sábado, 24 de novembro de 2012

3039) O samba e o baião (24.11.2012)



(Donga)


A industrialização musical cria modelos e processos. Tudo que não for feito de acordo com o processo e que não fique parecido com o modelo soa como coisa falsa, e muitas vezes é uma coisa mais verdadeira, “the real thing”. 

Crianças que tomam água de coco em caixinhas longa-vida tomam susto ao ver um coco de verdade ser aberto. 

Espectadores veem um grupo numa praça fazendo teatro de rua, e perguntam “onde está o teatro”. 

Algo parecido acontece na música. O disco criou um formato padrão de canção popular, imposto a ferro e fogo durante um século; e pensamos que só é canção se for assim.

Nos anos 1940, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira começaram a escrever baiões que eram gravados com grande sucesso. O sanfoneiro de Exu lembrou uma toada que ouvia desde a infância, um pedacinho melódico muito simples, com versinhos soltos e saudosos sobre uma ave que foge do sertão por causa da seca. Cantarolou esses farrapos de música para Humberto, e logo os dois deram uma formatada final na melodia, que o letrista cobriu com estrofes simétricas. 

“Asa Branca” é esse produto híbrido entre pedaços de cantiga anônima e elementos novos, eruditos. Um verso como “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação” não é verso da tradição oral, é verso feito de caneta por um leitor de José de Alencar.

Algo parecido ocorreu com “Pelo telefone”, o primeiro samba gravado em disco, em 1917, e assinado por Donga.  

Assinado é bem o termo, porque Donga fez um apanhado de refrões, chamadas e batuques que eram cantados nas festas da casa de Tia Ciata, na “Pequena África” do Rio de Janeiro. 

Em seu livro Feitiço Decente Carlos Sandroni analisa em detalhe essa colcha de retalhos de toadas, e o modo como ela foi alinhavada às pressas para se enquadrar nos limites de tempo de uma gravação fonográfica. “Pelo telefone” gerou numerosas polêmicas, não só de autoria, mas também quanto ao fato de ser ou não o primeiro samba gravado. (Esta discussão está no saite Cifrantiga: http://bit.ly/10dgwwO).

A criação musical popular é solta, mutante, indisciplinada. Na cultura oral, todo mundo mexe nas músicas, tira e põe versos, muda o que não gosta ou o que não lembra.  

Já a indústria cultural precisa de critérios nítidos: tamanho fixo e formato fixo para as obras, autoria inequívoca, registro, e depois do registro ninguém mexe mais. Voz no vinil, cifra na partitura, letra no livro: a indústria precisa disso para uniformizar seus produtos. 

Cultura oral e indústria sempre trabalharam com conceitos opostos. É curioso que agora a Cultura Digital começa a arrastar esses conceitos para longe da indústria e para perto da cultura oral antiga.







sexta-feira, 23 de novembro de 2012

3038) O Diário de Dilma (23.11.2012)



(ilustração: Caco Galhardo)


A revista Piauí tem uma página intitulada “O Diário de Dilma”, um pseudo-diário atribuído à presidenta Dilma Roussef. A gente tem o direito de achar que está numa democracia quando alguém ridiculariza o mandachuva do país e não é preso. O “Diário de Dilma” não ridiculariza a presidenta, até pelo irrealismo da proposta, mas faz uma engraçada justaposição entre o pessoa real e a personagem literária, uma perua sempre preocupada com o penteado, o vestido, a decoração; que reduz às mais terrificantes banalidades alguns episódios sérios do momento; que suspira de langor por um embaixador bonitão, ou por um ministro cujo charme a conduz a devaneios. A revista atribui o “Diário” ao jornalista Renato Terra, mas, como também o atribui, em primeiro lugar, à própria presidenta, uma coisa relativiza a outra, e talvez o texto não seja produto de nenhum dos dois.  Talvez o seu redator seja alguém insuspeito e improvável.

