terça-feira, 14 de janeiro de 2014

3395) "Notícia de um sequestro" (14.1.2014)





Na série “Livros Meio Antigos Que Sempre Me Interessaram Mas Só Agora Estou Lendo” posso incluir com prazer este relato de Gabriel Garcia Márquez, de 1996, a época em que a violência na Colômbia atingia proporções quase de guerra civil. Márquez, por um lado, tem uma imaginação “Realismo Mágico”, capaz de infinitos desdobramentos e constantes surpresas.  Sua formação, no entanto, é jornalística, e quando se detém sobre fatos ele parece ser tão objetivo e atento ao detalhe quanto – digamos – um Fernando Morais ou Ruy Castro, dois dos nossos referenciais de história verdadeira contada com rigor de minúcias.

O livro acompanha o sequestro de uma dezena de jornalistas colombianos pela quadrilha de Pablo Escobar, o barão da cocaína que na época tentava pressionar o governo para evitar ser extraditado para os EUA, onde suas chances de escapar à justiça seriam nulas. Os jornalistas eram de famílias influentes (havia a filha de um ex-presidente da República), famosos em todo o país. Ficaram em diferentes cativeiros, vigiados 24 horas por adolescentes drogados e armados, e a narrativa acompanha tanto os reféns quanto as famílias que, do lado de fora, pressionam o governo e os sequestradores em busca de uma solução.

Márquez arma o livro como uma história de suspense. Para nós, não-colombianos, todos aqueles personagens são desconhecidos. Lá, já se sabe (é fato histórico) quem morreu e quem foi resgatado com vida; para um leitor distante, é uma história que está acontecendo pela primeira vez no instante da leitura. Imaginamos a qualquer instante um desfecho trágico para qualquer um daqueles personagens. Sabemos que tudo já aconteceu, mas nossa ignorância do resultado nos ajuda a ler os fatos como se qualquer final fosse possível.

É uma história com intriga política, suspense, violência, fazendo um corte de várias classes sociais (há um contraste patético entre o refinamento inútil dos sequestrados e a rusticidade dos “testas de ferro” dos cativeiros), contada por um narrador onisciente que não pode interferir no enredo: ele vê tudo, mas tudo imovel, porque já aconteceu. Se fosse literatura, seria interessante saber até que ponto seriam toleráveis certos infelizes acasos que ocorreram, e certos destinos trágicos que parecem escritos em implacáveis estrelas. Descontando a crueldade e a tragédia das mortes de fato acontecidas, o destino da maioria dos reféns é um anticlímax. Romancistas e roteiristas de cinema hesitam em encerrar um drama dessas proporções de maneira banal, com pessoas famintas, atarantadas, andando numa rua de periferia em busca de um táxi ou de um telefone.

domingo, 12 de janeiro de 2014

3394) "O Som ao Redor" (12.1.2014)



Gilberto Freyre, um dos mais dedicados investigadores da sociedade pernambucana, intitulou seu primeiro grande livro Casa Grande & Senzala, criando com isto, aliás, uma terminologia que se incorporou a nossa linguagem cotidiana (“O Brasil pode até acabar com a senzala, mas nunca vai se livrar da casa grande”, etc.). Voltando sua mira para o meio urbano, Freyre produziu outro dístico que equaciona em outros termos essa clivagem social: Sobrados e Mucambos. Eu diria que a cultura pernambucana (principalmente cinema, literatura, música) vem nos últimos tempos produzindo um terceiro corte que na falta de coisa melhor eu chamaria Cobertura Duplex & Moradia Popular.

O filme O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho faz esse corte transversal numa pequena área urbana do Recife. É um terreno vasto de patriarcas do açúcar que, como tudo o mais que foi deles, acabou fatiado, loteado aos pouquinhos. Um império vendendo a si mesmo pelas beiradas, como naquela fábula do náufrago que todo dia cortava um pedaço de si mesmo e o jogava aos tubarões, na esperança de que poupassem o principal. No filme, os tubarões quase não são vistos, mas as grades que os mantêm do lado de fora são onipresentes. Todo enquadramento do filme lembra uma palavras-cruzadas. É tanta grade que parece que estamos em Abreu e Lima, não num bairro nobre.

