sexta-feira, 3 de agosto de 2012

2940) Chris Marker (3.8.2012)


Faleceu dias atrás, aos 91 anos, o cineasta Chris Marker, o autor de La Jetée, talvez seu filme mais conhecido.  Mesmo na tribo dos cinéfilos há muita gente que o desconhece, porque Marker escolheu aquela forma peculiar de invisibilidade que é a direção de documentários.  E ainda por cima aqueles documentários que jamais se enquadrariam numa programação tipo Discovery Channel ou National Geographic. Marker foi um dos sujeitos que mexeram no software do documentário, tanto quanto Robert Flaherty, Jean Rouch, Eduardo Coutinho. Em 2009 o CCBB do Rio de Janeiro exibiu uma enorme mostra de quase toda sua obra, que nos deu a medida da variedade de seus interesses e da quantidade de material que produziu.

Os filmes de Marker foram chamados de “ensaios cinematográficos” e de fato eles são o equivalente aos ensaios literários que misturam o relato jornalístico, a ilustração com pequenos episódios ficcionais, a associação livre de idéias, o memorialismo, o humor, o panfleto, a análise.  Marker faz isso com imagens (de arquivo, ou registradas por ele mesmo), áudio, e principalmente através de narrações em “off”, recurso que ele sempre usou de maneira muito pessoal e enriquecedora.  A narração em “off” virou no documentário o que alguns diretores chamam, com bom humor, de “o último reduto dos covardes”, ou seja, quando o sujeito não sabe usar as imagens para passar uma informação, ele joga a toalha e manda um locutor dizer. Mas nos filmes de Marker as narrações fazem um contraponto incessante com as imagens, e em alguns casos pode-se dizer que são dois fluxos paralelos, um de imagem, outro de som, que parecem realizados um à revelia do outro, mas convergem e se misturam na mente do espectador.

La Jetée (1962), história de FC sobre uma viagem no tempo para tentar evitar uma catástrofe, é conhecido como “o filme que inspirou Os 12 Macacos”, mas li por aí que inspirou também o videogame Fallout.  É um filme feito inteiramente sobre fotos fixas em preto e branco, acompanhadas de narração. A Embaixada (1973) mostra um numeroso grupo de pessoas que se refugiam numa embaixada estrangeira para fugir a um golpe militar que está fuzilando gente nas ruas; somente nas últimas imagens ficamos sabendo que aquilo ocorre em Paris.  O fundo do ar é vermelho (1977) é uma colagem fascinante sobre as guerras e os movimentos políticos do século 20, enquanto O sexto lado do Pentágono (1968) documenta a famosa marcha sobre o Pentágono em protesto contra a Guerra do Vietnam. Marker criou um cinema só seu mas do qual todo cineasta tem o que aprender, e não duvido que daqui a 50 anos sua obra ainda sirva de referência.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

2939) Escher-Lovecraft-Borges (2.8.2012)




A primeira obra de M. C. Escher que vi na vida, com uns 12 anos, foi a gravura “Escadaria” (1951), reproduzida numa revista, e que ocupou meu juízo por muito tempo. É um labirinto de escadarias verticais, horizontais e oblíquas, pelas quais se arrastam lagartos mecânicos feitos de partes articuladas (que ele chamava “wentelteefjees”, “bichos rolapé”). 

O que me fascinou primeiro foram esses monstrinhos articulados. Todo garoto adora monstros.  Um dia, depois de olhar muito para os  monstros, tentei entender o labirinto que eles percorriam, e fiz a pergunta fatal: “Peraí... onde é o chão?”.  Perdi o chão e não o achei de volta até hoje.  

Para Escher, aquelas centopéias-robô são apenas um ponto de referência de movimento, direção, orientação visual. O monstro é o espaço absurdo.

Nos contos de H. P. Lovecraft, o monstro surge como protagonista. Seu mundo é um mundo organizado e racional no qual irrompe de repente a presença maligna de algo impossível. É o mundo em que ele acreditava: um mundo com as obrigatórias três (ou quatro) dimensões, onde o Tempo se organiza em passado-presente-futuro e o espaço em norte-sul-leste-oeste. Um mundo onde existem os reinos animal-vegetal-mineral; os cinco sentidos; os elementos químicos.  

