quinta-feira, 9 de agosto de 2012

2945) Henry James em viagem (9.8.2012)



Estilo não é um conjunto de idéias aprendidas nos livros, e sim a expressão espontânea do modo de ser e de pensar de um indivíduo.  E um estilo literário é uma combinação única entre as qualidades e as limitações de um escritor, e é tão definido pelo que ele não sabe fazer quanto pelo que ele faz muito bem. 

Henry James foi um dos grandes escritores da virada do século 19 para o 20, e em seus romances (como Outra volta do parafuso, Washington Square, Pelos olhos de Maisie, Retrato de uma dama) a atividade mental dos personagens (sinuosa, contraditória, imprevisível) é recriada com uma prosa elegante e cheia de nuances. 

A escritora Edith Wharton, que foi sua grande amiga, conta um episódio típico da personalidade de James. Os dois viajavam de automóvel pelo interior da Inglaterra. Perderam-se, e estavam tentando encontrar a direção de King’s Road, a estrada principal. Ao ver um camponês, pararam o carro no acostamento e James dirigiu-se ao homem.

“Meu bom homem, se pudesse ser gentil e aproximar-se um pouco... Bem, para resumir tudo em duas palavras, eu e esta senhora estamos vindo de Slough, ou, para ser mais exato, acabamos de atravessar Slough em nosso trajeto, pois estamos voltando de Windsor para Rye, que foi o local de onde partimos originalmente.  Visto que fomos surpreendidos pela escuridão, ficaríamos extremamente gratos se pudesse nos dizer agora onde nos encontramos em relação a, por exemplo, High Street, que, como o sr. certamente sabe, conduz ao Castelo quando viramos à esquerda após a estação ferroviária.”

O homem, que era bem idoso, fez uma cara de perplexidade e James continuou:

“Em resumo, o que quero lhe expor numa palavrinha é: supondo que já tenhamos (como tenho todos os motivos para supor) passado direto pela entrada à esquerda na estação ferroviária (a qual, neste caso, estaria situada agora não à nossa esquerda, mas à nossa direita), onde será que nos encontramos agora em relação a...”

Nesse ponto Ms. Wharton não agüentou mais e disse: 

“James, pergunte a ele onde fica King’s Road”. E ele:

“Ah! King’s Road? Isto mesmo. Muito bem. Será que poderia, meu bom homem, dizer-nos onde, em relação à nossa localização presente, fica King’s Road?”

O homem abriu a boca pela primeira vez e disse:

“É esta estrada aqui.”

Isto, amigos, é uma justaposição de estilos. Na grande maioria das vezes, estilo literário não é uma ideologia racionalmente estruturada, é a expressão verbal completa dos processos mentais de um indivíduo, cujo desenho total é personalizado, único, irrepetível e precioso.








quarta-feira, 8 de agosto de 2012

2944) Kishotenketsu (8.8.2012)


(esquema gráfico do Kishotenketsu)


Dizem os manuais de roteiro que toda história se baseia num conflito entre A que deseja uma coisa e B que serve de obstáculo; a narrativa é a descrição das ações de A para suplantar B e obter o que deseja. 

Em geral, as histórias desse tipo têm uma estrutura em três fases, tipo apresentação / conflito / resolução, bem parecida com a famosa tríade marxista do tese / antítese / síntese, e que se baseia, igualmente, na noção de conflito. 

Não nego a importância dessa teoria porque grandes filmes se baseiam nela.  Mas daí a dizer que é a única maneira de contar histórias vai uma longa distância. 

Os japoneses têm uma outra estrutura (chamada “kishotenketsu”) que divide a narrativa em quatro partes.  Estas partes seriam, mais ou menos (cada fonte traduz esses termos de uma maneira diversa): 

1) situação; 
2) intensificação da situação inicial; 
3) um elemento deslocado, “non sequitur”, aparentemente sem nenhuma relação com o que viera antes; 
4) o modo como a situação inicial assimila esse elemento e se transforma.  

Uma nomenclatura diz: Situação, Expansão, Contraste e Resultante. 

Outra os chama de Introdução, Desenvolvimento, Reviravolta e Conclusão.

