quinta-feira, 1 de novembro de 2012

3019) Nos acréscimos (1.11.2012)




O conceito de “instante precioso” varia de pessoa para pessoa. Eu guardo o sorriso de minha mulher acordando, o choro do meu filho nascendo, uma noite de festa com fogos coloridos no céu e flocos de neve caindo, o bis da melhor canção do melhor show da melhor banda de rock do mundo... Não posso criticar o que outras pessoas escolhem para gravar para sempre no cérebro com um tiro de nanomáquinas. 

Os vizinhos bateram à minha porta na hora de começar a final da Copa no Maracanã, “sai daí, bicho do mato, eremita nerd, é hoje o dia da alegria, Braziu-ziu-ziu!”. Não deixam transparecer, mas devem ter pena de um viúvo tão jovem, que não se queixa do Destino nem do país, que vive em casa sozinho conversando com livros e plantas. Subi para a cobertura, cheia de gente que ria e gritava, a varanda embandeirada, de lá víamos os edifícios da Lagoa explodindo em foguetões e confetes verde-amarelos, o sol afogueava tudo, a TV de plasma se alargava num Maracanã por si só. Eles estavam felizes, eram generosos, e queriam que um pouco daquela felicidade tocasse em mim. Abracei todo mundo, bebi quando beberam, cantei quando cantaram.

Na hora do pênalti a casa veio abaixo, cem pessoas pulavam abraçadas até quase bater no teto, finalmente o gol iria sair, e já nos minutos de acréscimo. Catimba, preparativos, e quando o juiz limpou a área todos meteram a mão no bolso, puxaram o spray nasal. Cada um borrifou o jato de nanoquímicos que gravaria para sempre o conjunto das impressões físicas e mentais dos próximos 60, 90 segundos... “Um instante de beleza é uma alegria eterna”, repetia o estribilho da propaganda; ao borrifar, murmuraram a senha auditiva com que resgatariam aquele momento mais feliz de todos.

Não fiz como eles. Apenas bebi um gole maior de cerveja antes de ver o que milhões viram e reverão milhões de vezes, a corrida para a bola, o chute violento na trave, a zaga adversária rebatendo no susto para o meio de campo, o atacante escapando arisco, nossa defesa atônita e mal postada, a infiltração veloz, a bola morrendo na rede. Pragas. Imprecações. Gritos de revolta. E um silêncio pior do que tudo.

Abalado, imaginei quantas vezes eles iriam reviver aquela tragédia-grega-em-1-minuto. Pois é, não caí na tentação do “para sempre”, porque já caíra antes. O que guardamos para sempre serve apenas para esgarçar ainda mais o tecido fino do tempo. Sei que eles serão escravos de si mesmos, e no futuro reviverão, mil vezes, esse momento do novo maior trauma nacional – só para poderem reviver, com ele, aqueles segundos iniciais da última esperança coletiva que este país sentiu, e que mais uma vez desperdiçou.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

3018) Como prever terremotos (31.10.2012)





Cientistas italianos foram condenados por não terem sido capazes de prever com segurança, em 2009, um terremoto que matou quase 300 pessoas, na cidade de L’Aquila. Os cientistas eram membros da Comissão Nacional para Previsão e Prevenção de Grandes Riscos, e incluía pessoas ligadas às áreas de sismologia e vulcanologia. A sentença alegou que eles deram declarações contraditórias quanto à possibilidade de que, depois que ocorreram alguns pequenos tremores, viesse um terremoto maior. Sem um alerta formal, a população ficou em casa, e muita gente morreu. Foi o maior terremoto ocorrido na Itália desde 1980.

O caso estava em julgamento desde então, e a sentença de condenação (da qual os advogados, claro, já recorreram) provocou uma inquietação danada nos círculos científicos.  Os cientistas ficam numa encruzilhada dos diabos numa situação assim.  Por um lado, um dos aspectos de que a Ciência mais se orgulha é de sua capacidade de prever resultados de experiências ou de fatos do cotidiano, pela simples compreensão das leis físicas que o determinam. Quando a Ciência entende um processo, ela é capaz de dizer: “Se as coisas estão assim, em tal-ou-tal momento ficarão desta outra forma”.

