terça-feira, 16 de novembro de 2010

2402) Liberdade de imprensa (16.11.2010)



(Ilustração: J. I. I. Grandville)

Liberdade de imprensa é liberdade de empresa. É uma coisa importantíssima e necessária, uma coisa que afeta a vida de todos nós. Mas não é um valor absoluto. Nós, jornalistas, temos o hábito de dizer (por fé democrática e por instinto de sobrevivência) que a liberdade de imprensa é um valor absoluto, mas não é, valores absolutos não existem. A vida, o amor, a liberdade... nada disso é valor absoluto, tudo precisa estar em contexto. Nada existe fora de contexto. Se a vida, por exemplo, fosse um valor absoluto, um sujeito não seria absolvido por tirar uma vida em legítima defesa. Se a liberdade fosse um valor absoluto, ninguém poderia ser preso. Se o amor fosse um valor absoluto, não se poderia condenar um homem que por amor matasse uma mulher. E assim por diante.

Liberdade de imprensa é a liberdade que têm os donos de um jornal (ou de uma empresa de telecomunicações, no sentido mais amplo) de defender os interesses que eles julgam corretos. Se julgam correta a democratização do país, eles usam seu jornal para lutar por isso. Se julgam correta a abolição da pena de morte, o protecionismo alfandegário ou as cotas raciais nas escolas, têm o direito de instruir seus empregados (os jornalistas) para defenderem essas ideias. Da mesma forma (visto que vivemos numa democracia) um dono de jornal ou de TV que julga correta a busca da maximização dos próprios lucros, dentro da lei, tem todo o direito de lutar por isso. Se ele é a favor da pena de morte, se é contra o protecionismo ou contra as cotas, também pode mobilizar seus redatores para, sempre agindo dentro da lei – que é, ou deve ser, o limite de ação para todos, não é mesmo? - defender essas ideias.

A liberdade de imprensa ideal seria aquela em que um redator pudesse publicar uma enorme matéria de capa contradizendo o interesse do dono do jornal. Pense numa liberdade grande! Mas isso deve ocorrer muito raramente, e em pequena escala. Colunistas como eu, por exemplo, geralmente contam com a benevolência das empresas, mesmo quando discordam delas. Uma coluna é uma matéria assinada, que exprime a visão do autor, não a da empresa. E a empresa pode aproveitar isso para dizer: “Olha aí como nós somos democráticos. O cara é nosso empregado, defende um interesse contrário ao nosso, mas a gente não só não o expulsa, como ainda publica o texto dele, e lhe paga por isso.”

Informação, interpretação e opinião são as três moedas da imprensa, cujo valor oscila mas nunca se deteriora. Em qualquer época e em qualquer circunstância haverá multidões precisando das três, sempre que as acreditarem legítimas. E o mais importante é que em qualquer país coexistem moedas contraditórias, porque cada jornal enxerga e defenda uma verdade diferente. A primeira liberdade de imprensa é permitir que as imprensas sejam muitas; depois, que os interesses sejam claros, o debate seja aberto. E que os valores sejam nobres, se não for pedir demais.

domingo, 14 de novembro de 2010

2401) A receita da felicidade (14.11.2010)




O inesquecível Odair José gravou, em tempos passados, uma canção que tinha este refrão docemente existencialista: “Felicidade / não existe; / o que existe na vida / são momentos felizes”.

Antoine Roquentin, o melancólico protagonista de A Náusea, não teria verbalizado melhor a sofrida epifania que o mantém vivo ao final do romance, escutando uma negra americana cantar: “Some of these days / you’ll miss me, honey”.

O que é a felicidade? Uma alegria sem sobressaltos, sem alterações, sem modulações? Uma euforia momentânea cujo disco engancha e ficamos a senti-la forever? Um estado sorridente, álacre, de-bem-com-a-vida, esfuziante de adjetivos, como a dos personagens de propagandas de refrigerantes e de creme dental? Mistério.