Um exemplo: 

1) Um garoto chega a um rio. 
2) O garoto tenta em vão apanhar peixes com as mãos.  
3) Noutro local, o vento arranca o chapéu de um homem e o joga no rio. 
4) O menino usa o chapéu para apanhar peixes. 

Note-se que não houve conflito, não houve (como nas histórias ocidentais) um confronto de forças, de vontades, de agressividades nem de espertezas.  

A estrutura oriental mostra a confluência de duas linhas de acontecimentos. A primeira linha ocupa os passos 1 e 2; a outra linha aparece, de forma aparentemente gratuita e inexplicável, no passo 3; e no passo 4 as duas linhas se cruzam com uma resolução satisfatória e inesperada da situação inicial. 

(Ver aqui um bom exemplo e boa teorização: http://bit.ly/Mehp1r).

Essa progressão é usada em quadrinhos, em tirinhas (chamadas “yonkoma”), em poemas, em contos populares, em artigos.  Também em poemas: eis um exemplo poético no verbete inglês da Wikipédia: 

1) Itoya tem duas filhas; 
2) Uma tem 16 anos e a outra 14; 
3) Ao longo da História os guerreiros matavam seus inimigos com arco e flecha; 
4) Mas as filhas de Itoya matam com os olhos.  

A referência aparentemente despropositada no item 3 é explicada no 4: ela serve de metáfora para caracterizar os “olhos matadores” das belas filhas de Itoya.

Existem incontáveis maneiras de estruturar uma narrativa por mais simples ou mais complexa que seja.  Nem toda história é A Jornada do Herói de Campbell; nem tudo está nas receitas-de-ferro dos manuais de roteiro de Syd Field.







terça-feira, 7 de agosto de 2012

2943) Nome que dá sorte (7.8.2012)



Os adeptos da numerologia vivem mudando os próprios nomes para fechar uma conta cabalística qualquer, aí é uma tal de duplicação de consoantes, de inserção de “h” mudo a torto e a direito...  Funciona?  Sei lá. Mas a verdade é que quando um sujeito não se dá bem com o próprio nome, melhor mudá-lo por alguma coisa escolhida por ele mesmo. Dá mais certo do que os nomes que recebemos, à nossa revelia, quando nascemos e somos registrados.  A tradição do “nome artístico” vem um pouco daí, misturando a necessidade de evitar nomes excessivamente comuns, ou pouco eufônicos, por alguma coisa mais decorativa.  O cinema e a música popular estão cheios disso, e ainda hoje é um passatempo habitual das revistas de variedades fornecer uma relação de nomes banais ou impronunciáveis para que o leitor tente adivinhar quem é o famoso a que cada um deles pertence.

Alguns casos são mais interessantes.  Vi uma vez na TV um documentário sobre Bill Wyman, o baixista dos Rolling Stones (que já não pertence mais à banda desde 1993), no qual ele comentava o nome artístico que escolhera (seu nome original é William George Perks).  O verbete sobre ele na Wikipedia diz que ele quis homenagear um amigo com quem serviu na Força Aérea, mas nesse documentário que vi ele afirma que Bill Wyman era um colega de escola que era craque no futebol, e pelo qual ele tinha muita admiração.  E ele afirma: “Meu nome original estava associado a uma infância pobre, sofrida, numa família que não me compreendia e não me aceitava como eu sou.  Quando passei a me chamar Bill Wyman, foi como se tivesse me tornado outro indivíduo, mais seguro, mais tranquilo, e daí para a frente tudo mudou”.

Algo parecido aconteceu com Voltaire, o famoso escritor e enciclopedista.  Seu nome original era François-Marie Arouet, mas ele o detestava. Adotou o pseudônimo de Voltaire, em parte porque também tinha relacionamento difícil com a própria família, em parte porque aquele nome, em si, o desgostava.  Numa carta a Jean-Baptiste Rousseau, ele pediu que a resposta fosse endereçada a “Monsieur de Voltaire”, dizendo: “Fui tão infeliz sob o nome de Arouet que adotei outro, para não ser confundido com o poeta Roi” (no que parece estar se referindo a Adenes le Roi, poeta famoso da época).

