quarta-feira, 7 de novembro de 2012

3024) O PCC (7.11.2012)



("Salve Geral")


O PCC, ou Primeiro Comando da Capital, nunca é chamado pelo nome nos telejornais da Globo. É sempre citado como “a facção criminosa que controla os presídios paulistas”, ou algo assim. (Por uma questão de coerência, a TV deveria também referir-se à CBF, por exemplo, como “a organização-com-finalidades-de-lucro que finge administrar o futebol brasileiro”.) Dizem que usar o nome de algo ou alguém significa reconhecer sua existência. Isto é um resíduo curioso do pensamento mágico/supersticioso, das pessoas que dizem “CA” para não atrair o câncer e que em noites de trovoadas não usam a palavra “raio”, usam “faísca”. É o vocabulário do avestruz: se eu não pronuncio o nome, a Coisa não existe.

Não tenho simpatia pelo PCC (nem pela CBF), mas ambos são fenômenos da nossa sociedade, tanto quanto as seitas evangélicas, os partidos políticos e a música tecno-brega. Mesmo sem simpatizar com eles, não podemos fazer de conta que não existem. O blog “Crimes no Brasil” reuniu em 2010 quatro pesquisadores acadêmicos que estudam o PCC e as prisões paulistas, e fez-lhes 16 perguntas, cujas extensas e desconcertantes repostas podem ser lidas aqui: http://bit.ly/9cVtf4. Abaixo, transcrevo alguns trechos.

Camila Nunes Dias (USP): “Antes (do PCC) as regras eram impostas – e quebradas – por líderes individualizados que alcançam essa posição a partir da imposição da violência física, do medo e da ameaça, além da formação de pequenos grupos que se utilizavam dessa superioridade física para dominar os mais fracos. (...) O PCC se constituiu como instância reguladora, de imposição e controle do cumprimento das regras, assim como de punição aos transgressores”.

Karina Biondi (UFSCar): “São muitas as mudanças que ocorreram nas prisões após o nascimento do PCC: diminuição no número de homicídios e das agressões entre prisioneiros, fim do consumo de crack e dos abusos sexuais, não se vende mais espaço na cela, não se troca favor com agentes penitenciários em benefício próprio em detrimento de outros, não se fala palavrões. Mas é importante lembrar que essas mudanças não são frutos de leis, decretos ou imposições. Suas propostas nascem de amplos debates e são expandidas e adotadas paulatina e assistematicamente, não sem resistências e diferenciações na condução dessas políticas”.

O PCC é o surgimento de um novo Contrato Social para extinguir, ou amenizar, a selvageria na prisão. Quando você serra uma barra de ferro imantada, o campo magnético se reorganiza em cada um daqueles pedaços. Onde você isolar uma comunidade humana, ela tenderá a se organizar em novas estruturas de poder, convivência, diálogo, repressão, controle de conflitos.


terça-feira, 6 de novembro de 2012

3023) "Gonzaga de pai pra filho" (6.11.2012)





O filme de Breno Silveira deve ter surpreendido quem esperava uma biografia linear de Luiz Gonzaga, sua vida de A a Z. O roteiro traça uma cronologia razoável da vida de Luiz, mas se concentra em sua relação com o filho Gonzaguinha. Pais ausentes, filhos carentes; um drama antigo, que ganha empatia ao envolver dois grandes artistas. Pai e filho foram o avesso um do outro: o migrante sertanejo que conviveu com políticos e coronéis, e o universitário de esquerda criado no morro. A sanfona e o violão, o forró e a MPB, e o fato de que a ascensão do filho coincidiu com o declínio do pai. Essa inversão das posições de poder deve ter ajudado (o filme sugere isso) esse reencontro (não sem aspereza de parte a parte) entre dois homens adultos, cada qual se julgando injustiçado pelo outro.