O problema é que justamente em áreas como sismologia (e vulcanologia, meteorologia, etc.), nunca se pode ter uma certeza absoluta. É um mundo parecido com o dos fenômenos sociais, das ciências humanas: o que se tem são condições básicas, indícios eventuais e tendências futuras.  Conhecendo as condições, é possível interpretar os indícios recolhidos hoje e imaginar que tipo de consequência futura eles podem ter. Mas isso nunca é uma certeza.  Com relação ao clima e às profundezas do subsolo, as variáveis envolvidas são numerosas demais para permitir uma “profecia” – e a Ciência nos acostumou a pedir profecias, certezas.

Os cientistas disseram que um terremoto naqueles dias era improvável, e que não dava para considerá-lo nem uma certeza nem uma impossibilidade. A grande quantidade de mortos e o fato do julgamento ter sido local, inclusive o juiz, o promotor e o público, pode ter influído no veredito. O cientista inglês Malcolm Sperrin afirmou: “Se a comunidade científica vai ser penalizada por ter feito previsões incorretas, ou por não prever com exatidão um evento que veio a ocorrer, então a atividade científica vai se ver restrita somente a certezas, e os benefícios decorrentes de descobertas em campos desde a Medicina e a Física serão bloqueados”. A Ciência está pagando o preço da imagem que sempre procura vender ("o que eu descubro tem utilidade prática”), para poder conseguir verbas e financiamentos.



terça-feira, 30 de outubro de 2012

3017) Laerte: La Earth (30.10.2012)




(Laerte, foto de Rogério B. Huss)


A Terra, o nosso planeta, é vista como uma personagem feminina em movimentos influenciados pela contracultura, o feminismo, o misticismo, a ecologia e a preocupação com o meio ambiente. A Mãe Terra é uma criatura viva (alguns chamam a isto “a hipótese de Gaia”), e o princípio feminino seria o princípio básico da existência. Pode-se pensar numa situação em que na humanidade só existam mulheres e elas consigam de algum modo se auto-fecundar e gerar novos seres; mas não se pode pensar numa humanidade composta apenas de homens. Biologicamente, a humanidade consiste nelas, e nós somos acessórios necessários, por enquanto, à reprodução da espécie. (Mas que isto não nos esmoreça, companheiros, em nosso cumprimento do dever!)

Laerte Coutinho é um dos grandes quadrinhistas brasileiros, criador dos “Piratas do Tietê”; surgiu em revistas como Circo, Chiclete com Banana e outras, numa geração de desenhistas que incluía Angeli, Glauco, Adão Iturrusgarai, etc.  Há dois ou três anos começou a se vestir de mulher, e diz ele que deu mais entrevistas nos últimos tempos do que ao longo de toda sua longa carreira de desenhista (Laerte tem 61 anos). Laerte decidiu assumir sua porção feminina e vestir-se com as mesmas roupas que as mulheres se vestem, ir ao banheiro feminino, pedir para ser tratado como “ela” e “a senhora”, etc.

Laerte virou gay? Foi a primeira pergunta que foi feita e a mais irrelevante, até porque ser gay está aos poucos virando uma coisa muito comum e muito aceita no país. Há focos de resistência, mas diminuem a cada década. O que não é comum no país é um homem vestir-se de mulher e sair à rua – sem ser no carnaval, no teatro, numa festa à fantasia, num filme ou em qualquer situação onde possa ser invocado o pretexto de que era mera brincadeira ou encenação.