Nobre é o tratamento que esses fidalgos-de-berço dão aos serviçais, quando em condições normais de temperatura e pressão. Certos retratos da aristocracia rural inspirados em histórias de chicotes e feitores ignoram essa maneira tranquila, civil, até descontraída com que os ricos nordestinos (o filme mostra) costumam tratar seus empregados. Quem grita e esculhamba com eles, em geral, são os patrões de classe média.

No labirinto das ruas floresce o mercado-negro da segurança privada, uma guarda-pretoriana a que os combalidos aristocratas entregam seu destino, meio que fechando os olhos a todas as evidências. Jovens ricos vivem de pequenos furtos ou se engajam como pequenos mascates da explosão imobiliária. O velho patriarca (W. J. Solha, bíblico e jagunço) é afável e bonachão, mas, quando prevê uma ameaça a um parente seu, racha-se o verniz, e a escama do dragão reponta, fumega.

São pessoas sem futuro, cercadas em 360 graus de raio por sons inexplicáveis, ameaçadores, recorrentes, irritantes. Um bombardeio de algo que se aproxima, prestes a escalar as árvores e pular os muros das fortalezas. O filme mostra a insônia dessas pessoas, que têm a expressão destruída de quem só quer paz, mas não sabem como interromper a guerra que os enriqueceu e hoje os malassombra.


sábado, 11 de janeiro de 2014

3393) A moeda do tempo (11.1.2014)




(Ilustração: Edward Gorey)


De vez em quando a gente entra nas redes sociais e começa a fazer brincadeiras com os amigos: “Seis posts na última meia hora? Vai trabalhar, vagabundo!”. Há uma mistura de seriedade e de gracejo nisso, principalmente entre aqueles cujo trabalho exige que fiquem o dia inteiro sentados na frente do computador. Escritores, tradutores, jornalistas... Ou mesmo pessoas que têm outras ocupações, mas de tanto em tanto tempo sentam diante do monitor, checam o que os amigos andaram postando, comentam, compartilham, envolvem-se em debates, fazem piadas.

Nada impede que essa aparente falta de ocupação esteja sendo exercida nos intervalos de um trabalho duro, e da minha parte nada melhor para descansar de uma hora intensa de escrita ou de tradução do que 15 minutos num Twitter ou Facebook peruando as polêmicas alheias, ou conferindo um clip musical, uma notícia quente. A gente volta ao trabalho com a mente relaxada, pronto para mais uma hora de enfrentamento. (O único prejuízo é do corpo, que continua escravizado ao teclado e à cadeira giratória.)

Estou perdendo meu tempo? Não acho. Perdia muito mais quando tinha TV na sala e no quarto e, sob o pretexto de “descansar a coluna”, me deitava às 3 da tarde nas almofadas, ligava a Máquina de Fazer Doido, e só emergia dali quando começava a novela das 8, porque afinal tudo tem um limite. Cinco anos atrás eu via uma média de 5 a 6 horas de televisão por dia; hoje em geral vejo quatro por semana (um jogo na quarta, outro no domingo, e olhe lá.)

O poeta Carl Sandburg disse: “O tempo é a moeda que você tem para negociar sua vida. É a única, e só você pode dizer como ela vai ser gasta. Tenha cuidado, não deixe que as outras pessoas a acabem gastando, em vez de você”. Chega um momento na vida em que eu olho minhas estantes repletas de tesouros inestimáveis e sei que não vou poder ler aquilo tudo. Eu seria capaz de escrever um livro sobre cada livro que tenho na minha biblioteca; mas não vai dar tempo. Gastei, gastei demais minha moeda, e se alguém vier me censurar minhas noitadas de botequim e violão eu direi que ao contrário, aquilo foi tempo bem investido e bem recompensado. O desperdício, amigo, é o programa de auditório que você fica olhando sem ver, só porque a TV está ligada; o filme bobo que você já viu, ou que está achando chato mas vê mesmo assim; o talk-show com gente cheia de caras e bocas e sem nada para dizer; o pseudo-noticiário de fatos cuja verdadeira versão você acabou de ler num blog confiável. O tempo não é um recurso renovável. Pior do que isto, é uma conta bancária de onde a gente retira um dia por dia, sem nem saber quanto falta para zerar o saldo.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