O filme funciona na razão direta da credibilidade dos atores. Chambinho do Acordeom talvez não reconstitua certos traços psicológicos de Gonzaga (ele parece ingênuo e juvenil demais, e tenho pra mim que Gonzaga era mais esperto, mais macaco-velho do que o que aparece no filme), mas sua simpatia, seu sorriso e seu carisma evocam sem esforço o Gonzaga desse período. Já Adélio Lima, que faz o Gonzaga idoso, tem uma composição mais profunda e mais complexa. É um homem amargo, irônico, vivido, castigado pela fama e pela incessante batalha. Julio Andrade, por sua vez, é um impressionante clone de Gonzaguinha, reconstituindo seu jeito desengonçado, tenso, nervoso, como uma corda de cavaquinho prestes a saltar.

O filme é um melodrama redondo e firme, comparável ao Dois filhos de Francisco do diretor. É a história da luta pelo sucesso e do valor cobrado pelo imposto do sucesso, que não é menor que o do fracasso.  A narrativa se torna meio confusa no aspecto fonográfico quando acompanha os primeiros anos do estouro nacional do baião, mas acho que só os cronologistas profissionais percebem. O enfoque adotado, de deixar a obra em segundo plano, faz os parceiros de Gonzaga terem uma passagem relâmpago pela tela, mas em compensação o casal Henrique e Dina (os pais adotivos de Gonzaguinha) tem sua importância reconhecida.

O problema de todo melodrama é a busca forçada da emoção. O filme poderia ser mais seco e mais calmo em vários momentos, mas há muitos outros em que o diretor parece achar o tom certo, que sugere uma emoção real. Não é fácil recriar em uma dúzia de cenas a complexidade de uma relação afetiva que se deu durante décadas. Exigir isto de um filme é um pouco como Gonzaguinha tentar trazer para uma fita cassete C-60 a história inteira dos seus pais. O resultado é honesto, simpático, apesar da tarefa impossível que se propõe.


domingo, 4 de novembro de 2012

3022) A voz do poeta (4.11.2012)






Estávamos conversando num grupo de amigos e eu falei: “Drummond diz que mais vasto do que o mundo é o nosso coração”. Um dos presentes corrigiu: “Na verdade ele não ‘diz’ isso. Ele ‘disse’ – no passado, porque Drummond já morreu”.  Deixei passar porque o assunto principal era diferente, e parar para discutir este detalhe iria atrapalhar nosso rastreamento da outra idéia.  Mas essa interferência ficou cavucando no meu juízo.  Por que motivo eu tenho que me referir a um escritor no passado, somente porque ele já morreu?  Porque (não sei se é assim com os outros, mas comigo é) eu faço uma distinção muito clara, na minha mente, entre aquele senhor careca e de óculos chamado Carlos Drummond de Andrade, que nasceu em Itabira e morreu no Rio, e o poeta Drummond, uma entidade metafísica que nasceu e brotou dentro daquele cidadão, produziu grandes livros de poesia, e que continua atuando, no momento presente, cada vez que alguém relê algum daqueles livros ou simplesmente pensa num dos seus versos.

Fala-se que a literatura é uma forma de imortalidade, e eu creio tanto nesta idéia que a estendo por conta própria a toda a palavra escrita ou falada. A palavra é uma enunciação que, uma vez preservada (através da escrita, da imagem filmada, etc.), é capaz de ser re-enunciada infinitas vezes. O ato de escrever e o ato de falar se enovelam sobre si mesmos, reiterando-se num processo sem fim. Quando leio uma frase de Drummond, a enunciação de Drummond está ali, intacta, sendo reativada pelos olhos do milionésimo leitor. Se leio uma carta escrita por meu pai e minha mãe, o momento da escrita, com tudo que ele continha (ou com a parte que a escrita conseguiu preservar), volta a acontecer diante dos meus olhos. Se vejo no YouTube uma entrevista de Fellini ou de Lennon, aquela palavra não é passada, é presente, é um passado instantaneamente conversível em presente vivo, pelo poder combinado da fala e da audição, ou da escrita e da leitura.