E nesse mundo geométrico, racional, brota alguma coisa disforme, glóbulos de caos, tumor de formas, uma presença maligna cuja existência põe em perigo todo o resto. Como numa teia de aranha, o universo de Lovecraft é um desenho de Ordem que tem no seu centro um Monstro.

Nos contos de Jorge Luís Borges (os contos de FC-metafísica de Borges, cuja obra é bem mais variada que a de Lovecraft) não aparecem muitos monstros. (O mais notável deles é o de sua homenagem a Lovecraft, “There are more things”, em O Aleph.)  

Borges vai mais fundo e, como Escher, interfere no software conceitual que nos orienta no mundo físico. Seu espaço é múltiplo (Babel: hexágonos infinitamente ladrilhados como num papel-de-parede) e desconexo (Tlon: produzido aleatoriamente pelas mentes que o habitam). 

Seu tempo não parece uma linha de metrô como o daquelas FCs onde se vai e se volta num “tubo” inalterável; é um torvelinho browniano onde não se cruza duas vezes o mesmo local. Cada ponto é ao mesmo tempo zero-cartesiano, zênite, nadir, ponto-de-fuga no horizonte...  Cada vez que os reinterpretamos assim, o sentido da história muda. 

Borges, Escher e Lovecraft eram três racionalistas empedernidos que intuíram, cada qual ao seu modo, que a racionalidade não esgota o mundo.  A racionalidade é uma simples grade métrica aplicada ao caos.  Pisamos com cuidado nela, e fingimos não ver os espaços vazios que ela nos oferece.





quarta-feira, 1 de agosto de 2012

2938) Morcego da Madrugada (1.8.2012)



“Boa noite, galera. Aqui na emissora mandam a gente dizer bom dia. Mas o Morcego acredita que a madrugada pertence à noite, até os raios de sol virem estragar o nosso sonho ou cancelar nosso pesadelo, valeu?  Acabamos de ouvir com Zé Ramalho ‘A dança das borboletas’ e em seguida ‘In-a-Gadda-da-Vida’ com o Iron Butterfly. E está na hora de mais uma ligação dos nossos ouvintes.  Estamos na linha com Herbert... fala, Herbert. “Fala Morcego, é um prazer estar aqui nesse papo”. Herbert, tu mora onde? “Moro em Bodocongó, perto do campus”. Ok, você sabe como é; você vai pedir uma música e contar uma história que justifique esse pedido. “Certo, Morcego. A história é simples. No ano passado eu dei aulas num desses campus do interior. Eu passava dois dias lá e o resto da semana aqui. Dava aulas até as onze da noite e ia direto pra Rodoviária, pegava o ônibus pra vir dormir em casa em Campina, eram quatro ou cinco horas de viagem”.  Mas no ônibus já rolava um cochilo, né? “Isso mesmo. Você fecha o olho ali e já vai botando o sono em dia. Mas nessa noite, numa das paradas, subiu uma garota e sentou do meu lado. Eu vinha na janela, ela sentou, a gente acabou trocando algumas palavras, eu acendi aquela luzinha pra ela arrumar uma valise junto da poltrona.  E aí engatamos um papo. Aí quando a gente pegou a estrada de novo ela ligou um iPod, ficava no bolso do casaco dela e somente os fios dos fones saíam pros ouvidos.” Sei como é. Era bonita, Herbert? “Rapaz, era, era bonitinha, mas não é essa a questão. A questão é que bastou a gente se olhar, olho no olho, e sentir a voz, e a presença, rolou um clima. “Rapaz, rolar um clima é sempre um momento importante”. Pois é, ficamos conversando, e tal, e eu já estava muito a fim dela, e, sem querer contar vantagem, ela de mim.  Não sei explicar.  É por isso que as pessoas acreditam em reencarnação, embora eu não acredite. Aqui no ar eu não posso dizer o que aconteceu. Aconteceu tudo.  E ela colocou um dos fones no meu ouvido, e tudo que fizemos foi com esse disco como trilha sonora”. Beleza, e qual a música que você vai pedir? “A que tocou num dos momentos cruciais. Olha, vou repetir: meu nome é Herbert, ensino no curso de Arte & Mídia, e se ela estiver ouvindo ela sabe onde me procurar. A música que eu peço é ‘Beat Avenue’ com Eric Andersen, conhece, Morcego?”  Não só conheço como já toquei aqui no programa. Herbert, boa sorte aí no reencontro... O Morcego da Madrugada está aqui pra tocar as músicas que valem a pena ser tocadas, e para contar as histórias que não podem ser contadas à luz do sol. Aperta o play, Tony... Com vocês, ‘Beat Avenue’”.