Num texto no New York Times (http://tinyurl.com/2eqhzqa), David Sosa propõe, citando um livro de Robert Nozick, a seguinte experiência (não, não é inspirada em Matrix; o livro precede o filme, pois é de 1974).

 Digamos que é construída uma máquina onde você pode se plugar e ter (virtualmente) qualquer sensação ou situação que desejar. Estímulos neuropsicológicos podem lhe dar uma impressão 100% real de estar escrevendo um livro, fazendo sexo, conversando com amigos, fazendo coisas interessantes. Só que você estaria de fato, o tempo inteiro, flutuando num tanque, com eletrodos afixados ao seu cérebro. A pergunta é: Você acha que isso é a felicidade? Você gostaria de viver assim?

Suponho (agora sou eu quem fala) que metade das pessoas diria: Sim, por que não? Melhor viver assim, numa Felicidade Virtual, do que viver pegando trânsito, pagando contas, ralando no dia-a-dia. Beleza; entendo perfeitamente que prefiram essa tranquilidade, essa utopia cibernética, esse paraíso artificial. Mas outra metade diria: “Não, prefiro viver como vivo, e me arriscar a não ser feliz nunca, ou ser apenas de vez em quando, como Odair José”.

Estas pessoas talvez se identifiquem com o que David Sosa examina em seu artigo. Ele diz, em suma, que a felicidade não é individual, é coletiva, ou pelo menos é socialmente interligada. Ser feliz não é apenas sentir-se bem consigo mesmo, é sentir-se bem de uma maneira que dependa das consciências alheias. Não basta ser feliz, é preciso que nossa felicidade seja testemunhada e de certa forma compartilhada pelos outros.

Diz ele:

“Quando nos recusamos a nos plugar nessa máquina, que nos proporciona tais experiências artificiais, exprimimos nossa crença profunda de que o que obtemos de uma máquina não é a coisa mais valiosa que podemos obter; não é o que queremos de um modo mais profundo, não importa o que possamos pensar quando estamos plugados nela. A vida nessa máquina não é a obtenção do que buscamos quando falamos numa vida feliz. Existe uma diferença crucial entre ter um amigo e ter a experiência artificial de ter um amigo. Existe uma importância entre escrever um romance e ter a experiência artificial de escrever um romance”.




sábado, 13 de novembro de 2010

2400) A palavra forma (13.11.2010)



(foto: Irving Penn)

Alguém duvida que seja esta uma das palavras mais importantes do idioma? É um dos conceitos abstratos mais pervasivos e onipresentes, porque tudo tem forma, tudo que existe existe através de algum tipo de manifestação física ou mental, e essa manifestação tem forma sob algum aspecto. Deus, por exemplo, este amplíssimo conceito que engole todos os demais. A forma de Deus é a totalidade, daí a “boutade” do surrealista Naville, que o chamou “O Grande Imóvel” (pois se Deus é tudo não pode mover-se para outro espaço, pois isto subentenderia que é um espaço além dele próprio). A forma de Deus coincide com a forma do Todo que somos capazes de imaginar, seja ele espiritual, seja ele físico (o Universo, ou o cacho-de-bolhas de todos os Universos físicos possíveis).

Não devemos confundir forma com a palavra fôrma, mesmo que o acento diferencial tenha caído. Uma fôrma é um molde que produz uma forma mas é criado por ela – só se constrói uma fôrma para perpetuar uma forma que, com o uso, se consagrou, e precisa ser mantida e multiplicada. A fôrma é consequência da forma. O mesmo pode se dizer da fórmula, que não passa de uma “fôrma” abstrata, um conjunto de sinais matemáticos ou químicos, que em princípio tem como função produzir o mesmo resultado quando aplicada.

O interessante é que o mesmo conceito se usa em latim como “form-” e em grego como “morph-”, numa inversão sonora cuja nomenclatura e razão de ser deixo aos gramáticos. Mas a consequência desse fato é que a ciência das formas é a morfologia, e a mudança de forma é uma metamorfose.