Devemos (ou pelo menos podemos, sem medo de dizer bobagem) nos referir aos poetas e escritores no presente, quando os citamos. Quando falo “Rimbaud acha que o poeta tem que ser um vidente”, é porque o homem Arthur Rimbaud já se desmanchou em moléculas, mas o poeta Arthur Rimbaud acaba de dizer isto agora, pelos meus dedos, pela milionésima vez. Rimbaud já morreu, Shakespeare talvez nem tenha escrito os versos dele que citamos, Homero talvez nem tenha existido. Mas quando citamos um deles estamos citando uma entidade lingüística integralmente preservada em si mesma, do modo como o som de uma orquestra inteira está preservada nos sulcos de um vinil ou nos bits-e-bytes de um arquivo digital.



sábado, 3 de novembro de 2012

3021) "Guerra nas Estrelas" (3.11.2012)





Os jornais anunciam que a Disney comprou a LucasFilm por 4 bilhões de dólares, sendo metade em dinheiro e metade em ações da Disney.  Depois das aquisições da Marvel e da Pixar, esta nova avançada da Disney no mercado da FC infanto-juvenil (é onde se enquadra essa barafunda toda) começa a parecer um monopólio. Isto é ruim? É ruim quando decisões estéticas de grande impacto passam a ser tomadas pelo mesmo grupinho de executivos. Tudo pode ficar ainda mais parecido do que já era. Mas é bom, pelo fato de que o desgaste criativo de George Lucas, claríssimo nos filmes mais recentes, estava inviabilizando a série. Nenhum espectador maduro poderia levar a sério filmes tão mecânicos, sem alma, sem coerência narrativa e sem emoção dramatúrgica quanto os últimos que vi, A Ameaça Fantasma e A Revolta dos Clones. (Não, nunca assisti A Vingança dos Sith, espero que alguém me convença de que é o melhor de todos.)

O fato é que Lucas não é um grande diretor. Basta comparar seus três primeiros filmes, que dirigiu entre 1971-1977 (THX-1138, Loucuras de Verão e Star Wars 1: Uma Nova Esperança) com suas três tentativas no seu retorno para retomar a saga entre 1999-2005 (os três citados acima). A diferença de qualidade é espantosa. Os filmes feitos por ele na juventude mostram ousadia, apontam para direções diferentes, têm humor (menos THX, cuja proposta é mostrar um tecno-pesadelo), têm atores trabalhando à vontade. São filmes de um diretor jovem que se descobre cheio de recursos (embora nem sempre) em pleno voo, e isto é um dos aspectos que nos empolga no cinema – ver alguém construindo o próprio automóvel durante a viagem. Já os filmes que Lucas dirigiu entre os 55 e os 61 anos não têm nada desse espírito. São filmes com uma tecnologia espantosa, mas sem vibração, sem “punch” narrativo. Impõem-se pelo mito da saga; porque seduzem os jovens de hoje e fazem cafunés no saudosismo dos jovens de ontem. Mas não são bons filmes. São filmes de um executivo cansado tentando beber na Fonte da própria Juventude.

Lucas sempre me pareceu um bom sujeito, e fiquei muito comovido ao vê-lo dizer anos atrás que tudo que queria no início era fazer filmes de vanguarda, daqueles bem “cabeça”, para passar no circuito universitário. Ao contrário de Spielberg, que tem Hollywood no DNA, Lucas é um nerd introspectivo cujo sucesso precoce o fez desabrochar como executivo e murchar como artista. Star Wars vai renascer? Tomara, porque gosto muito da saga, que me deslumbrou “quando eu era alegre e jovem”. Mas algo me diz que o suspiro de alívio de Lucas ao assinar o contrato de venda deu para se ouvir até na Paraíba.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

3020) O ator Prendergast (2.11.2012)




(W. T. Benda)


Dizer que William Prendergast foi o maior ator britânico de sua geração é um exagero, pois ele brilhou nos palcos londrinos na época de gigantes como Henry Irving.  Não obstante, seu carisma e sua dedicação ao ofício o tornaram uma lenda dos palcos desde sua demolidora estréia em 1870, numa montagem anticonvencional de “The Golem” de Buckhardt, até seu misterioso e controvertido desaparecimento na Suíça, no inverno de 1891.