3392) Festa de Rei (10.1.2014)



No fim de semana passado, fiz uma coisa que só acontece raramente na vida da gente: realizar um sonho de quarenta anos, e ainda ganhar para isso!  O “ainda ganhar” se deve ao fato de que viajei a trabalho, como parte da equipe do documentário Bom dia, poeta, que incluía Alexandre Alencar (direção), Amaro Filho e Cláudia Moraes (produção), Ivanildo Marques e Chapola Silva (fotografia e som). Eu fui como roteirista e entrevistador, além de poeta nas horas vagas.

O sonho de 40 anos foi conhecer São José do Egito, que o pessoal chama (com certa discrepância geográfica) “a Meca da poesia popular nordestina”. Sem a grandiosidade da Kaaba ou das Pirâmides, São José é uma cidade de 30 mil habitantes que respira poesia como Florença respira artes plásticas ou Nova Orleans respira jazz. Está na essência, na medula daquele povo; está no seu jeito de ser, de falar, de pensar, de interpretar o mundo e de estabelecer seus laços recíprocos de amizade e admiração. No mundo da poesia popular, chamamos de poeta (“bom dia, poeta!”) as pessoas de quem gostamos, que admiramos, que desejamos honrar e tratar bem. Nem todos são poetas, é claro, mas um bom leitor de poesia é mais importante do que duzentos poetas ruins.

A Festa de Rei era a comemoração dos 99 anos de nascimento de Lourival Batista, “Louro” (1915-1992), e um ensaio para a festa do seu centenário no ano que vem. Louro, com quem convivi entre 1975 e 1980, formou, com seus irmãos Otacílio e Dimas, a trinca dos irmãos Batista Patriota, três rochedos imbatíveis contra os quais oceanos inteiros de versos alheios se espatifaram inutilmente. Cada um com suas características; o forte de Louro era o trocadilho, a construção sinuosa e impecável de glosas que entraram para a História, o espírito escarninho e mordaz (principalmente nos desafios com seu grande amigo Pinto do Monteiro), e a alma de poeta, sem vaidade, sem egoísmos. Criou uma família enorme, cheia de artistas, muitos dos quais se revezaram no palco armado em homenagem ao mestre nos dias 4, 5 e 6 deste janeiro.

São José é símbolo de uma região, o Vale do Pajeú, numa área onde Pernambuco e Paraíba se penetram mutuamente, como o símbolo do Yin-Yang, e que engloba Tabira, Itapetim, Teixeira, Tuparetama, Sertânia, Afogados da Ingazeira, Água Branca, Carnaíba, Flores... A Serra do Teixeira e o Rio Pajeú são dois vetores essenciais dessa cultura da sextilha, do cordel, do mote e da glosa; e do repente, do flash instantâneo de percepção que cria uma piada, um trocadilho...  Ninguém entenderá a poesia nordestina sem mergulhar nessa cultura gigantesca e quase invisível. É a ponta de um iceberg, e é maior que o Everest.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

3391) A Biblioteca Perdida (9.1.2014)




(by André Govia)

A cidade de Gesternburg é conhecida por sua catedral gótica, pela exuberância de suas floriculturas, pelos seus restaurantes (para os que apreciam a comida alemã) e pela Biblioteca Wolffring, uma das maiores coleções de obras ocultistas e místicas da Europa. Gesternburg é um porto fluvial, e o ápice de sua vida cultural foi entre os séculos 16 e 17, quando seu clima ameno e a facilidade de transporte fez muitos nobres do império austro-húngaro construir ali seus castelos de verão. A decadência das casas nobres fez com que as maiores absorvessem as menores, e o que aconteceu com os brasões se refletiu nas bibliotecas. Por volta de 1887, o Conde de Wolffring havia comprado todas as bibliotecas do vale.