A palavra ocorre também no uso dos termos formal/informal quando nos referimos ao modo de se comportar ou de se vestir. Quando um jantar ou um traje são formais, isto significa uma expectativa de que correspondam a uma determinada forma, ou maneira de ser. Quando não, tornam-se aquilo que na linguagem informal chamamos de “alavontê”, não há forma prevista, cada um faz como lhe der na telha. Outra derivação muito popular é “formosa”: que tem belas formas.

Uma expressão interessante e muito em uso é “na forma da lei”, ou seja, “exatamente como a lei determina”. Todos sabemos que a lei tem forma (também chamada de “a letra da lei”) e tem espírito, tanto é assim que muitas vezes dizemos que determinado juiz agiu mais de acordo com o espírito da lei do que com a sua forma. Ou seja, o juiz foi capaz de entender em profundidade a intenção de quem criou aquela lei, e de perceber que a formulação por escrito dessa intenção apresentava uma falha, ou uma ambiguidade, ou uma incompletude; e que para ser fiel à ideia seria preciso ir além do texto escrito, mesmo que aparentemente contradizendo-o. Num caso assim, talvez fosse linguisticamente correto dizer que o juiz agiu de acordo com a “forma” da lei (sua intenção original, o pensamento que lhe deu origem) e não com sua “fôrma” (o instrumento concebido para aplicar aquela intenção).

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

2399) Novas formas de arte (12.11.2010)




(Buster Keaton, em Film)

Muitos admiradores das artes plásticas se escandalizaram quando, no fim do século 19, alguns artistas pararam de pintar, empunharam tesouras e potes de cola, e passaram a recortar e pregar pedaços de imagens em cima de uma tela. 

A colagem se impôs como método artístico graças, em grande parte, a gente como Picasso, Braque, Max Ernst. 

De certa forma, isso incutiu na cabeça do público uma coisa: para você criar uma obra de arte, você não precisa criar do zero tudo de que ela é feita. Os pedaços podem ser pedaços de algo que já existia. Se eles forem bem escolhidos, bem recortados e bem combinados, o resultado pode ser uma obra nova, original.

O método migrou para outras linguagens. No cinema, uma experiência curiosa é juntar um áudio e um conjunto de imagens que, em princípio, não têm a menor relação. Alguns cineastas começaram a pegar músicas e recriá-las na tela, com certa liberdade. 

Quando Walt Disney fez Fantasia, muitos críticos ficaram horrorizados com seus dinossauros ilustrando a Sagração da Primavera de Stravinsky ou com Mickey Mouse ilustrando o Aprendiz de Feiticeiro de Paul Dukas. 

Depois, vieram cineastas como Ken Russell, que fez verdadeiras viagens psicodélicas para ilustrar a música de Tchaikovsky (Delírio de Amor, 1970), The Who (Tommy, 1975), Franz Lizst (Lizstomania, 1975) e outros. 

A influência de Russell sobre a estética dos videoclips na década seguinte não pode ser subestimada. Ele provou, com uma insistência algo incômoda, que com uma boa edição qualquer imagem parece ter sido feita para aquela música, por mais surrealista ou aleatória que seja.

Mas isso ainda era uma imagem feita a partir da música, sincronizada à música. Com a facilidade da edição e reprodução digital, a coisa está ficando mais divertida. O pessoal está juntando imagem e som que já existem independentemente, e não feitos um em função do outro. 

Vi um filminho que consiste na junção de duas obras disparatadas. A primeira é um curta escrito por Samuel Beckett e dirigido por Alan Schneider, em preto e branco, intitulado Film. É um filme mudo em que Buster Keaton caminha por lugares estranhos e participa de cenas ainda mais estranhas; o clima lembra um pouco o Eraserhead de David Lynch. 