Diz Laerte (revista Continuum, Itaú Cultural, # 39, out/nov): “Os costumes estão se transformando. Está ficando claro para todo mundo que orientação sexual e gênero são coisas distintas. Não há um vínculo único. A idéia de que todo cara que se vestir de mulher é gay não existe. Tenho muitas amigas que são travestis e são heterossexuais. Não gostam nem têm atração por homem. Ver o gay como mulherzinha é um insulto antigo, fora de moda. Às vezes, tentam ser mais masculinos que o próprio homem”. Quando as executivas da Av. Paulista e de Wall Street começaram a usar terninhos, nos anos 1980, viram essa inserção no mundo masculino como uma promoção, mas era uma promoção que mantinha a hierarquia – ser masculino era necessariamente ser superior. Quando um homem se veste de mulher a inquietação é maior, porque assim a falsa superioridade é desmentida.


3016) "Filhos da Esperança" (29.10.2012)




É um dos melhores filme recentes de ficção científica, e tinha me passado completamente despercebido. Talvez porque o título brasileiro é meio piegas (o original é Children of Men). Dirigido por Alfred Cuarón (Y tu mamá también, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban) e baseado num romance de P. D. James, é uma história de futuro próximo (o ano é 2027) em que por alguma razão que não fica explicada (nem precisa) a fertilidade humana desapareceu, bebês deixaram de nascer, e a humanidade caminha para o envelhecimento. Quebra financeira, empobrecimento de todos os países, atentados terroristas, e grupos clandestinos defendendo hipóteses para-religiosas mirabolantes.

Leitores de FC hão de lembrar que o livro Greybeard de Brian Aldiss (1964), traduzido no Brasil como “Herdeiros da Terra” (Bruguera) e como “Jornada de esperança” (Ed. Abril) tem a mesma premissa, e seu protagonista, o Barba Grisalha, é o ser humano mais jovem num mundo onde todos têm cabelos brancos. O filme de Cuarón se abre mostrando na primeira sequência a morte do ser humano mais jovem dessa época, um garoto de 16 anos. O mundo está em caos mas a Inglaterra, na base da Lei Marcial, consegue manter um arremedo de ordem, principalmente barrando a entrada de milhões de imigrantes ilegais. (Ainda existem milionários – um deles salvou e trouxe para casa o “Davi” de Michelangelo e a “Guernica” de Picasso). O protagonista, Clive Owen, recebe a incumbência de conseguir papéis falsos para uma garota imigrante e escoltá-la até a fronteira.

É uma história violenta, com tiroteios, mortes brutais, muito suspense. E é um filme totalmente diferente dos chamados “filmes de ação” de hoje em dia, os filmes-sobre-carros-explodindo. Cuarón usa para o suspense um recurso clichê, a corrida contra o tempo – os personagens têm dois dias para chegar num ponto tal, clandestinamente, sendo perseguidos por diferentes grupos. Os tiroteios são intensamente reais, porque ao invés do “BUUUUUM!” dos tiros em Dolby-stereo de hoje em dia as armas fazem aquele “pá” meio abafado que corresponde a um tiro de arma de fogo de verdade. Há planos longos de perseguição, dirigidos com primor. O mundo onde tudo isto se passa é lúgubre, tenso, sofrido. É uma mistura de V de Vingança, Blade Runner, 1984, Esperança e Glória (aquele filme de John Boorman sobre a infância em Londres durante a Guerra).

É um dos melhores filmes sobre futuro próximo e sobre crise populacional que vi em todos os tempos. Se todo filme de ficção científica fosse feito com essa simplicidade e realismo, talvez a gente pudesse deixar de usar Star Wars como o ícone do gênero.


3015) Os jeans e a FC (28.10.2012)




Recentemente comentei nesta coluna o romance Zero History de William Gibson (http://bit.ly/KomW6C), talvez o primeiro livro de FC que tem como tema a fabricação de jeans. Gibson, que de certo modo inventou a realidade virtual em Neuromancer (1984) começou em seus últimos livros a explorar a virtualização da realidade física. Ele percebeu que a realidade daqui de fora dos computadores é tão artificial quanto a da Matrix. Ela é o que chamamos de “mídia ambiente” (“media landscape”), um espaço físico completamente artificializado através de linguagens superpostas, entrelaçadas e conflitantes: arquitetura, vestuário, publicidade, decoração, urbanismo, comunicações, etc. Tudo é linguagem. E tudo é produto de uma máquina feita de gente, planejamento, sistemas e maquinismos.