Auto-estima e auto-imagem são duas coisas muito ligadas, e na impossibilidade da gente virar outra pessoa (como em filmes tipo Seconds de John Frankenheimer ou O passageiro de Antonioni) às vezes basta trocar de nome, e passar a atribuir a esse nome um personagem com qualidades que a gente não tinha e sem os problemas que nos infelicitavam

domingo, 5 de agosto de 2012

2942) Pergunte não, bróder (5.8.2012)



(Louise Bourgeois) 


“Sabe por quê?  Porque quem menos pergunta mais vive. Perguntar é acender uma luz, e depois que essa luz acende ela fica acesa, e quando quiserem saber quem foi que acendeu, foi você.  Está tudo lá.  Pergunte não.  É a luta entre a Nova Ordem Mundial e o Comando Universal dos Sete Poderes.  Deduza, porque é melhor ficar vendo as ondas baterem nas rochas – ou outra metáfora, desde que seja essa a idéia. A idéia é que depois que a onda bate mil vezes na rocha você sabe como se comporta uma, e sabe que a outra pode surpreender. Pense  nos bastidores das reuniões de cúpula nos hotéis sete estrelas (sim, existem!), nos conciliábulos madrugada adentro em salas à prova de gravação. A gente nunca pode tocar no assunto.  É briga de espantar cachorro grande, altas corporações sem registro, governos transnacionais... Não, é melhor fazer de conta que não está lá.  O problema (a solução) é que tanto quanto nas conferências em carne-e-osso quanto nas conferências web-online é sempre possível alguém ver sem ser visto, ficar sabendo sem ser percebido, colher as informações de que precisa sem que ninguém ao seu redor tenha a mais remota idéia de que aquela pessoa está ali com aquela finalidade.  Os monstros, as aberrações, o barroquismo teratológico, tudo isso são bois de piranha para sorver a atenção alheia.  Os verdadeiros Funcionantes estão indo direto onde importa, onde resulta, onde se traça e cristaliza o wireframe do futuro, e o resto é vinheta.  Pergunte não. Pense numa conveniência de não perguntar!  Tu quer ser o que? Um sem-teto sem-noção oferecendo rolete de cana aos membros da Guarda Vermelha durante o desfile militar de Pyong Yang?  Desinfeta, véi!  Os Lordes nem sabem que tu existe.  Não precisa temer os Lordes.  Quem existe pra cuidar de gente como tu são os Executores, da Divisão Tática do Departamento Estratégico (no Comando da Ordem Mundial) ou os agentes do Ministério do Know-How, da Central de Segurança dos Sete Poderes.  Quem vai deletar você é o equivalente ao segurança do estacionamento do estádio de um time da Série D.  Os Lordes seguirão suas vidas de ozimândias, de sibaritas high-tech.  Não pergunte quem são os Lordes. Os Lordes são consequência de você, eles existem financiados pelo seu trabalho e pela sua ignorância monitorada via Internet e TV. Vá trabalhar, vá ver futebol, vá votar. Pergunte não, porque se alguém soubesse a resposta a essa pergunta deletaria essa resposta pelo bem da Humanidade. Quando chove canivete careca não vai à praia. Esqueça que o mundo existe, e o mundo esquece que você sabe ver, sabe ouvir, sabe falar. Pergunte não.”

sábado, 4 de agosto de 2012

2941) Nem todo elogio (4.8.2012)






Há quem venda a alma e alugue o corpo por um elogio, mas um elogio pode nos trazer mais desgostos do que satisfação. Nem vou falar no elogio que ilude ainda mais um iludido: “Fulaninha, seu disco é ótimo, acho que tem tudo a ver você copiar a voz, o cabelo e os arranjos de Amy Winehouse!”  Fulaninha embarca na conversa e dá com os burros nágua. Não, estou me referindo a outras ramificações dessa arte tão escorregadia, a arte de falar bem, tão complexa quanto a de falar mal.