Pois bem, no YouTube foi postada uma versão do filme (que é mudo) acompanhada pela canção do Massive Attack, “Man next door”. São duas obras totalmente independentes; imagino que a música (que é de 1998) não tenha sido inspirada em Beckett. 

A união desse filme mudo e dessa canção “trip hop”, no entanto, resulta numa obra híbrida e perturbadora. (Ver aqui: http://tinyurl.com/24ttla6). Toda imagem pode ser qualitativamente modificada pela presença de diferentes trilhas sonoras, gerando diferentes resultados. O YouTube e outros saites fervilham de experiências desse tipo. A junção de clássicos do som e clássicos da imagem é uma área em que as possibilidades, como sempre, são infinitas.








quinta-feira, 11 de novembro de 2010

2398) Drummond: Rio e Bahia (11.11.2010)



A “Lanterna Mágica” que Carlos Drummond inseriu no seu primeiro livro, Alguma Poesia, que está completando 80 anos, mostra pequenos flashes de cidades por onde o poeta passou, a maioria delas em Minas. Os dois últimos fragmentos, no entanto, são sobre o Rio e a Bahia. No fragmento VII, “Rio de Janeiro”, vemos algo das primeiras impressões do poeta sobre a então Capital Federal. Desde 1922 Drummond já publicava em periódicos cariocas, através de Álvaro Moreyra, mas não tenho ideia de quando viajou ao Rio pela primeira vez. (Ele só se transferiria para lá em definitivo em 1934, para ser chefe de gabinete de Gustavo Capanema, nomeado Ministro da Educação e Saúde Pública).

No poema, existe algo do “Noturno” que Mário de Andrade dedicou a BH, e que começava com “Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos...” Drummond abre com “Fios nervos riscos faíscas”, também uma aliteração de sons reproduzindo uma multiplicação de impressões sensoriais. O linguajar com que ele entrou em contato em terras cariocas parece estar sendo registrado em “Passou a boa! Peço a palavra!”. Drummond, ao seu modo ensimesmado e reticente, registra em voz baixa as impressões sobre a capital: “Fútil nas sorveterias. / Pedante nas livrarias / Nas praias nu nu nu nu nu. / Tu tu tu tu tu no meu coração.” Este último verso é o elástico sentimental puxando o poeta de volta, não se sabe se o “tu” se refere à esposa (Drummond casou com Dolores em 1925) ou à terra natal.

“Mas tantos assassinatos, meu Deus. / E tantos adultérios também. / E tantos, tantíssimos contos-do-vigário... / (Este povo quer me passar a perna)”. Não devemos esquecer que Drummond é contemporâneo da lenda urbana sobre o mineiro que, chegando ao Rio, ficou tão deslumbrado com os bondes que acabou comprando um deles a um sujeito que estava encostado num poste, palitando os dentes. A estranheza dos recém-chegados ao Rio quanto aos assassinatos, adultérios e contos-do-vigário (para não falar na onipresente nudez) não é menor hoje do que oitenta anos atrás. A rigor, mesmo tornando-se intensamente integrado à vida carioca no meio século que se seguiu, Drummond nunca deixou de ser o rapaz que escreveu estes versos.

O último fragmento da “Lanterna Mágica”, o de número VIII, intitula-se “Bahia”, e diz, singelamente, modernistamente: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá.” Drummond era meio eremita, e convictamente sedentário. Viajou pouquíssimo. Sou tentado a ver nessa Bahia mitológica (pensem no que seria a imagem nacional da Bahia em 1930) uma espécie de Pasárgada de Manuel Bandeira, ou o país de “luxo, calma e volúpia” de Baudelaire. Uma Bahia tropical, de praias cheias de morenas sensuais? Também poderia ser o oposto: uma Bahia colonial e barroca, parecida com Minas, uma Bahia de catedrais, santos e claustros, de ruas antigas, estreitas e tortas, uma nova Minas austera e litúrgica, em que o poeta se sentisse em casa. Nunca saberemos.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