Na selva barroco-pop, as pessoas estão anestesiadas, embrutecidas de tanta poluição semiótica. E Gibson imagina a criação de produtos que estão limpos dessa sujeira linguística, produtos que utilizam uma linguagem não-referencial, produtos tão simples que não se parecem com nada. Em Reconhecimento de Padrões (2003) é A Filmagem (The Footage), fragmentos de um filme anônimo, que brota aos poucos na Internet sem que se saiba quem o dirigiu, onde, quando. Um filme esteticamente perfeito, para os cinéfilos de um culto que o investiga e acompanha (é este o tema do livro). Em Zero History, é a marca de jeans “Gabriel Hounds”, que tem textura perfeita, corte, acabamento. Um jeans que não se parece com nada, e é vendido clandestinamente, sem propaganda, só para os iniciados. Gibson parece procurar produtos que são verdadeiros paradoxos: produtos no mais alto grau de refinamento de uma cultura e ao mesmo tempo esvaziados de cultura, objetos platônicos que só significam a si mesmos, sem nenhum referencial exterior.

Scott Morrison é um fabricante de jeans-sob-medida em Nova York (http://3x1.us) que certa vez distribuiu calças novas para os lavadores de pratos de um restaurante para que estes os usassem durante o trabalho, na cozinha quente, enfumaçada. O uso “quebra” as fibras e amolda os jeans ao corpo (tem gente que entra na banheira com o jeans novo para acelerar esse processo). Morrison procura o que os japoneses chamam “wabi-sabi”, a beleza do que é “imperfeito, impermanente, incompleto”, a beleza que decorre do uso humano, do desgaste humano, das pequenas vacilações humanas na feitura que dão aos objetos uma marca única, incapaz de surgir da máquina. Ao seu modo, Gibson, como Philip K. Dick, procura estabelecer, num mundo de máquinas, quais são os sinais da presença humana, da vida humana, da imprevisível e inimitável ação humana.


sábado, 27 de outubro de 2012

3014) Cifrões eletrônicos (27.10.2012)





Uma das coisas boas do capitalismo (sistema tão perseguido nesta impiedosa coluna!) é o fato de que ele se esforça o tempo inteiro para descobrir maneiras mais fáceis e mais fluidas de produzir, de transportar, de estocar, de expor, de vender, de cobrar, de entregar.  Vive disto, não é mesmo? – então tem mais é que aplainar os caminhos pedregosos que ligam estes processos. 

O dinheiro eletrônico surgiu para eliminar a necessidade de transferir sacos cheios de moedas metálicas de um continente para outro.  As máquinas de cartão de crédito foram um passo adiante, e agora existem sistemas como o Square em que qualquer celular pode se transformar numa maquininha dessas. Você pluga na entrada dos fones de ouvido a engenhoca eletrônica, passa ali o cartão bancário, digita seus dados (ou aperta sua impressão digital), e presto! – o dinheiro foi transferido. Para isto, claro, o celular precisa baixar o aplicativo correspondente.  O Square é uma criação de Jack Dorsey, que é também um dos criadores do Twitter. Numa matéria da Wired (http://bit.ly/KUEM27), Dorsey argumenta que os novos smartphones têm muito mais poder de processamento do que um Banco inteiro de décadas atrás, e seria bobagem não aproveitar isso para disseminar o ato da venda eletrônica.

Gigantes da transação eletrônica como PayPal e VeriFone rapidamente copiaram a inovação, e Jennifer Miles, vice-presidente desta última, admitiu: “Square pegou uma indústria sonolenta, que há anos vinha fazendo as coisas sempre do mesmo modo, e introduziu uma inovação; mas é um processo que pode ser replicado”. Também faz parte do capitalismo essa disposição constante em copiar o que o concorrente fez e está dando resultado. Dorsey não liga. Ele parece fixado (como Steve Jobs, um dos seus gurus) na maneira mais simples e prática de fazer as coisas. Diz ele: “O desafio que eu coloco para nossa equipe de produção é criar um aplicativo que eles mesmos queiram usar. Isto é uma coisa que eu aprendi na Apple. É a razão pela qual eles estão o tempo todo surpreendendo os usuários”.