A morte do Conde em 1914 coincidiu com o deflagrar da I Guerra Mundial. A cidade, miraculosamente, não sofreu nenhuma invasão, mas padeceu com o racionamento de comida. E foi aí que entrou na história o novo Conde, filho único do patriarca. Estrôina, beberrão, indolente, o jovem Conde começou a dilapidar a fortuna do pai, que morrera sem um centavo nos cofres. Como achava que mobília e pratarias tinham maior valor, começou a desfazer-se dos livros. Os fornecedores de pão, carne, vinhos, leite, vitualhas, passaram a ser pagos não com moedas, mas com pesados volumes de Eliphas Levi, de Swedenborg, de Fulcanelli... Os perplexos mercadores passavam esses livros adiante por qualquer preço. A cidade inteira tinha uma vaga idéia de que o Conde possuía volumes preciosos, e durante alguns anos livros passaram de mãos em mãos num complicado sistema espontâneo de escambo, onde contavam pontos o tamanho do volume, o número de páginas, as ilustrações ou iluminuras que exibia, a encadernação.

Desse modo, ao longo de dez ou quinze anos as estantes do castelo de Wolffring foram esvaziadas, enquanto pela cidade inteira espalhavam-se tesouros bibliográficos obscuros ou interditos. Pesquisadores do mundo inteiro costumam hoje hospedar-se em Gesternburg por longos períodos para consultar a Biblioteca Perdida. Para isso, tornam-se amigos de padeiros, encanadores, taxistas, camponeses, manicures, em cujas casas sempre é possível encontrar cofres de madeira bem cuidados onde se guardam exemplares da moeda local: a correspondência de Papus, primeiras edições de Blavatsky e de Valentin Andreae, manuscritos inéditos de Jacob Boehme e de Jan van Ruysbroeck. É possível consultá-los e até fotografá-los, se se recorrer aos serviços profissionais da pessoa sob cuja custódia estão. Este é um fato que tem contribuído para aumentar o fluxo do turismo cultural em Gesternburg neste último meio século. Quanto ao castelo do Conde, foi comido por um incêndio.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

3390) Arcaísmos idiomáticos (8.1.2014)



Algumas palavras entram em desuso na linguagem comum, vão deixando de ser usadas, as pessoas vão se esquecendo delas; às vezes ficam tão mortas e ressequidas que caem até do dicionário. Ocorrem, no entanto, que algumas delas sejam preservadas em frases feitas, em modos de dizer que as utilizam e que acabam sendo as únicas vezes em que elas são chamadas à ativa.

Vi no saite MentalFloss um útil artigo da linguista Arika Okrent sobre palavras assim na língua inglesa. O verbo “to wend”, que significa “ir”, sumiu; ficou apenas na expressão “to wend my/your/his way”, que significa “seguir caminho”. Ela explica que “to go” e “to wend” eram sinônimos de uso corrente, mas o segundo sumiu, deixando de si apenas o particípio passado, “went”, que transformou “to go” num esquisito verbo irregular.  Outro caso curioso é a palavra “fro”, que eu só conhecia da expressão “to and fro”, que significa “de um lado para o outro, pra lá e pra cá”. Diz ela que é uma pronúncia arcaica de “from”, o que, agora sim, dá sentido à frase, sugerindo a ida e a vinda.

Temos expressões parecidas em português. Um exemplo que me vem à memória é a frase “não vale um tostão, não vale um tostão furado”. Quanto é o valor monetário de um tostão? Não sei, porque quando nasci ele já estava obsoleto. Sobreviveu colado à frase. Algo parecido se deu com “comer uma arroba de sal com Fulano” (=conviver bem de perto com Fulano, pois sal come-se aos pouquinhos); arroba como medida de peso já foi pro espaço, mas a palavra acabou tendo uma ressurreição paralela, ligada ao símbolo “@”, tão útil hoje em dia.