terça-feira, 31 de julho de 2012

2937) "O Bandido da Luz Vermelha" (31.7.2012)






Para mim é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, impressão que se manteve quando o revi agora, depois de mais de 20 anos.  Os puristas ficarão zangados, mas os puristas são como os turistas, não gostam de ver o lado sujo das coisas. Mario Quintana disse que um crítico é um sujeito que ao ver uma bela tapeçaria dá a volta para ver como ela é pelo avesso; alguns artistas são assim também. 

Rogério Sganzerla tinha 22 anos quando fez este filme em 1968, com uma equipe minúscula e pouco dinheiro, filmando em preto-e-branco no meio da Boca do Lixo de São Paulo. Era um contestador do Cinema Novo que, segundo ele, tinha se “aburguesado”, deixara de ser um cinema de esquerda, revolucionário, e estava seduzido pelos elogios da crítica européia e pelos prêmios nos Festivais. Sganzerla seguiu a receita criada (ou aperfeiçoada) por Glauber Rocha, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”, e nota-se em seu filme muitas pequenas influências (inevitáveis, aliás) dos dois grandes filmes de Glauber até então, Deus e o Diabo... e Terra em Transe.  Alguns detalhes, no entanto, são essenciais.  Sganzerla não toma uma atitude de esquerda; sua crítica à sociedade é o que hoje chamaríamos de “atitude punk”, o chute-no-pau-da-barraca, o niilismo.  A frase-lema do filme é: “Quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha; avacalha e se esculhamba”.  Tanto o governo militar quanto o Partido Comunista discordavam, com veemência.

Cheio de escracho e de improvisações, O Bandido... tem cenas que, se descritas ao pé da letra em twitters, poderiam compor um poema meio surrealista.  Seu ponto forte é a semi-incoerência narrativa (cada cena, no estilo Godard, tem pouco a ver com a anterior), espertamente costurada por um casal de locutores tipo “A Polícia nas Ruas”. É o modelo Cidadão Kane: a reportagem jornalística “fake” fornece um fio de continuidade para cenas que se unem por justaposição, são por consequência.

Num manifesto que lançou na época, o autor disse: “Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, malcomportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário. Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando as leis secretas da alma e do corpo explorado, desesperado, servil, colonial e subdesenvolvido”.  É um filme anarco-punk, que ridiculariza tudo mas não celebra seus heróis, antes os encaminha para o matadouro com uma mistura de diversão sádica, irresponsabilidade adolescente, e aquele deboche de quem sobe ao cadafalso esculhambando o carrasco.

domingo, 29 de julho de 2012

2936) As histórias da Pixar (29.7.2012)






Contar histórias no cinema é diferente de contá-las no papel, até porque no papel o texto precisa dizer (ou deixar subentendido) tudo, e no cinema grande parte disso fica a cargo da expressão facial e da voz dos atores, dos movimentos de câmara, do visual, da direção de arte...  E o escritor do cinema pode se concentrar no que (para o cinema) é o essencial da arte de contação de histórias: quem são os personagens, e o que acontece com eles.