O sistema de livre concorrência obriga à produção de muita bobagem desnecessária, mas em seu lado positivo ele cria uma mentalidade de design, de excelência, de aperfeiçoamento em busca da melhor forma de fazer as coisas. As futuras sociedades socialistas devem ficar de olho nesse aspecto do capitalismo. A concorrência criativa força as melhores mentes a buscarem as melhores soluções, e em certo ponto isso se torna uma corrida estética, à procura da beleza e da funcionalidade, e deixa para trás a acumulação onívora de capital, a sede predatória pelo lucro incessante.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

3013) Tarzan 100 Anos (26.10.2012)





(1a. edição em livro) 


O romance Tarzan dos Macacos foi publicado pela primeira vez no número de outubro de 1912 da revista The All-Story Magazine e iniciou uma das franquias mais bem sucedidas da pulp fiction e da cultura de massas. Edgar Rice Burroughs publicou cerca de 20 romances envolvendo o lord inglês perdido na selva ainda criança e criado pelos macacos africanos. Ao que se diz, foi ele o primeiro escritor a ganhar um milhão de dólares produzindo ficção popular. ERB criou outras séries de grande sucesso: as aventuras de John Carter em Marte, adaptadas há pouco para o cinema, e as histórias de Pelucidar, o reino subterrâneo.

Na revista Million (set-out 1991), Brian Stableford dá um balanço na obra desse típico escritor “pulp”. Diz ele que o núcleo do mito de Tarzan está nos dois primeiros livros (Tarzan of the Apes, 1912; The Return of Tarzan, 1913), e que nos romances seguintes Burroughs limitou-se a repetir situações. Quando tentou introduzir novidades, os resultados foram bizarros, e ele dá como exemplo Tarzan e os Homens-Formigas (1924), Tarzan no Centro da Terra (1930), Tarzan e o Homem Leão (1934). Diz ele também que Tarzan e a Cidade Proibida (1938) é obra de um ghost-writer, o qual, ainda por cima, tinha pouca familiaridade com o universo do personagem.

O charme de Tarzan, diz Stableford, é que ele tem o coração de um leão e a mente de um aristocrata, e os dois não estão em conflito. Ao conhecer as capitais européias ele as despreza e volta para a selva natal, porque os parâmetros morais na selva são mais elevados do que os das cidades. Tarzan é a mais bem sucedida fantasia do “bom selvagem” não corrompido pela civilização.  Sua selva é uma construção bizarra, impossível de encontrar na vida real: muitos dos animais em Tarzan dos Macacos, inclusive os leões, não habitam a floresta. Seus macacos são um composto imaginário de diversos tipos. A primeira versão do livro tinha inclusive tigres que um editor prudente achou melhor suprimir.

Stableford diz que em geral compara-se Tarzan com Mowgli, o menino-lobo do Livro da Selva de Kipling, ele também um bebê criado e adotado pelos animais selvagens. A comparação mais precisa (diz ele) seria no entanto com o Peter Pan de James Barrie – alguém que vive numa Terra do Nunca e só é capaz de ser feliz dentro dela. Peter Pan e Tarzan se decepcionam com o mundo civilizado, um mundo forjado pelos adultos, em torno de problemas adultos, ambições e hipocrisias adultas, concessões e negociações típicas dos adultos. Voltar para a selva ou para a Terra do Nunca é voltar para um mundo de aventuras sem risco e violência sem culpa, característicos da infância.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

3012) A frase de Feynman (25.10.2012)



(Richard Feynman)


A gente sempre imagina (os livros escolares têm grande parte da culpa) que a humanidade está constantemente evoluindo da ignorância para o conhecimento, da barbárie para a civilização.  Diria Augusto dos Anjos: “Ilusão trêda!”.  A barbárie não desaparece com o surgimento da civilização: é diluída por ela, assim como o leite já existente numa xícara não desaparece quando derramamos café dentro dela. Civilização e barbárie, ignorância e conhecimento, tudo isto continua a ser produzido sem parar. Varia apenas o ritmo e a intensidade de cada um.