Não sei se a palavra “alvíssaras” ainda subsiste fora da expressão “pedir as alvíssaras”, que se atribui a quem é o primeiro a dar uma notícia.  “Fulano ontem de noite chegou aqui em casa pedindo as alvíssaras, porque a irmã dele vai ter neném.”   Vem do antigo costume português, preservado nos cantos da “Nau Catarineta”: “Alvíssaras meu capitão / Meu capitão general! /  Já vejo terras de Espanha / areias de Portugal!”.

Não são apenas palavras que subsistem assim, mas idéias. Muitos jovens hoje usam a expressão “cair a ficha” sem saber que ela se deve aos orelhões, os telefones públicos onde a ficha caía quando havia conexão, alguém atendia do outro lado. (Em inglês há expressão paralela: “the coin dropped”, “a moeda caiu”).

Tem a expressão “dar às de vila diogo”, que significa “fugir,  passar sebo nas canelas, bater em retirada”. O tal Vila Diogo, que não sei quem seja, foi preservado na frase, mas vejam só o que é a língua, somente macróbios de óculos fundo-de-garrafa como eu recordam a expressão. Neste caso parece que afundou foi tudo.


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

3389) "Invasores de Marte" (7.1.2014)



Revi no YouTube este filme de William Cameron Menzies, que é de 1953 mas devo ter visto por volta de 57 ou 58. Um garoto vê de madrugada um disco-voador aterrissando numa colina próxima de sua casa. No dia seguinte o pai dele, que é alegre e carinhoso, vai ver o que aconteceu e volta transformado num homem sombrio, violento e insensível. Logo o garoto percebe um ponto vermelho, como um pequeno rubi, cravado na nuca do pai. Pouco a pouco, as pessoas em volta (a mãe, os vizinhos) passam pela mesma transformação, e segue-se a previsível peregrinação paranóica do garoto por uma cidadezinha indiferente, até achar um casal de cientistas que acreditam nele. No final, eram alienígenas que estavam implantando controles mentais nas pessoas para sabotar uma base de foguetes das vizinhanças, onde o pai do menino trabalhava.

Foi um filme que me marcou na infância. Adquiri o mau hábito de olhar a nuca das pessoas, porque quando o vi eu tinha mais ou menos a idade do garoto. Neste saite (http://bit.ly/1dSh3cj) vi uma boa análise do filme, que é melhor ser lida logo após assisti-lo, senão fica difícil de entender, pois vai muito aos detalhes concretos. O crítico, Glenn Erickson, examina com habilidade o teor de pesadelo do filme, mostrando como tudo ali funciona na mente do garoto (o final deixa meio em dúvida se foi tudo um sonho ou não).

A imagem mais forte do filme, para mim, é a da colina por trás da qual se esconde a nave, acompanhada por uma cerca tortuosa e caligaresca. Diz-se que o filme iria ser feito em 3D, e Menzies concebeu a trilha que sobe a colina num jogo de perspectiva em que o trecho parece ter uns dez metros de extensão mas tem o dobro, de modo que uma pessoa quando a percorre parece levar mais tempo e diminuir de tamanho mais do que seria normal. O uso dos espaços (portas com 3 metros de altura!) e as pessoas que desaparecem afundando na areia (como em outro clássico, The Mole People, 1956) são mais impressionantes do que os efeitos especiais dos “monstros marcianos”, dos quais apenas uma imagem tornou-se famosa, a cabeça com tentáculos verdes dentro de uma espécie de aquário.

É um dos bons filmes da FC paranóica da Guerra Fria, usando com habilidade o clichê do “garoto que é o único a saber a verdade mas ninguém lhe dá ouvidos”. Como era de praxe na época, cabe ao exército americano enfrentar os invasores com tanques e granadas. A parte científica é risível – em 1953, o cinema estava no nível científico das revistas de pulp fiction de 1920, se tanto. Mas o tom kafkeano serviu de modelo para filmes posteriores como Invasion of the Body Snatchers de Don Siegel (1956).


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

3388) Melodrama de ação (5.1.2014)



Melodrama de ação é toda narrativa baseada na aventura com ação física intensa, variada, exibicionistamente descrita. Por ação física entenda-se brigas individuais e batalhas coletivas, perseguições, fugas, travessia de lugares perigosos, condução de veículos em situações desfavoráveis, enfrentamentos com feras ou com flagelos da natureza... 