Emma Coats escreve para a Pixar, uma das produtoras mais eficientes na narrativa de cinema de animação (Toy Story, Monstros, Procurando Nemo, Wall-E, etc.). Ela compôs uma lista de dicas sobre narrativa que são muito úteis, talvez não para quem quer escrever um romance tipo Vidas Secas, mas para quem quer escrever um filme como os da Pixar (e algo me diz que no Brasil tem mais gente querendo esta segunda hipótese do que a primeira). Comentarei alguns.

Coats diz: “A gente admira mais o esforço de um personagem do que os seus sucessos”. Isto é a medula do espírito norte-americano na literatura, cinema, auto-ajuda, tudo: não desista, vá em frente, não se deixe abater, não desista nunca, no fim vai dar certo. Funciona bem para o público dos EUA, impressiona fora, mas não é uma verdade psicológica tão universal quanto parece.

Coats sugere um esqueleto narrativo universal: “Uma vez havia _____. Todos os dias, _____. Um dia, _____.Por causa disto, _____.  E por causa disso, _____, Até que finalmente _____”. Aí estão as formas básicas da narrativa simples: situação, interferência, enfrentamento das interferências, solução – de preferência, ao invés de um retorno ao ponto inicial, a chegada a um equilíbrio mais complexo, numa nova situação, melhorada por tudo que aconteceu.

Diz ela: “Defina o final da história antes de imaginar a parte do meio. É sério. Todo final é complicado, e você deve preparar o seu desde logo.”  Ao escrever um conto, sem compromisso, você pode correr o risco de improvisar tudo enquanto escreve (eu faço isto o tempo inteiro). Num filme de 100 milhões de dólares que vai ser visto por 100 milhões de pessoas, não se pode correr esse risco. Tudo tem que se encaixar.

“Desmonte as histórias de que você gostou (para ver como funcionam). O que você gostou nelas faz parte de você, e é preciso identificá-lo antes de pô-lo em uso”. O que você gostou numa história é, em geral, algo que você já entende, e que, com o treino correto, será capaz de reproduzir de uma maneira pessoal, sua. Também é importante desmontar as histórias ruins (ou as histórias quase-boas) para saber por que motivo chegaram tão perto de serem boas e desperdiçaram a chance.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

2935) Surrealismo católico (28.7.2012)





(Jorge de Lima e Murilo Mendes)



Em matéria de oxímoro, ou de paradoxo, o título deste artigo merece um prêmio.  Quem tiver alguma familiaridade com o movimento surrealista que surgiu em Paris nos anos 1920 deve lembrar o seu espírito violentamente anti-clerical.  Os Surrealistas, que planejavam dar poderes totais à mente humana, livre de todos os tipos de censura e de coerção, certamente combatiam a igreja da época, um mecanismo de lavagem cerebral só comparável ao dos partidos políticos.  O cinema de Luís Buñuel, com suas provocações permanentes à igreja (L’Âge d’Or, Viridiana, etc.) levou para as grandes platéias o que estava entranhado na poesia de André Breton ou de Benjamin Péret.  Creio que foi Péret quem escreveu certa vez: “Andando pela avenida tal, cruzamos com dois padres que vinham em sentido contrário ao nosso. Diante de tal provocação, não tivemos escolha senão agredi-los”.

É engraçado, porque os dois mais famosos e respeitados poetas surrealistas brasileiros são dois cristãos que soam bastante sinceros, até pelas crises e dúvidas que os acometem (cristão que nunca tem dúvidas terríveis é porque não entendeu o Cristianismo).  Jorge de Lima (1895-1953) e Murilo Mendes (1901-1975) jamais ousariam, como Péret, dar uns cascudos no vigário.  Os dois eram amigos, foram contemporâneos de geração dos surrealistas franceses, mas sua poesia foi (ou veio) em outra direção.  Jorge de Lima publicou em 1952 seu poema-livro Invenção de Orfeu, que na maior parte do tempo é de uma imagética surrealista como poucos brasileiros conseguiram, e numa estrutura épica que poucos surrealistas franceses tentaram, se é que algum tentou.  Murilo Mendes foi também picado por esses dois mosquitos concorrentes, a religião católica e a revolução surrealista.  São dois softwares que parecem se inviabilizar mutuamente, mas nestes dois poetas o surrealismo serviu menos como uma visão do mundo e mais como uma maneira de tratar a linguagem, de manipular a linguagem através de um certo desregramento imaginativo, alimentado pelo inconsciente e logo mantido sob controle. 