O “Diário” de outubro (na Piauí de novembro) vem sob o título “Malandro é o curupira, que só faz gol de calcanhar”.  É a reta final da campanha eleitoral, e “Dilma” comenta: “Tô cheia de usar vermelho por causa desses comícios! Encomendei uns blazers bacanas de verão, laranja, azul Klein, rosa-choque, mas o Lula insiste em me botar de vermelho.  Pareço um tomate”. No dia 4, após o primeiro debate entre Barack Obama e Mitt Romney, ela anota: “A Ideli não confessa, mas é louca pelo Romney. Cada vez que a tevê dá um close naquele queixo talhado a buril, ela dá uma tremelicada. É sutil mas eu percebo”.

Parece os diários das adolescentes que leem Thalita Rebouças. Em 5 de outubro ela se queixa: “Sabe onde me enfiaram agora? Na exposição de um tal de Caravaggio. Legal até, mas o povão está interessado nisso? Tive de fazer biquinho e cara de raciocínio, o que é péssimo para as comissuras. Vou mandar a conta do refil do botox para a União e não quero nem saber”.  No dia 17, ela fica matutando: “Tadinho do Zé Dirceu. Será que tem consulado do Equador aqui em São Paulo?”. Fica ansiosa para saber quem matou Max na novela Avenida Brasil, manda a Abin investigar, recebe a resposta e, na véspera de um comício na Bahia, diz que “dependendo do clima, incendeio a militância revelando o nome ali mesmo”.

O “Diário de Dilma” funciona um pouco como aquelas canções de Juca Chaves satirizando o governo Juscelino (eita, fui longe agora – talvez só eu e Dilma lembremos essa época!). É uma leitura galhofeira de fatos reais, e a verdade é que nada reafirma tanto a solidez de um regime quanto a magnanimidade com que tolera (quem sabe até financia) a atividade dos que o submetem à caricatura.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

3037) Dicas de escritores (22.11.2012)



Sou leitor desses decálogos e mandamentos de escritores sobre como escrever. Em geral são escritos no imperativo:  ”faça isso, não faça aquilo, procure fazer assim, jamais faça assado”.  Tudo isso deveria ser escrito na primeira pessoa: “eu faço isso, eu não faço aquilo, eu procuro fazer assim, eu jamais faço assado”.  Não importa se o autor é William Faulkner ou John Updike. Na grande maioria dos casos um bom autor só consegue ser ele mesmo. Ele sabe fazer, sabe como o consegue, e passa a informação adiante. Nada obriga essa descoberta dele a ser útil para mim, ou para Fulano. Mas é sempre lucrativo aprender como funcionam os processos criativos alheios.


Os grandes autores (profissionais, consagrados, com dezenas de títulos, milhões de livros vendidos, com prêmios e honrarias, poder, credibilidade) concentram todas as suas forças criativas na própria literatura, o que, em termos práticos, isso significa sua própria maneira idiossincrática de praticar a literatura.  Fazem isso a tal ponto que muitas vezes parece não haver espaço, neles, para admirar a literatura alheia, ou pelo menos a literatura alheia que é diferente da sua.

Decálogos sobre “como escrever” parecem decálogos de etiqueta sobre “como se comportar em público”.  É impossível universalizar tais instruções, porque o que funciona num local e num momento não funciona no outro. Mas cada conselho “faça isso, não faça aquilo” exprime verdades construídas na prática, e em grande parte dos casos eles nos ajudam a entender melhor nossos próprios defeitos, e construir nosso próprio método de trabalho.

Muitos autores acordam e escrevem durante duas horas, sem parar, antes do café da manhã. “É o melhor momento”, dizem; “a mente está a mil”. Agradeço sempre a informação, mas de nada me vale, como de nada valeria eu explicar a eles que estas linhas estão sendo redigidas às 04:19 da madrugada – e não estou pensando em ir dormir nem tão cedo. Há quem prefira escrever à mão num caderno, há quem prefira ditar, há quem escreva poesia com o polegar num tecladinho luminoso. Caneta Bic ou Mont Blanc, Parker 51 ou Futura? Máquina Olivetti ou máquina Remington (são tão diferentes quanto um PC e um Mac)? No calor ou no frio? Trancafiado a sós ou no alarido de um café?