Existe o elogio equivocado, aquele que em que o crítico ou o amigo não entendeu absolutamente o que você fez, e o elogiou por imaginar algo diferente.  Ocorre muito quando a gente usa a ironia.  Um texto é lido por pessoas de diferentes visões estéticas, políticas, etc. Às vezes a gente publica uma coisa sarcástica, e surge alguém que leva o texto ao pé da letra e acha aquilo maravilhoso.

Um tipo que me incomoda é o elogio que aproveita para falar mal de terceiros, ainda mais se são meus amigos. “O livro de BT é infinitamente melhor do que as medíocres tentativas de A, B ou C...”  É o que basta para o alfabeto inteiro ficar com raiva do meu livro. E muitas críticos só sabem criticar assim, por exclusão – algo só é bom ao ser comparado a outra coisa que o crítico acha ruim (e que ele às vezes não percebe ser bem melhor que a obra que elogiou).

Nem deveria falar do elogio sem substância, o elogio que nada diz a não enfileirar adjetivos, mas esta é uma praga que parece residir no tipo de tinta usado na imprensa, então cumpre combatê-la.  Publico um conto, o crítico X diz apenas que é “instigante, envolvente”. Já o crítico Y diz que é “uma mistura, que não deu certo, da temática de Henry James com a prosa de Machado de Assis”. Este último, mesmo não gostando, talvez tenha me mostrado algo que eu não tinha percebido.

Existe um certo tipo de elogio interesseiro que todos nós praticamos, conscientemente ou não.  Consiste em louvar a brasa alheia trazendo-a para perto da nossa sardinha.  Faço um mea-culpa, por exemplo, no que diz respeito à literatura fantástica e à FC. Muitas vezes nós, militantes destas duas excentricidades, acabamos elogiando uma obra que nem é tão boa assim, mas que nos parece boa porque vemos nela o mesmo tipo de “persuasão” que cultivamos. O elogio é interesseiro porque não nos interessa tanto o valor daquela ovelha desgarrada, o que queremos na verdade é engrossar nosso rebanho.

O bom elogio é o que não usa adjetivo algum (desconfie de termos como “magistral”, “genial”, etc.). O bom elogio limita-se a descrever com clareza as qualidades da obra.  Se são de fato qualidades, o bom leitor saberá reconhecê-las.



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

2940) Chris Marker (3.8.2012)


Faleceu dias atrás, aos 91 anos, o cineasta Chris Marker, o autor de La Jetée, talvez seu filme mais conhecido.  Mesmo na tribo dos cinéfilos há muita gente que o desconhece, porque Marker escolheu aquela forma peculiar de invisibilidade que é a direção de documentários.  E ainda por cima aqueles documentários que jamais se enquadrariam numa programação tipo Discovery Channel ou National Geographic. Marker foi um dos sujeitos que mexeram no software do documentário, tanto quanto Robert Flaherty, Jean Rouch, Eduardo Coutinho. Em 2009 o CCBB do Rio de Janeiro exibiu uma enorme mostra de quase toda sua obra, que nos deu a medida da variedade de seus interesses e da quantidade de material que produziu.

Os filmes de Marker foram chamados de “ensaios cinematográficos” e de fato eles são o equivalente aos ensaios literários que misturam o relato jornalístico, a ilustração com pequenos episódios ficcionais, a associação livre de idéias, o memorialismo, o humor, o panfleto, a análise.  Marker faz isso com imagens (de arquivo, ou registradas por ele mesmo), áudio, e principalmente através de narrações em “off”, recurso que ele sempre usou de maneira muito pessoal e enriquecedora.  A narração em “off” virou no documentário o que alguns diretores chamam, com bom humor, de “o último reduto dos covardes”, ou seja, quando o sujeito não sabe usar as imagens para passar uma informação, ele joga a toalha e manda um locutor dizer. Mas nos filmes de Marker as narrações fazem um contraponto incessante com as imagens, e em alguns casos pode-se dizer que são dois fluxos paralelos, um de imagem, outro de som, que parecem realizados um à revelia do outro, mas convergem e se misturam na mente do espectador.