2397) “A Volta dos Mortos Vivos” (10.11.2010)



Assistindo tarde da noite, na TV a cabo, A Volta dos Mortos Vivos de Dan O’Bannon (1985), pensei na fascinação que os filmes de zumbis exercem sobre o público jovem. Rapazes e moças adolescentes gostam de quaisquer filmes de terror; veja-se o sucesso serial de Freddy Kruger, Jason, “Serra Elétrica” “Jogos Mortais”, etc. Mas os pútridos zumbis têm um encanto mórbido especial. Lembro ainda hoje minha fascinação, aos dez anos, diante dos zumbis de filmes como Invasores Invisíveis e outros, que comparados aos de hoje são de uma inocência a toda prova, mas na época despertavam calafrios.

Os zumbis são diferentes de Drácula ou de Frankenstein porque são um monstro quantitativo, não personalizado. Não se sabe o que é mais terrível, se a dificuldade em matar um único monstro ou a facilidade em matar bilhões de monstros que não param de surgir em fila indiana, cópias equivalentes ao que acaba de ser exterminado. O zumbi é o morto típico da era da cópia digital, da infinita reprodutibilidade técnica tanto da obra de arte quanto do pesadelo. No século 20 tínhamos o monstro único, indivisível, o monstro tão ímpar quanto o ser humano, quanto o Indivíduo criado pelo Iluminismo. Hoje, temos o monstro inesgotável, inextinguível, cópia da cópia da cópia da cópia, e que não para de brotar.

Para o cinema norte-americano, deve haver ali um pouco do horror de enfrentar povos anônimos, depauperados, sujos, lumpen-proletários: os vietcongs, os talibãs, os habitantes de Canudos, os pobres e esfarrapados em geral. Os zumbis são sub-humanos que, no seu existir incontrolável ameaçam submergir o “humano”. E há também, superposta a esta, uma ameaça mais terrível ainda: o fato de que as pessoas normais (nós, nossos amigos, nossa família) estão sujeitas a se transformar de uma hora para outra num desses monstros. Seu filho pode virar punk. Sua namorada pode virar terrorista. Sua irmã pode virar comunista. Seu marido pode virar um drogado.

Os mortos-vivos são também um pesadelo em torno do tema da recusa à morte, do apego irracional à vida, que deixa de ser vista como valor absoluto. O zumbi é o morto que se recusa a morrer, ou que não consegue morrer. Uma morta-viva no filme de O’Bannon responde por que motivo devoram os humanos: “Porque isso reduz a dor... a dor de estar morto”. É uma explicação de roteirista de filme B, que coça a cabeça por 10 minutos e resolve com uma frase a questão da “motivação dramatúrgica”. Mas é uma angústia metafísica semelhante à do Mr. Valdemar do conto de Edgar Allan Poe, que, hipnotizado, fica com a alma presa ao corpo morto, mantendo-o em funcionamento. No momento em que o transe hipnótico é cortado, a alma se liberta e o corpo se desfaz numa massa liquefeita.

E por último vem o simbolismo do ato de comer cérebros. Um filme é uma projeção luminosa de pessoas sem vida que andam pra lá e para cá absorvendo os cérebros da platéia para continuar existindo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

2396) O racismo e Monteiro Lobato (9.11.2010)



Comentei aqui nesta coluna a recente polêmica envolvendo o livro de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Leitores se queixaram do modo desrespeitoso como a personagem negra, Tia Nastácia, é tratada em certos momentos. Quem leu Lobato sabe que a toda hora a boneca Emília chama a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo de “negra beiçuda”, “negra burra”, etc. É a única que a trata assim: a avó Dona Benta, os netos Pedrinho e Narizinho, todos tratam Tia Nastácia de modo mais respeitoso. Em todo caso, é compreensível que o MEC decida “exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura.”