O conselho é realmente útil quando vem de alguém com uma combinação de cacoetes, talentos ou inabilidades parecida com a nossa. Às vezes um conselho bobo (“não use a primeira pessoa, nunca”, “escreva no presente do indicativo, não no passado do verbo”, “prepare resumos do que vai fazer em seguida”) salva a carreira de um sujeito e de nada adianta para outro.



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

3036) A Vida e os Tempos de Zeca Tattoo (21.11.2012)




(by Jim Burns)


Cap. 1 – De como José Ribamar Marinho foi criado num cortiço perto da Rua do Riachuelo, pai frentista, mãe doceira, irmãos eternamente gripados, cerveja no refrigerador, infiltração na cozinha, morcegos nas cumeeiras, dez rádios e dez TVs competindo em decibéis, odores orgânicos onipresentes, varal de roupas secando na sala, ladrilho solto no quarto onde ele guardava seus dinheirinhos até o dia em que a irmã pequena achou e rasgou sem saber o que era, e do portão para fora a Cidade se espalhando, campo de batalha, parque de diversões.

Cap. 2 – De como nas escolas públicas José Ribamar aprendeu a ler, escrever, fazer contas, colar na prova, dar dedadas, fumar no banheiro, quando brigar, quando correr, quando apelar para as autoridades. 

Cap. 3 – De como José Ribamar arrumou um bico numa oficina mecânica onde descobriu a importância de chegar na hora, a necessidade de ficar calado ao ouvir um esbregue, e a magia das máquinas e das mulheres só de calcinha.

Cap. 4 – De como José Ribamar num piscar de olhos tinha barba, pelo no peito, carteira assinada, uma coleção de HQs empilhada em cima do armário, e rachava com o pai o prejuízo da prole. 

Cap. 5 – De como José Ribamar, no consertar de motos alheias, deixou-se cooptar por metaleiros que agiam perto da Praça da Cruz Vermelha e desse dia em diante não tirou mais dos ouvidos o iPod que ganhou por um conserto de emergência em tempo recorde, e por onde recebia injeções maciças de trash metal, zombie metal, hellfire metal, meth metal e outras persuasões ritualísticas que tímpanos incréus seriam incapazes de distinguir umas das outras.

Cap. 6 – De como o mundo renasceu por inteiro aos olhos de José Ribamar quando dois amigos o levaram a um tatuador que lhe aplicou no bíceps, num demorado orgasmo sustentado a fumo, a imagem de um urso barbudo de punhal nos dentes pilotando um jet-pack flamejante em volta da Torre Eiffel.

Cap. 7 -  De como a partir desse dia Zeca Tattoo (pois este passou a ser o seu nome) transformou sua pele em seu diário, e gravou para sempre ali os fatos cruciais de sua vida e de suas circunstâncias, a briga de faca no bar de Berg, a primeira noite fazendo Baby Jean gemer, a colisão que explodiu três membros da tribo, a morte do pai, o título do Mengão, o apendicite que quase o leva, o primeiro filho, a eleição de Obama, o dia em que zerou Call of Duty, o incêndio do cortiço e as onze vidas que salvou, a noite em que tomou um ácido pra ver um eclipse da Lua e viu montanhas parindo, arranha-céus mastigando estrelas com as janelas, nuvens gotejando uma vodka pegajosa e açucarada, e em volta da Lua a boca de Baby Jean dizendo vem com tudo, vem.



terça-feira, 20 de novembro de 2012

3035) Prisão perpétua (20.11.2012)



(foto: Tim Gruber)


Ser condenado à prisão perpétua soa como um final feliz, ou pelo menos como um mal menor, um alívio, para um sujeito que, num país como os EUA, esteve perto de ser condenado à morte. Só que prisão perpétua não existe, visto que não existe vida perpétua. Os que recebem esta pena são condenados, na verdade, a um envelhecimento vagaroso, a perder de vista, dentro das paredes de uma prisão. Imagine um sujeito de 35 anos que cometeu um crime e foi condenado à prisão perpétua. Se tem a sorte de ir para uma prisão mediana, há uma boa possibilidade de que ele chegue aos 85 anos. O que acontece, então?