La Jetée (1962), história de FC sobre uma viagem no tempo para tentar evitar uma catástrofe, é conhecido como “o filme que inspirou Os 12 Macacos”, mas li por aí que inspirou também o videogame Fallout.  É um filme feito inteiramente sobre fotos fixas em preto e branco, acompanhadas de narração. A Embaixada (1973) mostra um numeroso grupo de pessoas que se refugiam numa embaixada estrangeira para fugir a um golpe militar que está fuzilando gente nas ruas; somente nas últimas imagens ficamos sabendo que aquilo ocorre em Paris.  O fundo do ar é vermelho (1977) é uma colagem fascinante sobre as guerras e os movimentos políticos do século 20, enquanto O sexto lado do Pentágono (1968) documenta a famosa marcha sobre o Pentágono em protesto contra a Guerra do Vietnam. Marker criou um cinema só seu mas do qual todo cineasta tem o que aprender, e não duvido que daqui a 50 anos sua obra ainda sirva de referência.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

2939) Escher-Lovecraft-Borges (2.8.2012)




A primeira obra de M. C. Escher que vi na vida, com uns 12 anos, foi a gravura “Escadaria” (1951), reproduzida numa revista, e que ocupou meu juízo por muito tempo. É um labirinto de escadarias verticais, horizontais e oblíquas, pelas quais se arrastam lagartos mecânicos feitos de partes articuladas (que ele chamava “wentelteefjees”, “bichos rolapé”). 

O que me fascinou primeiro foram esses monstrinhos articulados. Todo garoto adora monstros.  Um dia, depois de olhar muito para os  monstros, tentei entender o labirinto que eles percorriam, e fiz a pergunta fatal: “Peraí... onde é o chão?”.  Perdi o chão e não o achei de volta até hoje.  

Para Escher, aquelas centopéias-robô são apenas um ponto de referência de movimento, direção, orientação visual. O monstro é o espaço absurdo.

Nos contos de H. P. Lovecraft, o monstro surge como protagonista. Seu mundo é um mundo organizado e racional no qual irrompe de repente a presença maligna de algo impossível. É o mundo em que ele acreditava: um mundo com as obrigatórias três (ou quatro) dimensões, onde o Tempo se organiza em passado-presente-futuro e o espaço em norte-sul-leste-oeste. Um mundo onde existem os reinos animal-vegetal-mineral; os cinco sentidos; os elementos químicos.  

E nesse mundo geométrico, racional, brota alguma coisa disforme, glóbulos de caos, tumor de formas, uma presença maligna cuja existência põe em perigo todo o resto. Como numa teia de aranha, o universo de Lovecraft é um desenho de Ordem que tem no seu centro um Monstro.

Nos contos de Jorge Luís Borges (os contos de FC-metafísica de Borges, cuja obra é bem mais variada que a de Lovecraft) não aparecem muitos monstros. (O mais notável deles é o de sua homenagem a Lovecraft, “There are more things”, em O Aleph.)  

Borges vai mais fundo e, como Escher, interfere no software conceitual que nos orienta no mundo físico. Seu espaço é múltiplo (Babel: hexágonos infinitamente ladrilhados como num papel-de-parede) e desconexo (Tlon: produzido aleatoriamente pelas mentes que o habitam). 

Seu tempo não parece uma linha de metrô como o daquelas FCs onde se vai e se volta num “tubo” inalterável; é um torvelinho browniano onde não se cruza duas vezes o mesmo local. Cada ponto é ao mesmo tempo zero-cartesiano, zênite, nadir, ponto-de-fuga no horizonte...  Cada vez que os reinterpretamos assim, o sentido da história muda. 