Pipocaram comentários na Internet dizendo que o livro tinha sido censurado e proibido pelo Governo. Não foi o caso. (Quem quiser mais detalhes pode consultar este blog, que transcreve longos textos do parecer do MEC: http://tinyurl.com/3a3gg9c). Mas esse episódio mostra um grave problema existencial de entidades como o Governo, a Igreja, a Academia, as Escolas, etc. São entidades abstratas organizadas em função de um tipo ideal de comportamento.

Um escritor pode ter personagens racistas, machistas, drogados, criminosos, porque um escritor trabalha com o mundo real e não tem remédio senão descrevê-lo como ele é. As escolas e os governos, contudo, trabalham há séculos com um conceito de mundo real que na verdade é um mundo ideal, o “mundo como deveria ser”, o mundo que tentamos ensinar aos nossos filhos, cheio de valores éticos, regras de comportamento, etc. e tal. São entidades normativas, que pregam uma maneira de ser. A arte (ou pelo menos a maior parte dela) é contraditória, não prega maneira de ser; alardeia suas próprias dúvidas, tentações, descreve o ser humano com todos os seus defeitos.

Nos EUA, todo mês aparece uma biblioteca pública tirando de catálogo os livros de Harry Potter porque a família de uma criança, evangélica, denuncia que a biblioteca está pregando o culto à feitiçaria. E quando algum funcionário tenta conciliar, eles perguntam: “Vocês estão com quem – com Jesus Cristo, ou com Satã?”. Agora imagine se um leitor assim encontrasse na biblioteca livros de Henry Miller, Nelson Rodrigues, Chuck Palahniuk ou Dalton Trevisan!

Voltando a Lobato: seus livros podem trazer para uma criança uma tal quantidade e variedade de coisas positivas que nada perderão com um prefácio ou posfácio que coloque seus momentos racistas num contexto. Inclusive para mostrar que até mesmo pessoas progressistas, como ele foi em vários sentidos, também podem ser preconceituosas. Como diria o Conselheiro Acácio, “ninguém está isento de seus próprios defeitos”. Admiramos tanto os escritores que criamos para eles uma imagem meio “chapa branca”, de um Fulano sem defeitos. É bom poder enxergar a pessoa por trás dos livros.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

2395) O Táxi de Caronte (7.11.2010)




Chegada a hora, peguei o elevador, desci, dei boa-noite ao porteiro que cochilava. O enorme carro negro estava em frente ao prédio, com o pisca-alerta ligado. As únicas pessoas visíveis eram uns meninos sem-teto enrodilhados sob a marquise da farmácia. 

Caronte desceu, entreguei-lhe a valise. Os quiosques da praia estavam fechados e silenciosos. Se não fosse pelo marulho distante dir-se-ia que o próprio mar estava imóvel; mas soprava uma brisa vigorosa, que arrastava um copo de plástico pelo asfalto, com um ruído seco, fragmentado. 

Caronte bateu com força a tampa da mala. Abri a porta traseira, acomodei-me, e partimos. “Onde quer passar primeiro?”, perguntou. 

Eu não tinha pensado ainda, mas de improviso falei que queria ver a fazenda onde passei a infância. 

O carro avançou ao longo da praia. Em questão de segundos o céu clareou, azulou, e um sol atenuado mas veraz iluminou a campina, a caatinga no lugar do oceano, o casarão de cumeeira baixa. Circulamos em torno dele. Era um meio-de-tarde, e lá estavam todos, nos seus afazeres de sempre. Abaixei o vidro, escutei-lhes a voz e o cheiro do curral me envolveu. Nenhum deles viu o carro, com exceção do menino branco e pensativo, cujos olhos se ergueram do livro, e cruzaram com os meus. 

Seguimos, e pedi para rever um carnaval. A trilha poeirenta da caatinga começou a elevar-se, o carro passou primeira, os pneus deslizaram nas pedras do calçamento, os casarões do Pelourinho começaram a passar de ambos os lados, e já era noite novamente. 