Falei em prisão mediana porque esse problema é mais presente nos EUA do que no Brasil.  Aqui, depois de 30 anos o cara é solto, mesmo que tenha sido condenado a 458 anos, como acontece às vezes pela soma das penas. Se no Brasil houvesse prisão perpétua, não duvido que a maioria seria jogada dentro de um porão, fechavam a porta do alçapão e botavam um arquivo morto em cima.  A próxima pessoa a ver aqueles detentos seriam os arqueólogos de 2300.

Há aqui (http://bit.ly/QRw575) uma matéria arrepiante de James Ridgeway sobre prisioneiros senis em cadeias norte-americanas. O próprio jornalista tem 75 anos e diz que isto facilitou seu acesso aos presos. A reportagem traz histórias de presos com Parkinson ou Alzheimer, sendo cuidados pelos companheiros de cela (banho, asseio, alimentação, etc.) porque ninguém lhes dá atenção. Outros presos idosos, ainda capazes de se locomover sozinhos, sofrem na hora do bandejão ou do banho de sol, porque são escorraçados pelos jovens e nunca conseguem o que precisam.

Em 1981, havia 8 mil prisioneiros com mais de 55 anos nas cadeias dos EUA. Em 2010 eram 125 mil, e em 2030 a projeção é de 400 mil. Isto se deve a uma combinação de sentenças mais pesadas e expectativa de vida (remédios, etc.) maior. Ridgeway argumenta que prisioneiros liberados após os 50 anos só voltam a ser presos em 2% dos casos. Um estudo acompanhou 469 presos por crimes violentos que foram libertados depois de ficarem velhos; nos 13 anos seguintes, apenas 18 voltaram à cadeia, e somente 1 por crime violento. Aliás, o custo de um prisioneiro idoso é de US$ 68 mil por ano, o dobro do que custa um preso jovem.

Estabelecer um limite máximo de encarceramento, como no Brasil, talvez seja simplesmente estar mudando o problema de lugar, mas se existe uma chance razoável de um sujeito, depois de 30 anos de cadeia, voltar a se integrar à sociedade civil, essa chance deve pesar nas escolhas.  Mas isto são problemas de país civilizado. Aqui no Brasil, a Lei joga os criminosos num porão e deixa que a Natureza se encarregue do resto.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

3034) Emmanuelle (18.11.2012)





Faleceu aos 60 anos, em outubro, a atriz Sylvia Kristel, a Emmanuelle dos filmes eróticos mais famosos da década de 1970. Estava envelhecida e cansada após uma luta de dez anos contra o câncer.  A imagem que fica é a da mulher esguia, elegante, frágil, sensualmente passiva, que nos filmes de Just Jaeckin se submetia a lições de erotismo ministradas por um homem mais velho, as quais incluíam ser levada a um antro de ópio e oferecida aos homens de lá.  Emmanuelle fez sucesso reproduzindo a pornografia tradicional numa narrativa não limitada às cenas de sexo, e com um revestimento sofisticado e cosmopolita, para tentar reduzir a vulgaridade e a brutalidade associadas ao gênero, principalmente pelas mulheres.  O conceito de pornografia soft tentava somar dois públicos, o de pessoas ansiosas para ver sexo explícito na tela do cinema e o de pessoas que só admitia ver esses filmes se embalados num celofane chic de paisagens, ambientes ricos, diálogos vagamente existenciais, etc.

O obituário do The Economist lembra que as cenas de sexo de Kristel eram quase sempre em “flou”, diluídas visualmente por cortinados, vapor dágua, etc., e que a mãe da atriz, quando finalmente conseguiu ver o filme que fez a fama da filha, perguntou: “Mas era só isso?”.  O mesmo texto lembra que o filme foi proibido em alguns países: Brasil, Espanha, Japão e o mundo árabe. As várias continuações que o filme teve (inclusive na TV) foram, pelo que me lembro, diluindo em banalidade a proposta inicial.

Um dos grandes problemas da narrativa erótica (romance, cinema, etc.) sempre foi o modo de abordar e conquistar o público feminino. A pornografia tradicional tem por lei ir direto aos finalmentes, ao intercurso sexual nu e cru, sem preliminares, sem preparativos, sem fricotes.  Nos cinemas pornô, se um casal no filme passar um minuto conversando alguém protesta logo: “Bora, rapaz! Quero ver serviço!”  A lógica do espectador é que pagou para ver aquilo que não vê nos outros filmes.  Pra ver gente conversando ele não precisa ir naquele cinema.