O detetive Sherlock Holmes, em pessoa, tentou reconstituir o trajeto percorrido por ele em seus últimos dias, mas, premido por outros compromissos, abandonou a investigação. O que ninguém sabe é que na véspera de anunciar esse abandono, Holmes, hospedado no hotel Böcklin, em Meiringen, recebeu um chamado para que batesse à porta da suíte 603, onde foi recebido por uma jovem loura, frágil, com sotaque italiano, diante de uma mesa posta para o chá.

“Desculpe-me este incômodo, Mr. Homes”, disse ela, “mas tenho uma mensagem urgente para lhe transmitir. Sua experiência profissional, por certo, já exigiu que o sr. se disfarçasse em outras pessoas, não é verdade?”. Holmes assentiu, e ela continuou: “A arte do ator consiste em dar tudo de si para a criação de um personagem. É um fenômeno que prova o domínio do espírito sobre a matéria, a força que tem a mente humana para se impor ao corpo que a mantém”. Pousando a xícara, a moça prosseguiu: “Desde o início da minha carreira, decidi que todas as minhas energias seriam dedicadas a dar forma viva e veraz aos personagens que me cabia recriar. Dar-lhes não apenas corpo e alma, mas substância, matéria”.

Holmes ergueu os olhos. Diante dele, a silhueta esguia da jovem ia sendo substituída por um vulto encorpado, e o vestido branco perdia o brilho e a forma, enovelava-se sobre si mesmo em algo como um terno marrom. O detetive fitou então o rosto quadrado de William Prendergast, viu-lhe a pele suada, os olhos febris. “O problema”, disse a voz profunda do ator, “é que esse processo, uma vez desencadeado, não se pode deter. Os personagens brotam de dentro, não de fora, e uma vez aberta a porteira, nada os contém”. A visão de Holmes se turvou diante daquela sucessão de vultos que surgiam à sua frente e se fundiam no próximo: um padre irlandês, um cavaleiro medieval, um ilhéu de Samoa, uma governanta, um adolescente atormentado...

Na portaria do hotel, os atendentes não perceberam que o detetive Sherlock Holmes saiu duas vezes seguidas naquela tarde. Na primeira, com toda sua bagagem, seguiu rumo à estação ferroviária, e duas horas depois saiu novamente, chamou um tílburi e ordenou que seguisse para o desfiladeiro de Reichenbach Falls.



quinta-feira, 1 de novembro de 2012

3019) Nos acréscimos (1.11.2012)




O conceito de “instante precioso” varia de pessoa para pessoa. Eu guardo o sorriso de minha mulher acordando, o choro do meu filho nascendo, uma noite de festa com fogos coloridos no céu e flocos de neve caindo, o bis da melhor canção do melhor show da melhor banda de rock do mundo... Não posso criticar o que outras pessoas escolhem para gravar para sempre no cérebro com um tiro de nanomáquinas. 

Os vizinhos bateram à minha porta na hora de começar a final da Copa no Maracanã, “sai daí, bicho do mato, eremita nerd, é hoje o dia da alegria, Braziu-ziu-ziu!”. Não deixam transparecer, mas devem ter pena de um viúvo tão jovem, que não se queixa do Destino nem do país, que vive em casa sozinho conversando com livros e plantas. Subi para a cobertura, cheia de gente que ria e gritava, a varanda embandeirada, de lá víamos os edifícios da Lagoa explodindo em foguetões e confetes verde-amarelos, o sol afogueava tudo, a TV de plasma se alargava num Maracanã por si só. Eles estavam felizes, eram generosos, e queriam que um pouco daquela felicidade tocasse em mim. Abracei todo mundo, bebi quando beberam, cantei quando cantaram.

Na hora do pênalti a casa veio abaixo, cem pessoas pulavam abraçadas até quase bater no teto, finalmente o gol iria sair, e já nos minutos de acréscimo. Catimba, preparativos, e quando o juiz limpou a área todos meteram a mão no bolso, puxaram o spray nasal. Cada um borrifou o jato de nanoquímicos que gravaria para sempre o conjunto das impressões físicas e mentais dos próximos 60, 90 segundos... “Um instante de beleza é uma alegria eterna”, repetia o estribilho da propaganda; ao borrifar, murmuraram a senha auditiva com que resgatariam aquele momento mais feliz de todos.