Borges, Escher e Lovecraft eram três racionalistas empedernidos que intuíram, cada qual ao seu modo, que a racionalidade não esgota o mundo.  A racionalidade é uma simples grade métrica aplicada ao caos.  Pisamos com cuidado nela, e fingimos não ver os espaços vazios que ela nos oferece.





quarta-feira, 1 de agosto de 2012

2938) Morcego da Madrugada (1.8.2012)



“Boa noite, galera. Aqui na emissora mandam a gente dizer bom dia. Mas o Morcego acredita que a madrugada pertence à noite, até os raios de sol virem estragar o nosso sonho ou cancelar nosso pesadelo, valeu?  Acabamos de ouvir com Zé Ramalho ‘A dança das borboletas’ e em seguida ‘In-a-Gadda-da-Vida’ com o Iron Butterfly. E está na hora de mais uma ligação dos nossos ouvintes.  Estamos na linha com Herbert... fala, Herbert. “Fala Morcego, é um prazer estar aqui nesse papo”. Herbert, tu mora onde? “Moro em Bodocongó, perto do campus”. Ok, você sabe como é; você vai pedir uma música e contar uma história que justifique esse pedido. “Certo, Morcego. A história é simples. No ano passado eu dei aulas num desses campus do interior. Eu passava dois dias lá e o resto da semana aqui. Dava aulas até as onze da noite e ia direto pra Rodoviária, pegava o ônibus pra vir dormir em casa em Campina, eram quatro ou cinco horas de viagem”.  Mas no ônibus já rolava um cochilo, né? “Isso mesmo. Você fecha o olho ali e já vai botando o sono em dia. Mas nessa noite, numa das paradas, subiu uma garota e sentou do meu lado. Eu vinha na janela, ela sentou, a gente acabou trocando algumas palavras, eu acendi aquela luzinha pra ela arrumar uma valise junto da poltrona.  E aí engatamos um papo. Aí quando a gente pegou a estrada de novo ela ligou um iPod, ficava no bolso do casaco dela e somente os fios dos fones saíam pros ouvidos.” Sei como é. Era bonita, Herbert? “Rapaz, era, era bonitinha, mas não é essa a questão. A questão é que bastou a gente se olhar, olho no olho, e sentir a voz, e a presença, rolou um clima. “Rapaz, rolar um clima é sempre um momento importante”. Pois é, ficamos conversando, e tal, e eu já estava muito a fim dela, e, sem querer contar vantagem, ela de mim.  Não sei explicar.  É por isso que as pessoas acreditam em reencarnação, embora eu não acredite. Aqui no ar eu não posso dizer o que aconteceu. Aconteceu tudo.  E ela colocou um dos fones no meu ouvido, e tudo que fizemos foi com esse disco como trilha sonora”. Beleza, e qual a música que você vai pedir? “A que tocou num dos momentos cruciais. Olha, vou repetir: meu nome é Herbert, ensino no curso de Arte & Mídia, e se ela estiver ouvindo ela sabe onde me procurar. A música que eu peço é ‘Beat Avenue’ com Eric Andersen, conhece, Morcego?”  Não só conheço como já toquei aqui no programa. Herbert, boa sorte aí no reencontro... O Morcego da Madrugada está aqui pra tocar as músicas que valem a pena ser tocadas, e para contar as histórias que não podem ser contadas à luz do sol. Aperta o play, Tony... Com vocês, ‘Beat Avenue’”.

terça-feira, 31 de julho de 2012

2937) "O Bandido da Luz Vermelha" (31.7.2012)






Para mim é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, impressão que se manteve quando o revi agora, depois de mais de 20 anos.  Os puristas ficarão zangados, mas os puristas são como os turistas, não gostam de ver o lado sujo das coisas. Mario Quintana disse que um crítico é um sujeito que ao ver uma bela tapeçaria dá a volta para ver como ela é pelo avesso; alguns artistas são assim também. 

Rogério Sganzerla tinha 22 anos quando fez este filme em 1968, com uma equipe minúscula e pouco dinheiro, filmando em preto-e-branco no meio da Boca do Lixo de São Paulo. Era um contestador do Cinema Novo que, segundo ele, tinha se “aburguesado”, deixara de ser um cinema de esquerda, revolucionário, e estava seduzido pelos elogios da crítica européia e pelos prêmios nos Festivais. Sganzerla seguiu a receita criada (ou aperfeiçoada) por Glauber Rocha, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”, e nota-se em seu filme muitas pequenas influências (inevitáveis, aliás) dos dois grandes filmes de Glauber até então, Deus e o Diabo... e Terra em Transe.  Alguns detalhes, no entanto, são essenciais.  Sganzerla não toma uma atitude de esquerda; sua crítica à sociedade é o que hoje chamaríamos de “atitude punk”, o chute-no-pau-da-barraca, o niilismo.  A frase-lema do filme é: “Quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha; avacalha e se esculhamba”.  Tanto o governo militar quanto o Partido Comunista discordavam, com veemência.