É confortável pensar que a evolução humana é uma lei da natureza, mas as idéias confortáveis são tão perigosas quanto os paraísos artificiais. Não duvido nada que nas próximas décadas aconteça alguma catástrofe planetária (calma, estou virando a boca pra lá), de natureza econômica ou ecológica, e em um simples século a gente perca tudo que aprendeu. Como teria dito uma vez Einstein: “Não sei que armas serão usadas na Terceira Guerra Mundial, mas na quarta serão arcos e flechas”.

Perguntaram ao físico Richard Feynman (procurem meus artigos sobre ele no Mundo Fantasmo): Se algum cataclismo destruísse todo o nosso conhecimento científico, mas você pudesse deixar para os homens futuros uma simples frase, que frase seria essa?  Que informação essencial, comprimida numa pequena cápsula, permitiria reencontrar o caminho perdido da ciência?

Feynman respondeu que um ponto de recomeço importante seria a hipótese atômica, ou seja, o nosso conhecimento sobre a matéria de que o Universo é feito. E ele sugeriu a frase: “Todas as coisas são feitas de átomos, minúsculas partículas que giram em movimento perpétuo, atraindo-se umas às outras quando estão a pequena distância, mas repelindo-se quando tentamos apertá-las umas de encontro às outras”. Para Feynman, esta descrição contém uma quantidade enorme de informação sobre o mundo. O fato da matéria que parece sólida consistir em “grãos” invisíveis, separados por espaços vazios; o fato de esses grãos manterem relações de energia entre si (atração e repulsão); o fato de que, quando tentamos interferir no equilíbrio das partículas, essa energia reage de maneira violenta (como quando pegamos dois ímãs e tentamos forçar suas extremidades iguais uma de encontro à outra).

Feynman esgota o assunto? Claro que não. Biólogos, astrônomos, geneticistas etc. iriam certamente propor outras frases, outras fórmulas. Bem que poderíamos compilar uma antologia delas e gravá-las em todas as línguas, em todas as montanhas, em todas as memórias. Uma nova Tábua de Esmeralda, preservando as células-tronco do conhecimento, para fazer o mundo nascer de novo.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

3011) Contracapa de post (24.10.2012)




&  quando você toma a primeira cerveja do dia antes mesmo de levantar da cama, está na hora de revisar parâmetros  &  não sei onde a generosidade me surpreende mais, se entre os abastados, se entre os mendigos  &  comemorar aniversário é fazer um risco a mais na parede da cela  &  pensavam que iam me prender e eu saí voando com gaiola e tudo  &  eu gostaria de dar um pulinho rápido no futuro só para saber como vão chamar a época em que eu vivi  &  sou do tipo que se remexer na cesta de lixo do escritório traz de volta metade das coisas  &  um submarino repleto de pássaros coloridos  &  passei a vida me preparando contra catástrofes que nunca aconteceram, ou seja, deu certo  &  a roda só foi inventada quando havia cem pessoas pensando naquilo o tempo inteiro  &  um túnel com lojas de shopping nas paredes laterais  &  a imagem fala à razão, o som fala ao inconsciente  &  hoje em dia só quem acha um mecenas são os bobos da corte  &  certas pessoas são como os guindastes, levantam tudo mas se caírem não se levantam sozinhos  &  o governo oferece pacote completo: anistia, amnésia e eutanásia  &  o simples fato do sujeito concordar em ir para a guerra já o torna merecedor de uma medalha por bravura  &  todo escritor devia ter uma luzinha vermelha na testa que piscasse furiosamente sempre que ele está trabalhando  &  uma pistola de dois canos e uma faca de duas lâminas  &  o sertão é divino e a cidade é maravilhosa  &  uma dor serve também para nos garantir que o resto do corpo não está doendo  &  uma tragédia é um drama do qual a gente não consegue rir tempos depois  &  a vida é uma guerra sem exército inimigo  &  o poeta é um mero para-raios, esperando a poesia acontecer  &  Wall Street está durando mais do que o Muro de Berlim  &  em História deveríamos dizer sempre “um segmento de fato”, porque fatos não têm começo nem fim  &  o que mais precisamos na vida é de coisas que não nos deixem ficar pensando no significado da vida  &  o pavão é tão burro que não sabe que é bonito, pensa que aquilo quer dizer força  &  se eu pegasse dois dias de cadeia por cada piada politicamente incorreta que já falei, ia ter de reencarnar pra poder pagar tudo  &  ver futebol sem torcer por nenhum dos dois times é como tomar cerveja sem álcool  &  o melhor lugar para esconder dinheiro é gastando  &  tão samurai que lhe basta uma pena de ganso para estripar um exército inteiro  &  eu bebo a vida naquelas canecas de agarrar com a mão inteira  &  por aí tem candidato a prefeito que não conseguiria mestrar um jogo de RPG  &  um olho de vidro com um aquário dentro onde nadam peixes cegos  &