Nem sou grande conhecedor dos dois; só tenho de Jorge a Invenção de Orfeu, e de Murilo a antologia O Menino Experimental. Que coisa fantástica, pensa este leitor adolescente de Breton e Buñuel. Religião, política, sexo, violência, drogas, filosofia, rock-and-roll, nenhum desses poderes domina nossa mente se for contrabalançado por todos esses outros. Os católicos têm inconsciente, os católicos também se apaixonam e enlouquecem, os católicos dizem: “O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros”.

2934) "O Torreão" (27.7.2012)



Este romance de Jennifer Egan, lançado agora pela Ed. Intrínseca, tem uma estrutura narrativa inesperada que só vai se revelando aos poucos, misturando duas histórias que soam incrivelmente reais embora uma dela possa ser fictícia.  Em princípio, estamos acompanhando a viagem de Danny King, um “hipster” de Manhattan, a um país da Europa Central, para onde seu primo Howard o convidou com a proposta de trabalhar na restauração de um antigo castelo e transformá-lo num hotel de luxo. Danny e Howard são amigos de infância, mas na adolescência houve um episódio traumático entre os dois, que enche Danny de culpa e de incerteza, porque ele não sabe ao certo as intenções do primo (que agora é riquíssimo, e que ele não vê há muitos anos) ao chamá-lo para aquele lugar remoto.

Esta história vai se misturando aos poucos com a história de um presidiário nos EUA, Ray, que está fazendo uma oficina de escrita criativa na cadeia e começa a botar uns olhos compridos na direção da professora, Holly. Não vou esmiuçar aqui o modo como essas duas histórias se misturam, porque este é um dos truques principais do livro, que é escrito com um controle e uma alegria imaginativa raros hoje em dia.  A crítica o classificou como “romance gótico”, pela presença central do castelo e do seu Torreão cheio de mistérios.  A incursão de Danny King pelo castelo reproduz a incursão de Jennifer Egan pelo gênero gótico: uma pessoa moderna, conectada, penetrando num ambiente com séculos de existência e de história acumulada.  

Esse oposição entre o antigo e o modernoso é uma das polaridades deste livro que fascina e desconcerta, embora este último termo deva ser tomado no melhor dos sentidos.  Egan é uma narradora onisciente que nunca aparece, embora a vejamos manipular os personagens, como aquelas pessoas de preto que seguram os personagens em certos teatros de bonecos: visíveis o tempo todo, mas podemos abstrair sua presença no instante que quisermos.  Este romance concilia o melhor de certa literatura experimental (a busca de modos não convencionais de contar uma história) e da literatura clássica (personagens envolventes, peripécias cheias de suspense). Há um trecho, uma simples linha na página 207 do original inglês, em que o uso de um mero pronome muda o livro inteiro, faz um monte de peças se encaixarem e um monte de fichas caírem. Isto só ocorre em livros ousados, que se atrevem a executar um número de malabarismo na corda-bamba, com pleno domínio da técnica. Um bom livro é aquele que a gente lê a última página às 4 da manhã e volta atrás para reler, porque percebe que a segunda leitura vai ser mais recompensadora do que a primeira. 

quinta-feira, 26 de julho de 2012

2933) "Rage in Rio: The Game" (26.7.2012)



"Na década de 2030, empresas gigantes da Informação criaram o projeto Game Forever, um novo conceito de games de imersão ou de gerenciamento, mesclado ao de ação e aventura, e de informações em tempo real. 

"Sob a influência da franquia GTA (Grand Theft Auto), a SuperWorld Games cresceu teve uma ascensão meteórica na década de 2020, graças aos títulos que lançou naquele estilo. 