Cruzamos ladeiras estreitas, atravessamos o alarido de um bloco sem tocar em ninguém; avistei a calçada na esquina da praça, o casal abraçado. Curiosamente, não lhe dei muita atenção; foi a música (que eu não ouvia desde então) que me produziu o efeito esperado. Achei melhor afastar-me dali, e pedi Londres. 

Cruzamos a ponte, percorremos o Tâmisa, diminuímos o ritmo em Baker Street, depois em Abbey Road. Perdemo-nos no labirinto até chegar ao pub. Pelo vidro pude ver a turma de jovens cabeludos; bebiam erguendo os canecos. Não se ouvia nenhum som, mas pelo movimento dos corpos, pelo erguer dos braços, lembrei a canção que cantáramos a plenos pulmões, pela eternidade e mais um dia. 

A escala seguinte foi Marrocos, novamente naquela tarde poeirenta, de sol escaldante, em que dois hóspedes da pousada se compadeceram de mim e me levaram para um hospital próximo, desidratado pela disenteria, quase em estado de choque. 

Parei diante do prédio de tijolos, enfeitado de azulejos, por entre o tráfego de camelos e bicicletas. A certa altura vi sair dali, fatigado mas impassível, o médico de longos bigodes tristes que me deu alta sorrindo, num francês claudicante: “Vous ne mourirais jamais non plus, monsieur!...” Voltamos. 

Desci diante do prédio, onde o copo de plástico ainda quicava no asfalto, levado pela brisa. Apertei a mão de Caronte. “É uma longa viagem”, disse ele, “mas estamos perto”.


(Este conto foi republicado na coletânea Histórias Para Lembrar Dormindo, Rio, Casa da Palavra, 2013)




sábado, 6 de novembro de 2010

2394) “Waking Life” (6.11.2010)



Este filme de Richard Linklater, de 2001, passou meio despercebido nos cinemas, mas vem adquirindo um perfil “cult” de lá para cá. Caso o leitor não esteja ligando o nome à imagem, trata-se daquele desenho animado que mostra o tempo todo pessoas envolvidas em discussões filosóficas sobre a existência, o ser, o nada, os sonhos e a consciência humana. Vários amigos meus o acham chatíssimo. Eu não acho. Já tinha visto várias partes dele na TV a cabo, e esta semana vi-o inteiro por duas vezes. Cada vez gosto mais. Por que? Bem, em primeiro lugar porque uma parte considerável da minha vida foi e é dedicada a pensar e discutir a respeito da existência, do ser, do nada, etc. e tal. Não o faço por intelectualismo ou esnobismo, faço porque me parecem questões mais interessantes do que saber se vai chover amanhã ou quem vai ganhar o Oscar.

Linklater também não pode ser rotulado como o típico intelectual chato. Ele dirigiu o divertido Escola de Rock com Jack Black e o romântico Antes do Amanhecer com Ethan Hawke e Julie Delpy. Sua filmografia é variada e interessante, e Waking Life tem uma porção de sacadas que deram certo, fazendo dele um filme que merece atenção. A primeira sacada foi transformá-lo num filme de animação. Se ele tivesse a mesmíssima história que tem, com as mesmas cenas e os mesmos diálogos, mas fosse um filme comum, encenado com atores, aí sim, talvez virasse um filme chato. O realismo fotográfico de atores e ambientes daria uma certa aridez às discussões, que ficariam parecidas demais com papos-de-mesa-de-bar. Linklater filmou tudo com atores. Depois do material editado, contratou equipes de animadores e entregou a cada uma delas uma sequência do filme, para que eles cobrissem as imagens com desenhos. Isso deu ao filme uma aura onírica, adequada ao enredo (um rapaz perdido num sonho, do qual desperta no interior de outro sonho, e assim sucessivamente). A colagem de estilos e de traços, além de evitar a monotonia, nos dá exatamente a sensação de estar saltando de um sonho para dentro de outro.