Ninguém captura isto tão bem quanto o cinema, e querer que não haja filmes de ação é bobagem de intelectuais desocupados. (O que, aliás, é um oxímoro. Todo verdadeiro intelectual tem sempre o que fazer, ao invés de ficar implicando com bobagens.)

O termo melodrama designava um tipo de teatro musicado (“melo” = música) que ficou associado a histórias implausíveis, com perigos exagerados, sentimentalismo, personagens “de papelão”, histórias cheias de improbabilidades, coincidências, fatalismos, sem preocupação de verossimilhança, e pretendendo apenas produzir sensações fortes, dar sustos, criar suspense... 

Uma boa sátira ao melodrama é o conto “A chinela turca” de Machado de Assis.

O melodrama tradicional é do tempo do romance folhetim (que redundou nas telenovelas e nas séries de TV, com sua estrutura de finais em suspenso) e do teatro de Grand Guignol, com sua violência gráfica, explícita, hoje transposta para filmes B de terror, “gory”, “slash”. 

Eu diria que o melodrama de ação mais importante de hoje é o filme de super heróis, e que os efeitos especiais cumprem uma função parecida com a que a música orquestral cumpria naquele teatro de 150 anos atrás.

O filme de super heróis é um melodrama onde tudo está subordinado à ação: roteiro, interpretação, direção. Movimentação incessante, destruição reiterada de objetos e cenários, e um plot que se limita a, mediante situações psicológicas extremas (vinganças, ódios, crueldades, ambições desmedidas, presença de vilões megalomaníacos) justificar ações extremas onde a violência está sempre pronta para explodir. 

Algumas características do gênero: 

1) o herói Doppelganger (homem pacato x justiceiro, duas pessoas que são uma só); 

2) uma galeria de vilões com traços inconfundíveis, grotescos; 

3) ação hipérbólica (não basta que dois personagens briguem, a briga precisa destruir um quarteirão inteiro); 

4) soluções mágicas para impasses dramatúrgicos (enredos tipo “com-um-puxão-Jack-partiu-as-cordas-que-o-aprisionavam”, segundo Peter Nicholls); 

5) cenas de 2ª. unidade obrigatórias (o estúdio exige cenas específicas para ocupar técnicos e laboratórios caríssimos); 

6) emoções grandiloquentes e vulcânicas engastadas num tecido de irrelevância, onde a platéia imatura possa aconchegar-se à idéia de que “é tudo brincadeirinha”.







sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

3387) A caverna de Herzog (4.1.2014)



Werner Herzog levou uma miniequipe de filmagem às cavernas de Chauvet, descobertas em 1994 na França, com um dos maiores tesouros de pinturas rupestres do mundo. Bisões volumosos, ameaçadores. Rinocerontes com chifres longos e agudos. Cavalos superpostos em fila, com crinas, olhos, boca, tudo individualizado. Impressões da mão inteira de um indivíduo com um dedo torto. O desenho perturbador da genitália de uma mulher de pernas abertas, que se funde à imagem de um bisão, tudo isto gravado numa saliência fálica da pedra. Cavalos picasseanos pintados há milhares de anos e cobertos de riscos de unhas feitos por ursos, milhares de anos depois. Os “graffiti” mais antigos de Chauvet são de 32 mil anos atrás, e os cientistas veem hoje, lado a lado, imagens feitas por homens com milhares de anos de intervalo entre um e outro, numa parceria de obras de arte superpostas por cima do “abismo do tempo”, como comenta o diretor com sua voz rouca.

Em Chauvet, a equipe de Herzog fez uma visita inicial de uma hora, e depois de uma semana com quatro horas diárias. A caverna, que tem 400m de extensão, é fechada ao público; somente os cientistas têm acesso.  A equipe de filmagem anda pelo mesmo caminho percorrido pelos arqueólogos: uma passarela de metal alguns centímetros acima do chão, que avança caverna adentro, e foi construída nos primeiros anos de exploração para reduzir ao mínimo o contato físico dos raros visitantes com o chão e as paredes. É proibido tocar em qualquer coisa. A situação lembra o conto de Ray Bradbury, “Um som de trovão”, em que os viajantes-no-Tempo que voltam ao passado percorrem uma passarela idêntica, sem tocar em nada para não correr o risco de, com a morte de um simples inseto, desencadear o chamado “Efeito Borboleta” e influir no futuro.