"Operando na China, com equipes de milhões de desenhistas adolescentes trabalhando fanaticamente numa atividade que eles consideravam divertida a ponto de ser viciante, a SuperWorld lançou numerosos jogos de hit-and-run ambientados em metrópoles do mundo inteiro: Mumbai, Durban, Istambul, Kingston, Moscou, Rio de Janeiro...

"Durante a produção deste último foi fechada a parceria com o Google Earth, passo natural para a atualização constante dos cenários dos jogos, primeiro em ritmo anual, depois mensal.  

"O governo brasileiro queria incentivar o turismo, e entrou na jogada. O Censo 2030 foi realizado, no Rio de Janeiro, com um esquema high-tech em que os recenseadores não apenas colhiam os dados dos habitantes de cada residência como também filmavam com microcâmaras 3D o interior da casa e seus moradores, para produzir avatares idênticos.  

"Os resultados foram remetidos para as oficinas da SuperWorld espalhadas pela China, e o resultado em 2033 foi a reprodução virtual, 3D, de todo o Rio, por dentro e por fora, no que se tornou o videogame mais vendido de todos os tempo (61 milhões de unidades na primeira semana): Rage in Rio.

"Depoimento de um dos diretores brasileiros do game: 

“Foi uma grande emoção quando, após instalar o jogo e configurar meu carinha com a aparência de um primo meu, saí caminhando pelo aterro do Flamengo, tomei sorvete, comentei o resultado do Fla-Flu (real) da véspera, e recebi respostas condizentes... 

Li as manchetes dos jornais: eram as do dia. Fui até meu prédio, onde pedi ao porteiro (era Severino!) que anunciasse minha visita.  Um dos meus filhos me recebeu à porta. Sentei no sofá. Minha esposa (mais jovem do que hoje) trouxe-me um suco de laranja.  Daí a pouco eu (nessa época tinha barba) vim até a sala receber o visitante. 

Respondi perguntas (corretas, atualizadas) sobre minha família no Nordeste. Folheei livros, e vi em todos o texto correspondente. Era eu, era minha própria família vivendo sua vida eletrônica...  Sujeita à invasão de um jogador mal intencionado, tal como na vida daqui de fora.   

A esperança do governo, anunciada em cadeia nacional, é que facilitar a violência virtual possa diminuir a violência de carne e osso. Esperemos que dê certo. Enquanto isto... burilo avatares”.









quarta-feira, 25 de julho de 2012

2932) Massacre no cinema (25.7.2012)








Muita gente não tem a menor idéia de como um filme de longa-metragem é feito.  Não sabe, e não se interessa em saber.  Deve achar que é como filme de aniversário de criança: organiza-se a festa, chama-se o rapaz com a câmara, e no outro dia o filme está pronto pra passar.  Não é assim.  É um trabalho insano e cansativo, que envolve às vezes anos de preparação, meses e meses de execução, e no final deixa centenas de pessoas esgotadas de tanto esforço.  E custa (geralmente) milhões de dólares – sempre com a expectativa de render bem mais.

Quando a gente se queixa da violência dos filmes, da TV, dos videogames, está de certa forma se queixando não apenas da possível má influência mental que eles possam vir a ter sobre as pessoas, principalmente os mais jovens, mas também do paradoxo de que tanto dinheiro e tanto esforço se concentrem em produzir coisas assim, quando seria possível, talvez, ganhar dinheiro com filmes diferentes – afinal, comédias, filmes românticos, filmes de simples aventuras, tudo isso também costuma dar bons lucros, quando acerta com o “paladar” da galera.

A matança que aconteceu nos EUA na pré-estréia do novo “Batman” de Christopher Nolan não é uma consequência do filme, nem desse tipo de filme.  Os dois são sintomas de nossa fascinação permanente pela violência e pela destruição. Somos seres biológicos, de carne e osso, vulneráveis à violência, condenados à morte, e por isso pensamos nisso o tempo todo.  Somos o único animal que sabe que vai morrer e o único que (como diz o ditado) morre mil vezes de mentira antes de morrer de verdade. Batman, o herói desarmado que evita matar, é o Ego tentando reprimir os Coringas incontroláveis da crueldade, e sentindo sempre o horror de se saber semelhante a eles.