Cheio de escracho e de improvisações, O Bandido... tem cenas que, se descritas ao pé da letra em twitters, poderiam compor um poema meio surrealista.  Seu ponto forte é a semi-incoerência narrativa (cada cena, no estilo Godard, tem pouco a ver com a anterior), espertamente costurada por um casal de locutores tipo “A Polícia nas Ruas”. É o modelo Cidadão Kane: a reportagem jornalística “fake” fornece um fio de continuidade para cenas que se unem por justaposição, são por consequência.

Num manifesto que lançou na época, o autor disse: “Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, malcomportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário. Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando as leis secretas da alma e do corpo explorado, desesperado, servil, colonial e subdesenvolvido”.  É um filme anarco-punk, que ridiculariza tudo mas não celebra seus heróis, antes os encaminha para o matadouro com uma mistura de diversão sádica, irresponsabilidade adolescente, e aquele deboche de quem sobe ao cadafalso esculhambando o carrasco.

domingo, 29 de julho de 2012

2936) As histórias da Pixar (29.7.2012)






Contar histórias no cinema é diferente de contá-las no papel, até porque no papel o texto precisa dizer (ou deixar subentendido) tudo, e no cinema grande parte disso fica a cargo da expressão facial e da voz dos atores, dos movimentos de câmara, do visual, da direção de arte...  E o escritor do cinema pode se concentrar no que (para o cinema) é o essencial da arte de contação de histórias: quem são os personagens, e o que acontece com eles.

Emma Coats escreve para a Pixar, uma das produtoras mais eficientes na narrativa de cinema de animação (Toy Story, Monstros, Procurando Nemo, Wall-E, etc.). Ela compôs uma lista de dicas sobre narrativa que são muito úteis, talvez não para quem quer escrever um romance tipo Vidas Secas, mas para quem quer escrever um filme como os da Pixar (e algo me diz que no Brasil tem mais gente querendo esta segunda hipótese do que a primeira). Comentarei alguns.

Coats diz: “A gente admira mais o esforço de um personagem do que os seus sucessos”. Isto é a medula do espírito norte-americano na literatura, cinema, auto-ajuda, tudo: não desista, vá em frente, não se deixe abater, não desista nunca, no fim vai dar certo. Funciona bem para o público dos EUA, impressiona fora, mas não é uma verdade psicológica tão universal quanto parece.

Coats sugere um esqueleto narrativo universal: “Uma vez havia _____. Todos os dias, _____. Um dia, _____.Por causa disto, _____.  E por causa disso, _____, Até que finalmente _____”. Aí estão as formas básicas da narrativa simples: situação, interferência, enfrentamento das interferências, solução – de preferência, ao invés de um retorno ao ponto inicial, a chegada a um equilíbrio mais complexo, numa nova situação, melhorada por tudo que aconteceu.

Diz ela: “Defina o final da história antes de imaginar a parte do meio. É sério. Todo final é complicado, e você deve preparar o seu desde logo.”  Ao escrever um conto, sem compromisso, você pode correr o risco de improvisar tudo enquanto escreve (eu faço isto o tempo inteiro). Num filme de 100 milhões de dólares que vai ser visto por 100 milhões de pessoas, não se pode correr esse risco. Tudo tem que se encaixar.

“Desmonte as histórias de que você gostou (para ver como funcionam). O que você gostou nelas faz parte de você, e é preciso identificá-lo antes de pô-lo em uso”. O que você gostou numa história é, em geral, algo que você já entende, e que, com o treino correto, será capaz de reproduzir de uma maneira pessoal, sua. Também é importante desmontar as histórias ruins (ou as histórias quase-boas) para saber por que motivo chegaram tão perto de serem boas e desperdiçaram a chance.