A caverna dos sonhos esquecidos (2010) passou nos cinemas numa versão 3D que lamento não ter visto; dá para ver agora no YouTube (http://bit.ly/1eqXYi7), pelo menos para aguçar a vontade de ver o filme de verdade. Herzog, quando vira documentarista, mantém a alma e os recursos de um autor de ficção. As situações que escolhe em seus filmes são sempre inusitadas; ele as filma com simplicidade e riqueza de nuances, e os comentários verbais que superpõe às imagens são comentários de um escritor e pensador. A caverna dos sonhos esquecidos termina, bem ao seu estilo, com uma meditação sobre o futuro dos jacarés albinos criados nas águas quentes de uma usina nuclear, a poucos quilômetros da caverna. Os surrealistas de Breton não poderiam imaginar uma imagem mais poderosa sobre a sucessão dos reinos animais sobre a Natureza.

3386) "Dicionário do Nordeste" (3.1.2014)




Tenho aqui do lado um tijolaço com mais de 700 páginas, o Dicionário do Nordeste de Fred Navarro, autor do famoso Assim falava Lampião, um dicionário de termos nordestinos que é de certa forma o embrião deste.  O livro é editado pela CEPE (Companhia Editora de Pernambuco), e faz uma coleta impressionante de termos ligados ao Nordeste: geografia, culinária, cultura em geral, e, claro, a linguagem nordestinense. É um livro utilíssimo para presentear os amigos não-nordestinos que vivem nos perguntando o significado de palavras óbvias como guenzo, sulanca, quebra-queixo, bacafuzada, corrimboque, lamborada, xeleléu, califom, aboticar, berimbela...

Sou suspeito ou insuspeito para falar, porque escrevi a “Apresentação” do livro, onde desenvolvo outros raciocínios; mas queria me deter em alguns detalhes. O primeiro é o fato de que todo mundo tem o impulso de registrar aquela linguagem que sabemos pertencer apenas de maneira indireta ao português-brasileiro. Tenho dicionários de baianês, de cearense, da ilha (=Florianópolis)... Em toda região existe um glossário interno que funciona para os habitantes do lugar e que muitas vezes não é captado por um Aurélio ou um Houaiss. Daí a vontade de cada um fazer o seu dicionário. (Eu próprio venho montando um há décadas, mas agora só publico quando estiver maior do que o de Fred Navarro.)

Quanto à abrangência basta dizer que o livro registra, corretamente definidos, termos como “trezeano” e “raposeiro”. Ele se expande na direção da culinária anotando termos como molho baiano, laranjinha, mariola, mingau de cachorro... Em brincadeiras infantis há palavras como durim-pampam, peido de velha, bacondê, escorrega-bunda, barra-bandeira... Na flora, vejo ao acaso galinha-choca, caroá, fumo-bravo-do-ceará, mucuri, língua-de-vaca, dona-joana... Na fauna, há termos como percevejo-de-comércio, pitangá, lagarta-de-fogo, mutum-de-alagoas...

Um detalhe curioso é a grafia das palavras. A grande maioria pertence à cultura oral, não foi ainda crismada pelos gramáticos. As referências escritas são em geral de obras literárias, mas isto não adianta muito, porque como são palavras bravias cada autor escreve como lhe dá na telha. Isso nos desnorteia às vezes para achar um termo, que está redigido de uma maneira que não esperamos. Um aspecto positivo é a disposição do autor em registrar não apenas palavras, mas expressões idiomáticas, pequenos provérbios, modos de dizer. Duvido que num Caldas Aulete a gente encontre comer no centro, quem não pode com o pote não pega na rodilha, meter-se a cavalo do cão, fazer cerca-lourenço, mais vale estrada velha que vereda nova...