Já as mulheres são capazes de aceitar até cenas bastante “hardcore”, desde que haja preliminares, e que o sexo pelo menos pareça associado a um tipo mais amplo de envolvimento, e não se limite à mecânica brutal das genitálias. O sucesso de 50 Tons de Cinza, escrito aliás por uma mulher, é um passo à frente na consolidação de um dos gêneros de mais futuro no mercado: pornografia explícita feita para mulheres, revestida dos álibis necessários e partindo daí para explorar fetichismo, sadomasoquismo e tudo o mais. Emmanuelle paira sobre todas essas alcovas literárias e cinematográficas.


sábado, 17 de novembro de 2012

3033) A família (17.11.2012)





Estou acompanhando, como já falei aqui, a série de TV Breaking Bad, da TV a cabo. Foi criada por Vince Gilligan, um dos responsáveis por Arquivo X, outra das poucas séries que cheguei a acompanhar. “BB” é a história de Walter White, um professor de química que aos 50 anos descobre que está com câncer e talvez tenha um ano de vida.  Walter se apavora, menos por si do que pela família.  A esposa, Skyler, trabalhou como contadora e pensa numa carreira literária; logo ela descobre que está grávida. O filho de 15 anos, Walt Jr., tem uma forma atenuada de paralisia cerebral, e anda com ajuda de muletas. É esperto, entende tudo, mas precisa de cuidados especiais.  O que será da família, quando Walter morrer e deixar de ser o seu provedor?  Walter decide fabricar metanfetamina, que ele (um nerd CDF até não poder mais) consegue fazer com 99% de pureza química. Ele dá um banho na concorrência e em pouco tempo açambarca o mercado do sudoeste dos EUA, perto da fronteira com o México.

Para salvar a família, Walter cria uma escalada de crimes, violência, tráfico, com uma tragédia pessoal se sucedendo a outra.  É uma dessas histórias onde as boas notícias são somente que alguém escapou de uma emboscada ou que um chefão do tráfico fez uma proposta milionária pelos serviços científicos do “químico nota 10”.  Walter e a mulher ficam num separa-volta-separa que não tem fim, e ele sempre dizendo que tudo que faz (ela vem a saber de parte da verdade, lá adiante) é para proteger a família.  E ela uma vez lhe diz: “Pois eu estou aqui para proteger a família desse homem que quer protegê-la”.

Obama, Romney, tantos. Toda campanha norte-americana tem que pedir a bênção no altar de Santa Família, aquilo que Stálin chamava “a célula-mater da sociedade”. Que neste sentido tanto faz ser comunista, capitalista, democrática ou mafiosa.  Brincando com a palavra MÁFIA encontrei o anagrama FAMIA, que só faz sentido no Nordeste. A família é um grupo a quem você deve uma fidelidade religiosa, robótica, inquestionável. Obama disse no discurso de vitória, referindo-se à população: “Nós somos uma família americana, e nos ergueremos juntos ou tombaremos juntos, como uma só nação ou uma só pessoa”. 

Para salvar sua família, Walter White é capaz de crimes arrepiantes, ainda mais quando, às vezes, se baseiam apenas numa omissão mais maquiavélica do que qualquer ação. Sua família é mantida sólida e aparentemente feliz às custas da destruição da família ou da pessoa física de quem quer que se atravesse na sua frente.  O rosto careca de Walter e seu cavanhaque mefistofélico parecem estar dizendo a quem se atravessa na sua frente: “This is America”.



sexta-feira, 16 de novembro de 2012

3032) Luiz Wanderley (16.11.2012)





Seguindo uma dica de Gerdal José de Paula, incansável pesquisador da MPB, relembrei as canções de Luiz Wanderley (1931-1993), um dos forrozeiros que fizeram sucesso na minha infância e adolescência, e depois foram esquecidos (inclusive por mim). Wanderley era alagoano, e quem não ligou o nome à pessoa deve lembrar de um dos maiores sucessos dele, principalmente na voz de Tim Maia: “Coroné Antonio Bento” (com João do Vale). O link fornecid0 por Gerdal (http://bit.ly/XBLGhF) é da gravação original da música, em que a noiva se chama Mariá (e não Juliana), e há mais uma estrofe, que Tim Maia não cantou: “Meia-noite o Bené se enfezou/e tocou um tal de rock and roll /os matutos caíram no salão/não quiseram mais xote nem baião/e que briga se falasse em xaxado/foi aí que eu vi que no sertão/também tem uns matutos transviados."