Não fiz como eles. Apenas bebi um gole maior de cerveja antes de ver o que milhões viram e reverão milhões de vezes, a corrida para a bola, o chute violento na trave, a zaga adversária rebatendo no susto para o meio de campo, o atacante escapando arisco, nossa defesa atônita e mal postada, a infiltração veloz, a bola morrendo na rede. Pragas. Imprecações. Gritos de revolta. E um silêncio pior do que tudo.

Abalado, imaginei quantas vezes eles iriam reviver aquela tragédia-grega-em-1-minuto. Pois é, não caí na tentação do “para sempre”, porque já caíra antes. O que guardamos para sempre serve apenas para esgarçar ainda mais o tecido fino do tempo. Sei que eles serão escravos de si mesmos, e no futuro reviverão, mil vezes, esse momento do novo maior trauma nacional – só para poderem reviver, com ele, aqueles segundos iniciais da última esperança coletiva que este país sentiu, e que mais uma vez desperdiçou.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

3018) Como prever terremotos (31.10.2012)





Cientistas italianos foram condenados por não terem sido capazes de prever com segurança, em 2009, um terremoto que matou quase 300 pessoas, na cidade de L’Aquila. Os cientistas eram membros da Comissão Nacional para Previsão e Prevenção de Grandes Riscos, e incluía pessoas ligadas às áreas de sismologia e vulcanologia. A sentença alegou que eles deram declarações contraditórias quanto à possibilidade de que, depois que ocorreram alguns pequenos tremores, viesse um terremoto maior. Sem um alerta formal, a população ficou em casa, e muita gente morreu. Foi o maior terremoto ocorrido na Itália desde 1980.

O caso estava em julgamento desde então, e a sentença de condenação (da qual os advogados, claro, já recorreram) provocou uma inquietação danada nos círculos científicos.  Os cientistas ficam numa encruzilhada dos diabos numa situação assim.  Por um lado, um dos aspectos de que a Ciência mais se orgulha é de sua capacidade de prever resultados de experiências ou de fatos do cotidiano, pela simples compreensão das leis físicas que o determinam. Quando a Ciência entende um processo, ela é capaz de dizer: “Se as coisas estão assim, em tal-ou-tal momento ficarão desta outra forma”.

O problema é que justamente em áreas como sismologia (e vulcanologia, meteorologia, etc.), nunca se pode ter uma certeza absoluta. É um mundo parecido com o dos fenômenos sociais, das ciências humanas: o que se tem são condições básicas, indícios eventuais e tendências futuras.  Conhecendo as condições, é possível interpretar os indícios recolhidos hoje e imaginar que tipo de consequência futura eles podem ter. Mas isso nunca é uma certeza.  Com relação ao clima e às profundezas do subsolo, as variáveis envolvidas são numerosas demais para permitir uma “profecia” – e a Ciência nos acostumou a pedir profecias, certezas.

Os cientistas disseram que um terremoto naqueles dias era improvável, e que não dava para considerá-lo nem uma certeza nem uma impossibilidade. A grande quantidade de mortos e o fato do julgamento ter sido local, inclusive o juiz, o promotor e o público, pode ter influído no veredito. O cientista inglês Malcolm Sperrin afirmou: “Se a comunidade científica vai ser penalizada por ter feito previsões incorretas, ou por não prever com exatidão um evento que veio a ocorrer, então a atividade científica vai se ver restrita somente a certezas, e os benefícios decorrentes de descobertas em campos desde a Medicina e a Física serão bloqueados”. A Ciência está pagando o preço da imagem que sempre procura vender ("o que eu descubro tem utilidade prática”), para poder conseguir verbas e financiamentos.



terça-feira, 30 de outubro de 2012

3017) Laerte: La Earth (30.10.2012)




(Laerte, foto de Rogério B. Huss)


A Terra, o nosso planeta, é vista como uma personagem feminina em movimentos influenciados pela contracultura, o feminismo, o misticismo, a ecologia e a preocupação com o meio ambiente. A Mãe Terra é uma criatura viva (alguns chamam a isto “a hipótese de Gaia”), e o princípio feminino seria o princípio básico da existência. Pode-se pensar numa situação em que na humanidade só existam mulheres e elas consigam de algum modo se auto-fecundar e gerar novos seres; mas não se pode pensar numa humanidade composta apenas de homens. Biologicamente, a humanidade consiste nelas, e nós somos acessórios necessários, por enquanto, à reprodução da espécie. (Mas que isto não nos esmoreça, companheiros, em nosso cumprimento do dever!)