terça-feira, 23 de outubro de 2012

3010) A retórica da FC (23.10.2012)



(ilustração: John Schoenherr)


O fantástico e a ficção científica se baseiam numa retórica em que, como observou Samuel R. Delany, expressões metafóricas são usadas de um modo literal. Na literatura comum, expressões como “voltar ao passado”, “virar bicho”, “ser um morto-vivo”, “atravessar paredes”, “ler o pensamento” são metáforas. No fantástico e na FC, tudo isto acontece ao pé da letra. Ademais, essa retórica especial combina palavras comuns para formar sentidos inesperados, e Delany dá o célebre exemplo da frase de Heinlein: “The door dilated”. A porta se dilatou. O leitor de FC deve ser alguém capaz de imaginar um mundo em que as portas são aberturas na parede que se dilatam e depois se fecham de novo.

Uma imagem como “pistola de raios desintegradores” (anos 1920?) é um produto dessa retórica, concebido numa época em que “pistola” era algo banal, e “raios” eram um aspecto do mundo físico intensamente estudado pela ciência, resultando em descobertas divulgadas pelos jornais (mais do que hoje, aliás). A noção de que raios pudessem desintegrar não era absurda, portanto, e o fato de poderem ser produzidos (por que fonte de energia? com que tipo de controle?) em algo do tamanho de uma pistola era uma conveniência narrativa. A literatura mainstream não dispunha dessas licenças retóricas. Tinha que se restringir ao já existente, ou ao que um dia existira.

Uma vez, escrevendo um conto de FC ambientado em outro planeta, eu quis fazer um personagem, que precisava conversar com uma autoridade qualquer, dizer: “Onde tem uma cabine telefônica?”. Vi logo a bobagem de usar a expressão “cabine telefônica” num futuro cheio de espaçonaves mais velozes do que a luz, e com dezenas de raças (e culturas, e tecnologias) alienígenas. Falei: “Onde tem um emissor de presença?”. E logo o personagem era levado a uma sala escura, e na extremidade oposta aparecia a imagem do escritório do figurão. “Emissor de presença” é uma tecnologia retórica para empregar o mesmo procedimento (comunicação à distância) evitando expressões datadas. “Emissor” tem parentesco linguístico com “transmissor” (que também poderia ter sido usado). E “presença” sugere algo mais que a simples reconstituição sonora da voz – sugere algo como um Skype, que sob diferentes nomes e formas foi um dos primeiros sonhos telecomunicatórios da FC. A retórica da FC nos obriga a descartar as expressões comuns e criar novas combinações de termos (ou mutações das palavras já existentes) para forçar o leitor a, assimilando a palavra ou expressão desconhecida, assimilar o conceito inesperado e novo. Assim surgiram “máquina do tempo”, “ciberespaço”, “andróide”, “steampunk”, etc.