LW fazia parte da linha litorânea e coquista da música nordestina; era mais Jackson do que Gonzagão. Suas cantigas têm ritmo seguro e marcado, versos de embolada, breques bem quebrados, melodia ágil e variada que sua voz segura e melódica valoriza.  “Saudade de Leopoldina”, “Ai que vontade de comer goiaba”, “Bode cheiroso”, “Coco do Gogó da Ema”, “Baiano burro nasce morto” (“O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto / baiano burro garanto que nasce morto”. Esta última canção serviu de modelo para “Mineiro sabido” (1960); este clip de chanchada dá uma idéia do jeito mungangueiro de Wanderley (http://bit.ly/UEOrs7).

Os anos 1960 viram a pororoca gigantesca entre o baião, que predominava em nossas rádios, e a invasão do rock norte-americano. Uma canção como “Rock do Sedaka” (que atribui a invenção do rock a Neil Sedaka!) é uma sátira divertida dessa época (como já era “Coroné Antonio Bento”), inclusive com piadas para “Elvis Prego” (http://bit.ly/W5EkOj). Veja-se também “Carolina”, talvez uma resposta brasileira ao “Corrina, Corrina” que Ray Peterson tornou famosa em 1960 (http://bit.ly/QEcU55). 

Grande parte do parentesco melódico entre o rock e a música nordestina (coco, baião) veio dessa época em que as duas se misturaram no mercado fonográfico e radiofônico do Rio, atacado ao mesmo tempo, em dois flancos desguarnecidos, pelo Nordeste e pelos EUA. Raul Seixas, Alceu Valença, etc. insistem nessa identidade profunda entre as duas. Sinal de que os ritmos populares, rurais, do interior profundo, foram desviados rumo à partitura e ao acetato, pela guitarra, lá, e pela sanfona aqui. Transformados em música urbana, música cantada nas capitais e repercutida em tempo real para os sertões de lá e de cá, são agora a síntese entre a força milenar do interior e a energia moderníssima da cidade.


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

3031) Vamos salvar a Grécia (15.11.2012)




(O Desprezo, de Godard)


Numa entrevista que deu este ano à imprensa, Jean-Luc Godard sugeriu uma solução pouco ortodoxa para a crise econômica da Grécia. Como se sabe, a Grécia entrou para a União Européia como aquelas enormes famílias suburbanas que mal arranjam um dinheirinho vão morar num condomínio de luxo. Eles descobrem que viver num condomínio de luxo é muito bom para os que desfrutam do luxo, mas nem tanto assim para os que pagam o condomínio. A Grécia tem certamente uma elitezinha, uns “aristos” que multiplicaram por dez suas posses e suas contas na Suíça, mas o povo grego está pagando caro pelo sonho de ser rico.

Godard tem uma solução. Ele nos lembra que os gregos nos deram a filosofia, a lógica, o encadeamento conseqüencial de raciocínios e argumentos, e que tudo isto está cristalizado na palavra “logo”, como a usamos em “penso, logo existo”. Esta palavrinha nos permite conectar conclusões do pensamento. E Godard sugere que comecemos a pagar direitos autorais por ela, já que é uma criação do pensamento grego. Vivemos numa sociedade em que é preciso pagar cada vez que utilizamos as palavras ou as idéias de alguém. Então, comecemos pelo começo de tudo – a Grécia Antiga!

