quinta-feira, 1 de novembro de 2012

3019) Nos acréscimos (1.11.2012)




O conceito de “instante precioso” varia de pessoa para pessoa. Eu guardo o sorriso de minha mulher acordando, o choro do meu filho nascendo, uma noite de festa com fogos coloridos no céu e flocos de neve caindo, o bis da melhor canção do melhor show da melhor banda de rock do mundo... Não posso criticar o que outras pessoas escolhem para gravar para sempre no cérebro com um tiro de nanomáquinas. 

Os vizinhos bateram à minha porta na hora de começar a final da Copa no Maracanã, “sai daí, bicho do mato, eremita nerd, é hoje o dia da alegria, Braziu-ziu-ziu!”. Não deixam transparecer, mas devem ter pena de um viúvo tão jovem, que não se queixa do Destino nem do país, que vive em casa sozinho conversando com livros e plantas. Subi para a cobertura, cheia de gente que ria e gritava, a varanda embandeirada, de lá víamos os edifícios da Lagoa explodindo em foguetões e confetes verde-amarelos, o sol afogueava tudo, a TV de plasma se alargava num Maracanã por si só. Eles estavam felizes, eram generosos, e queriam que um pouco daquela felicidade tocasse em mim. Abracei todo mundo, bebi quando beberam, cantei quando cantaram.

Na hora do pênalti a casa veio abaixo, cem pessoas pulavam abraçadas até quase bater no teto, finalmente o gol iria sair, e já nos minutos de acréscimo. Catimba, preparativos, e quando o juiz limpou a área todos meteram a mão no bolso, puxaram o spray nasal. Cada um borrifou o jato de nanoquímicos que gravaria para sempre o conjunto das impressões físicas e mentais dos próximos 60, 90 segundos... “Um instante de beleza é uma alegria eterna”, repetia o estribilho da propaganda; ao borrifar, murmuraram a senha auditiva com que resgatariam aquele momento mais feliz de todos.

Não fiz como eles. Apenas bebi um gole maior de cerveja antes de ver o que milhões viram e reverão milhões de vezes, a corrida para a bola, o chute violento na trave, a zaga adversária rebatendo no susto para o meio de campo, o atacante escapando arisco, nossa defesa atônita e mal postada, a infiltração veloz, a bola morrendo na rede. Pragas. Imprecações. Gritos de revolta. E um silêncio pior do que tudo.

Abalado, imaginei quantas vezes eles iriam reviver aquela tragédia-grega-em-1-minuto. Pois é, não caí na tentação do “para sempre”, porque já caíra antes. O que guardamos para sempre serve apenas para esgarçar ainda mais o tecido fino do tempo. Sei que eles serão escravos de si mesmos, e no futuro reviverão, mil vezes, esse momento do novo maior trauma nacional – só para poderem reviver, com ele, aqueles segundos iniciais da última esperança coletiva que este país sentiu, e que mais uma vez desperdiçou.


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