Cresci numa época em que a censura etária era mais rigorosa nos cinemas, e não havia a TV a cabo, como hoje, passando sexo pornô e esquartejamentos explícitos ao alcance de qualquer guri de 10 anos.  A galera de hoje sofre um verdadeiro massacre de violência, e não o faz a contragosto, faz (se bem recordo minha infância) por fascinação própria. Quando eu tinha dez anos eu queria ver isso tudo.  Não queria que acontecesse a ninguém, mas se acontecesse eu queria ver como foi. Não é de admirar que ao lado de 999 caras que querem somente “ver como foi” apareça 1 querendo fazer.  Somos animais de carne e osso com uma trágica consciência da dor, da maldade, da morte.  Um dia nos transformaremos em avatares eletrônicos dotados de consciência, mas enquanto isto não ocorre iremos sentir o que Augusto dos Anjos descreveu como “essa necessidade do horroroso / que é talvez propriedade do carbono”.

terça-feira, 24 de julho de 2012

2931) A antologia Granta (24.7.2012)




Fazer uma antologia que traga no título a expressão “Os Melhores...” é (diria o dr. Machado Penumbra) mergulhar no paradoxo e se expor ao vitupério.  Tudo que não é quantificável, como é o caso da qualidade literária, fica sujeito ao que a linguagem popular denomina de “gosto”, um nó-górdio que não se deslinda e só se pode cortar com a frase (talvez inventada por Seu Lunga) “gosto não se discute”.

A função de um antologista ou de um crítico os obriga a equilibrar o seu gosto com um conjunto diferente de expectativas.  Sua leitura, sem deixar de ser uma leitura pessoal, tem também uma visão coletiva, porque sua função naquele momento tem algo de normativo, de definidor de parâmetros.  Uma antologia que usa a expressão “Os melhores...” tende a transformar seus contos em sinalizadores. Os escolhidos de hoje são os imitados de amanhã.  Em casos assim, a preferência pessoal dá um passo atrás e cede a vez a uma preocupação mais ampla.  O crítico não está premiando unicamente o que lhe agrada, mas o que lhe parece mais necessário e mais enriquecedor para o conjunto da literatura, naquele momento específico.

A antologia Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros, organizada pela Editora Alfaguara e revista Granta, definiu uma série de limites para participação (autores até 40 anos, com pelo menos um conto publicado, que enviassem um conto inédito).  Recebeu 247 originais, e os sete jurados (entre os quais há amigos meus) escolheram 20. Mesmo considerando que estes 20 fossem superiores aos 227 restantes, é perfeitamente justo imaginar que existem no Brasil outros 20 autores, ou outros 200, igualmente bons e que por alguma razão não se inscreveram.  (Não li a antologia, e não tenho motivos para supor que os contos não sejam bons.)

Quando organizei minha antologia Páginas de Sombra – Contos Fantásticos Brasileiros, um amigo me sugeriu que incluísse no título o termo “melhores”. Respondi que não podia considerar aqueles 16 contos os melhores de nossa literatura fantástica, até porque seria impossível ler e comparar os milhares de candidatos; e um leitor de bom senso iria considerar que ninguém incluiria numa antologia um conto que não merecesse ser lido. “Bobagem”, disse ele, “tanto faz. O público quer ter a ilusão de estar levando para casa o melhor produto, porque há cem anos as agências de publicidade lhe vendem a melhor cerveja, o melhor pneu, o melhor plano de saúde ou de telefonia. Ele precisa da ilusão de que está comprando ‘o melhor’, mesmo que isto lhe seja dito pelo próprio fabricante”.  Toda antologia que anuncia “Os Melhores” está com um pé na crítica literária e o outro na propaganda.