Diz Godard: "Se formos obrigados a pagar dez euros à Grécia cada vez que usarmos a palavra 'logo', a crise acabará em um dia, e os gregos não precisarão vender o Partenon aos alemães. Temos no Google a tecnologia para rastrear todos esses 'logos'. Podemos até cobrar das pessoas pelo iPhone. A cada vez que Angela Merkel disser aos gregos 'nós emprestamos todo esse dinheiro a vocês, logo vocês precisam nos pagar de volta com juros', ela será obrigada, logo, a pagar primeiro aos gregos pelos royalties."

Godard é cruel com os algozes e com as vítimas. Ou melhor: ele mostra o quanto este mundo fraturado pelo dinheiro é cruel com ambos. A Alemanha se julga um Monte Olimpo de estabilidade e conforto, e se irrita com a presença física dos migrantes ou com a presença econômica das nações amigas, de pires na mão, pedindo ajuda. Pois é... Por que tanta coisa na nossa civilização é compartilhada gratuitamente, mas em alguns domínios é preciso pagar, pagar, pagar?  E nós, que cultivamos uma coisa metade profissão metade paixão, temos que dizer a toda hora, a todo mundo: Você vai ter que pagar pelos meus livros, meus filmes, minhas canções. Vai ter que pagar pelas minhas idéias, opiniões, críticas, conselhos. Vai pagar pelas minhas perguntas e pelas minhas respostas. Vai pagar pela minha conversa, pela minha companhia, pela minha presença. Vai ter que pagar pelo abraço, pelo beijo, pelo sexo, pelo olhar. Vai pagar assim tão caro, somente pra me ouvir e ver?



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

3030) O verso indelével (14.11.2012)





A religião diz que a alma é uma essência capaz de se anexar a um corpo material e manifestar-se através dele. Isto pode não ser verdade no campo metafísico, mas é mais ou menos o que acontece no campo literário, em níveis sucessivos de complexidade. Veja-se por exemplo o caso de uma obra literária. Ela consiste em um texto, que é a alma, e que pode se traduzir nos “corpos” mais diferentes: um livrinho de bolso, uma edição de luxo, um arquivo PDF guardado num pendraive, um arquivo “.doc” gravado num CD, um folheto de cordel, um disco de vinil com o texto lido em voz alta.  Cada uma destas instâncias físicas é radicalmente diferente das outras, mas todas são capazes de reproduzir, por meios distintos, o objeto linguístico a que chamamos de texto literário (e que pode ser um poema, um conto, um romance, etc.).

Isso não se deve à arte literária em si, e si a algo muito mais básico, a própria estrutura da linguagem. A linguagem consiste em alma e corpo, ou seja, espírito e matéria, ou seja, idéia e palavra.  Nós usamos a palavra “livro”, os ingleses “book”, os franceses “livre”, e assim por diante; e todos esses conjuntos de fonemas falados ou de sinais escritos remetem à mesma idéia abstrata. É incrível que esses sinais consigam evocar em cada pessoa uma idéia equivalente. Acho que só ocorre porque há poucas coisas que a gente pratique tanto quanto a linguagem. Mas... todos concordamos sobre o significado de livro, mesa, garfo, TV, parede; mas quando começamos a discutir palavras mais abstratas (democracia, liberdade, amor, etc.) é que vemos o quanto esses termos são meras convenções, e como às vezes usamos a mesma palavra mas estamos pensando em coisas muito diferentes.

Dias atrás escrevi aqui sobre a permanência da enunciação poética num verso escrito por Drummond, por exemplo. Dias depois, no tablóide literário curitibano Cândido, vi um poema de Alexei Bueno também dedicado ao poeta de Boitempo, onde ele diz: “Mas não, quanta mentira... O que houve um dia / nada o pode anular, nada esvazia / a fôrma do poema, quando o poeta / deixa-a, médium de si, clara e repleta”. 

É a descrição exata do fenômeno linguístico, e do poético, por extensão. O verso escrito é “médium de si” no sentido kardecista do termo. Ele recebe uma alma, e a alma que recebe é a dele mesmo. Enquanto não são lidos, aqueles sinais de tinta na página são um verso morto, sem sentido. O sentido só acontece quando ele é lido. O texto escrito é médium de si mesmo, é mídia de si mesmo, é código de si mesmo, sempre pronto para mais uma reiteração do pequeno milagre eletroquímico que se dá no cérebro quando a gente lê um verso.