho e o produto final, mas sem pistas do enredo. Por que insisto neste ponto? Porque quando a gente lê muito sobre o filme deixa de ter a experiência pura do filme. Ao invés de receber o filme na totalidade de cada momento seu, a gente fica esperando a cena da briga, esperando a cena da trepada, a cena do monstro, a cena da batalha... Resultado: não leio mais. Vou pro filme zerado.

Há uma cena em que o Dr. Anco está conversando com seu sobrinho João; os dois trabalham como corretores de apartamentos. Anco diz que lhe aconteceu uma coisa extraordinária. “Rapaz, fui mostrar um apartamento a um casal, pois não é que a mulher era uma ex-namorada minha?! A gente namorou um tempo, anos atrás, e o sexo com ela era bom demais, a gente fazia de tudo... Ela agora tá casada, com dois filhos...”  Há uma pausa. João pergunta: “E depois?”. Ele: “Depois, nada. Foram embora. Tu achasse pouco?” João: “Não, não. É ótima a história.”. O filme tem esse perfil, e talvez isso tenha irritado muitos espectadores. Porque ele arma situações que em outros filmes redundariam na cena da briga, na cena da trepada, etc. E não de propósito não redunda em nada.

O filme é meio nelsonrodriguiano, no sentido Zona-Norte-do-Rio do termo. Ambiente e personagens pós-Nelson, como Bia, a mulher que transa com a máquina de lavar roupa, que fuma maconha soprando no aspirador de pó, que dá sonífero ao cachorro. Mas onde Nelson derivava para o expressionismo, o melodrama, o filme se retém, reduz a marcha, mantém tudo num plano meio “filme de apartamento”, neo-realista, sem grandes lances dramáticos. Fica no que Drummond descreveu em “Vida Menor”: “A vida: captada em sua forma irredutível, /  já sem ornato ou comentário melódico, (...) Não o morto nem o eterno nem o divino, / apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente / e solitário vivo. / Isso eu procuro”.  Um naturalismo urbano sem os raios-e-trovões de um Nelson, um Dalton Trevisan, um Rubem Fonseca. Os personagens estão no epicentro tranquilo de um furacão. São os 360o de som em volta que formam um tsunami ameaçador, fechando-se sobre eles, um terremoto que se aproxima, uma guerra a caminho cujos sintomas explodem de repente em cada esquina.


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

3395) "Notícia de um sequestro" (14.1.2014)





Na série “Livros Meio Antigos Que Sempre Me Interessaram Mas Só Agora Estou Lendo” posso incluir com prazer este relato de Gabriel Garcia Márquez, de 1996, a época em que a violência na Colômbia atingia proporções quase de guerra civil. Márquez, por um lado, tem uma imaginação “Realismo Mágico”, capaz de infinitos desdobramentos e constantes surpresas.  Sua formação, no entanto, é jornalística, e quando se detém sobre fatos ele parece ser tão objetivo e atento ao detalhe quanto – digamos – um Fernando Morais ou Ruy Castro, dois dos nossos referenciais de história verdadeira contada com rigor de minúcias.

O livro acompanha o sequestro de uma dezena de jornalistas colombianos pela quadrilha de Pablo Escobar, o barão da cocaína que na época tentava pressionar o governo para evitar ser extraditado para os EUA, onde suas chances de escapar à justiça seriam nulas. Os jornalistas eram de famílias influentes (havia a filha de um ex-presidente da República), famosos em todo o país. Ficaram em diferentes cativeiros, vigiados 24 horas por adolescentes drogados e armados, e a narrativa acompanha tanto os reféns quanto as famílias que, do lado de fora, pressionam o governo e os sequestradores em busca de uma solução.

Márquez arma o livro como uma história de suspense. Para nós, não-colombianos, todos aqueles personagens são desconhecidos. Lá, já se sabe (é fato histórico) quem morreu e quem foi resgatado com vida; para um leitor distante, é uma história que está acontecendo pela primeira vez no instante da leitura. Imaginamos a qualquer instante um desfecho trágico para qualquer um daqueles personagens. Sabemos que tudo já aconteceu, mas nossa ignorância do resultado nos ajuda a ler os fatos como se qualquer final fosse possível.

É uma história com intriga política, suspense, violência, fazendo um corte de várias classes sociais (há um contraste patético entre o refinamento inútil dos sequestrados e a rusticidade dos “testas de ferro” dos cativeiros), contada por um narrador onisciente que não pode interferir no enredo: ele vê tudo, mas tudo imovel, porque já aconteceu. Se fosse literatura, seria interessante saber até que ponto seriam toleráveis certos infelizes acasos que ocorreram, e certos destinos trágicos que parecem escritos em implacáveis estrelas. Descontando a crueldade e a tragédia das mortes de fato acontecidas, o destino da maioria dos reféns é um anticlímax. Romancistas e roteiristas de cinema hesitam em encerrar um drama dessas proporções de maneira banal, com pessoas famintas, atarantadas, andando numa rua de periferia em busca de um táxi ou de um telefone.