Laerte Coutinho é um dos grandes quadrinhistas brasileiros, criador dos “Piratas do Tietê”; surgiu em revistas como Circo, Chiclete com Banana e outras, numa geração de desenhistas que incluía Angeli, Glauco, Adão Iturrusgarai, etc.  Há dois ou três anos começou a se vestir de mulher, e diz ele que deu mais entrevistas nos últimos tempos do que ao longo de toda sua longa carreira de desenhista (Laerte tem 61 anos). Laerte decidiu assumir sua porção feminina e vestir-se com as mesmas roupas que as mulheres se vestem, ir ao banheiro feminino, pedir para ser tratado como “ela” e “a senhora”, etc.

Laerte virou gay? Foi a primeira pergunta que foi feita e a mais irrelevante, até porque ser gay está aos poucos virando uma coisa muito comum e muito aceita no país. Há focos de resistência, mas diminuem a cada década. O que não é comum no país é um homem vestir-se de mulher e sair à rua – sem ser no carnaval, no teatro, numa festa à fantasia, num filme ou em qualquer situação onde possa ser invocado o pretexto de que era mera brincadeira ou encenação.

Diz Laerte (revista Continuum, Itaú Cultural, # 39, out/nov): “Os costumes estão se transformando. Está ficando claro para todo mundo que orientação sexual e gênero são coisas distintas. Não há um vínculo único. A idéia de que todo cara que se vestir de mulher é gay não existe. Tenho muitas amigas que são travestis e são heterossexuais. Não gostam nem têm atração por homem. Ver o gay como mulherzinha é um insulto antigo, fora de moda. Às vezes, tentam ser mais masculinos que o próprio homem”. Quando as executivas da Av. Paulista e de Wall Street começaram a usar terninhos, nos anos 1980, viram essa inserção no mundo masculino como uma promoção, mas era uma promoção que mantinha a hierarquia – ser masculino era necessariamente ser superior. Quando um homem se veste de mulher a inquietação é maior, porque assim a falsa superioridade é desmentida.


3016) "Filhos da Esperança" (29.10.2012)




É um dos melhores filme recentes de ficção científica, e tinha me passado completamente despercebido. Talvez porque o título brasileiro é meio piegas (o original é Children of Men). Dirigido por Alfred Cuarón (Y tu mamá también, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban) e baseado num romance de P. D. James, é uma história de futuro próximo (o ano é 2027) em que por alguma razão que não fica explicada (nem precisa) a fertilidade humana desapareceu, bebês deixaram de nascer, e a humanidade caminha para o envelhecimento. Quebra financeira, empobrecimento de todos os países, atentados terroristas, e grupos clandestinos defendendo hipóteses para-religiosas mirabolantes.

Leitores de FC hão de lembrar que o livro Greybeard de Brian Aldiss (1964), traduzido no Brasil como “Herdeiros da Terra” (Bruguera) e como “Jornada de esperança” (Ed. Abril) tem a mesma premissa, e seu protagonista, o Barba Grisalha, é o ser humano mais jovem num mundo onde todos têm cabelos brancos. O filme de Cuarón se abre mostrando na primeira sequência a morte do ser humano mais jovem dessa época, um garoto de 16 anos. O mundo está em caos mas a Inglaterra, na base da Lei Marcial, consegue manter um arremedo de ordem, principalmente barrando a entrada de milhões de imigrantes ilegais. (Ainda existem milionários – um deles salvou e trouxe para casa o “Davi” de Michelangelo e a “Guernica” de Picasso). O protagonista, Clive Owen, recebe a incumbência de conseguir papéis falsos para uma garota imigrante e escoltá-la até a fronteira.