Linklater é um fã de Philip K. Dick (depois ele viria a utilizar esta mesma técnica de animação superposta para filmar O Homem Duplo, de Dick), e é ele próprio quem aparece numa das últimas sequências, jogando pinball e contando um episódio (real) da vida do escritor. A dificuldade em distinguir entre a realidade e o sonho é um tema constante na obra de Dick. O diretor o transforma num tema entre outros, já que as discussões são bem variadas. Há também umas sequências musicais bem interessantes. Não sei por que, tenho uma sensação inexplicavelmente onírica quando chego sozinho num lugar e vejo pessoas desconhecidas dançando, sem que ninguém perceba minha presença, e sem que eu saiba o que estou fazendo ali. Nessas horas, penso que estou sonhando, e mais, penso que estou retornando a um sonho conhecido, que eu já havia sonhado muitos anos atrás. Por que? Não sei. Por isso vejo esses filmes.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

2393) Monteiro Lobato e a negra velha (5.11.2010)



O livro de Monteiro Lobato Caçadas de Pedrinho está tendo sua utilização nas escolas questionada, sob acusação de racismo. (Não, não foi proibido: o Conselho Nacional de Educação apenas recomendou que as edições do livro tragam uma ressalva explicando o contexto cultural em que o livro surgiu.) A personagem de Tia Nastácia, a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo, é frequentemente xingada pela boneca Emília de “negra burra, negra beiçuda” e outras coisas nesse tom. O próprio narrador onisciente do livro, volta e meia, diverte-se ridicularizando esta ou aquela ação da negra, como quando diz que ao ver uma onça ela subiu pelo mastro da bandeira feito “uma macaca de carvão”. Bastou isso para que um leitor indignado protestasse, dando início à polêmica pública.

Existe um livro tristemente famoso que se intitula, se bem me lembro, Comunismo para Crianças, cujo autor defende a tese de que a obra infantil de Lobato fazia parte de uma campanha para disseminar o Comunismo dentro da nossa juventude. Espero que não apareça um dia “Racismo para Crianças” dizendo que ele é um perseguidor da raça negra. Lobato tratava os negros de acordo com o diapasão de sua época, assim como Mark Twain, cujo Huckleberry Finn sofre esse mesmo tipo de acusação. Daí a achar que esses livros são ativamente racistas é uma coisa completamente diferente.

Tia Nastácia, aliás, é descrita na maior parte do tempo como uma personagem cheia de aspectos positivos. É carinhosa, dedicada às crianças, e amada por elas. No Picapau Amarelo ela é raptada pelo Minotauro e levada para o labirinto de Creta; em O Minotauro Dona Benta e seus netos vão à Grécia para salvá-la, e ali descobrem que ela amansou o “monstro de guampas” dando-lhe bolinhos para comer. Em A Reforma da Natureza, após o fim da II Guerra Mundial os líderes e reis da Europa querem reconstruir o mundo de acordo com bases civilizadas e humanistas. Quem é que eles chamam para dar-lhes conselhos? Dona Benta e Tia Nastácia, que fazem as malas e rumam para o Velho Continente para ensinar à Europa a arte de bem viver.

Tia Nastácia e Dona Benta exprimem o lado popular e o lado erudito de uma mentalidade matriarcal, compassiva, humanista, que Monteiro Lobato via como alternativa para um mundo de líderes belicosos e cheios de ambição. O sucesso do “Picapau Amarelo” deve muito a ambas. Um livro como Caçadas de Pedrinho inclui uma dúzia de epítetos zombeteiros contra os negros, mas se fosse proibido isso privaria todos os leitores – inclusive os leitores negros – de conhecer uma bela personagem negra de nossa literatura. Eu li esse livro com 8 anos e nunca achei Tia Nastácia uma personagem inferior ou ridícula. Talvez seja porque cresci numa casa onde havia negras velhas ajudando a cuidar de mim, e aprendi desde cedo a considerá-las gente, apenas gente, iguais a qualquer outra pessoa.