É uma história violenta, com tiroteios, mortes brutais, muito suspense. E é um filme totalmente diferente dos chamados “filmes de ação” de hoje em dia, os filmes-sobre-carros-explodindo. Cuarón usa para o suspense um recurso clichê, a corrida contra o tempo – os personagens têm dois dias para chegar num ponto tal, clandestinamente, sendo perseguidos por diferentes grupos. Os tiroteios são intensamente reais, porque ao invés do “BUUUUUM!” dos tiros em Dolby-stereo de hoje em dia as armas fazem aquele “pá” meio abafado que corresponde a um tiro de arma de fogo de verdade. Há planos longos de perseguição, dirigidos com primor. O mundo onde tudo isto se passa é lúgubre, tenso, sofrido. É uma mistura de V de Vingança, Blade Runner, 1984, Esperança e Glória (aquele filme de John Boorman sobre a infância em Londres durante a Guerra).

É um dos melhores filmes sobre futuro próximo e sobre crise populacional que vi em todos os tempos. Se todo filme de ficção científica fosse feito com essa simplicidade e realismo, talvez a gente pudesse deixar de usar Star Wars como o ícone do gênero.


3015) Os jeans e a FC (28.10.2012)




Recentemente comentei nesta coluna o romance Zero History de William Gibson (http://bit.ly/KomW6C), talvez o primeiro livro de FC que tem como tema a fabricação de jeans. Gibson, que de certo modo inventou a realidade virtual em Neuromancer (1984) começou em seus últimos livros a explorar a virtualização da realidade física. Ele percebeu que a realidade daqui de fora dos computadores é tão artificial quanto a da Matrix. Ela é o que chamamos de “mídia ambiente” (“media landscape”), um espaço físico completamente artificializado através de linguagens superpostas, entrelaçadas e conflitantes: arquitetura, vestuário, publicidade, decoração, urbanismo, comunicações, etc. Tudo é linguagem. E tudo é produto de uma máquina feita de gente, planejamento, sistemas e maquinismos.

Na selva barroco-pop, as pessoas estão anestesiadas, embrutecidas de tanta poluição semiótica. E Gibson imagina a criação de produtos que estão limpos dessa sujeira linguística, produtos que utilizam uma linguagem não-referencial, produtos tão simples que não se parecem com nada. Em Reconhecimento de Padrões (2003) é A Filmagem (The Footage), fragmentos de um filme anônimo, que brota aos poucos na Internet sem que se saiba quem o dirigiu, onde, quando. Um filme esteticamente perfeito, para os cinéfilos de um culto que o investiga e acompanha (é este o tema do livro). Em Zero History, é a marca de jeans “Gabriel Hounds”, que tem textura perfeita, corte, acabamento. Um jeans que não se parece com nada, e é vendido clandestinamente, sem propaganda, só para os iniciados. Gibson parece procurar produtos que são verdadeiros paradoxos: produtos no mais alto grau de refinamento de uma cultura e ao mesmo tempo esvaziados de cultura, objetos platônicos que só significam a si mesmos, sem nenhum referencial exterior.

Scott Morrison é um fabricante de jeans-sob-medida em Nova York (http://3x1.us) que certa vez distribuiu calças novas para os lavadores de pratos de um restaurante para que estes os usassem durante o trabalho, na cozinha quente, enfumaçada. O uso “quebra” as fibras e amolda os jeans ao corpo (tem gente que entra na banheira com o jeans novo para acelerar esse processo). Morrison procura o que os japoneses chamam “wabi-sabi”, a beleza do que é “imperfeito, impermanente, incompleto”, a beleza que decorre do uso humano, do desgaste humano, das pequenas vacilações humanas na feitura que dão aos objetos uma marca única, incapaz de surgir da máquina. Ao seu modo, Gibson, como Philip K. Dick, procura estabelecer, num mundo de máquinas, quais são os sinais da presença humana, da vida humana, da imprevisível e inimitável ação humana.