quinta-feira, 21 de outubro de 2010

2379) A Presidência segundo William Tenn (21.10.2010)



(o livro onde o conto aparece)

Comentei aqui o conto de Isaac Asimov, “Democracia Eletrônica” (1955) em que o processo eleitoral no futuro consistirá em encontrar um eleitor perfeitamente mediano para escolher, sozinho, o melhor presidente para os EUA. É possível que Asimov tenha se inspirado no conto “Null-P”, de William Tenn, publicado em 1950 na revista Worlds Beyond. Tenn foi um dos melhores satiristas da FC dessa época, principalmente através das revistas Galaxy e The Magazine of Fantasy and Science Fiction, que trouxeram uma abordagem mais literária e menos tecnológica aos temas da FC.

O conto narra como, após a II Guerra Atômica, o mundo está feito em pedaços e os EUA tentam se reorganizar politicamente. Tanto a Costa Leste quanto a Costa Oeste desapareceram, e “uma vez que tudo que restava do país era o Meio Oeste, o Partido Democrata não existia mais”. A insegurança é total; e então um hospital descobre, durante exames de rotina, um indivíduo estatisticamente normal, chamado George Abnego: “Por uma combinação de circunstâncias não mais notável do que a que produz um ‘royal straight flush’ no pôquer, o físico de Abnego, sua psique e outros atributos variados haviam produzido essa criatura lendária: alguém estatisticamente mediano. (...) Ele tinha casado na idade exata, no ano, mês e dia, em que segundo os estatísticos um americano médio casava; escolhera uma mulher com uma diferença de idade exatamente igual à média estatística; sua renda declarada era a exata renda média de um americano naquele ano”. E assim por diante.

Abnego é eleito presidente dos EUA. A explicação filosófica é que “o homem do século 20 escapara das estreitas fórmulas filosóficas gregas, o bastante para ser capaz de imaginar uma lógica não-aristotélica e uma geometria não-euclidiana; mas até então não tivera a temeridade intelectual de criar uma política não-platônica”. Platão definira a política como o governo dos melhores, e durante milênios a única divergência era sobre quais seriam os critérios para definir essa “melhoridade” e quais os métodos de escolha. Ninguém questionara o princípio básico, até o partido lançador de Abnego propor o conceito do “não-melhor”, da “não-elite”, do governo do médio. Tenn sugere que indícios atuais deste processo são as campanhas que insistem o tempo inteiro para que os candidatos afirmem ser iguais a todo mundo, tomem cafezinho, beijem bebês, etc.

Abnego reelege-se sem parar. Segue-se um período de imensa calma política, em virtude da sua incapacidade de tomar decisões. Ele escolhe ministérios igualmente medianos e inexpressivos. A corrida armamentista desaparece junto com as inovações tecnológicas. Quando uma fonte de energia se esgota, eles regridem à solução anterior. “Os americanos”, diz Tenn, “sempre conhecidos por sua loucura, tinham finalmente se especializado em cretinismo”. Por fim ele se torna Presidente da Terra. Milênios depois, são os cães que estão governando o planeta.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

2378) “Modesty Blaise” (20.10.2010)



Conversando estes dias a respeito de adaptações de quadrinhos para o cinema, me veio à lembrança este filme de Joseph Losey que vi por volta dos 16 anos, e que é baseado numa HQ britânica. Na época, o filme me pareceu a encarnação da Modernidade. Cenas extravagantes e meio surrealistas, narrativa rápida, entrecortada, descontínua (o que para mim, na época, era sinônimo de genialidade). Eu tenho uma, hmmm, cópia para colecionadores; botei no DVD e assisti. David Thomson comenta que o filme é “divertido, mas desnecessário”, e que significava “uma ruptura de Losey com a seriedade, mas sem demonstrar senso de humor”. É isso mesmo.

Modesty é uma espécie de espiã informal que o governo britânico usa como despiste para evitar o roubo de uma valiosa coleção de diamantes. Como é de se esperar, a ação pula de Londres para Amsterdam, daí para a África árabe, de lá para ilhas tropicais... Peripécias se sucedem, sem a necessidade de explicações ou de encadeamento lógico. Como numa HQ despretensiosa (e como em qualquer filme em que o sensorial se sobreponha ao intelecto), as paisagens e as situações surgem pelo seu potencial de ação ou de imagem, e pouco importa se a narrativa as pede; mas são dirigidas por um cineasta mais propenso à reflexão do que à ação. Há cenas divertidas: um agente apertando a campainha de uma casa com a ponta do guarda-chuva, e a casa explodindo; o gangster-dândi (Dirk Bogarde) tendo que escolher entre duas lagostas para o almoço e queixando-se: “Decisões! Decisões! Quero as duas”; Modesty trocando de roupa, exibindo um escorpião tatuado na coxa, e dizendo: “Tenho um ferrão na cauda”; o gangster bebendo um drinque enorme onde nada um peixinho dourado; no final, amarrado ao chão do deserto, ele implora: “Champanhe... champanhe...” São algumas das cenas marcantes, e as únicas que eu lembrava.

Modesty Blaise é uma tentativa de fazer um cinema pop britânico, algo que a série James Bond estava conseguindo com sucesso. Mônica Vitti, a estrela de Antonioni, é um dos charmes do filme, com aquela sua boquinha “vem cá”. O ano de 1966 foi a era da “Swinging London”, quando a capital inglesa, com Beatles e Rolling Stones à frente, era a Meca do pop. Modesty compartilha o espírito descontraído, ilógico e “banda vuô” de filmes como Help de Richard Lester. Também tem algo de Blow Up, que Antonioni estava rodando em Londres, ao mesmo tempo. É curioso que os filmes de Losey e Antonioni compartilhem dois detalhes que chamam a atenção: um plano de detalhe de uma mão fazendo prestidigitação (em Modesty com uma bolinha, em Blow Up com uma moeda), e um mímico com rosto pintado de branco, que aparece com destaque em Modesty e, em grupo, em algumas cenas cruciais do filme de Antonioni. Prestidigitação e teatro são duas palavras chave para o entendimento da angustiada fábula existencialista de Antonioni, e da divertida e inconsequente HQ animada de Losey.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

2377) O Ulisses espanhol (19.10.2010)



O Ulisses de James Joyce é aquilo que os críticos chamam de “um marco do Modernismo literário”. Nesta série de artigos estou comentando alguns livros que o norte-americano Joshua Cohen considera os seus equivalentes em outras literaturas. 

Ao indicar o Ulisses espanhol, surge uma situação curiosa: o livro escolhido por Cohen é Larva, de Julián Rios, de 1983. Ora, isto é mais de meio século após o livro de Joyce. O Modernismo é considerado um momento típico das primeiras décadas do século; será que somente nos anos 1980 a Espanha tomou conhecimento disto? 

Em parte, é possível. Desde a Guerra Civil nos anos 1930 a Espanha mergulhou na ditadura franquista que manteve o país num clima cultural fortemente hostil a manifestações de modernidade. Talvez um concorrente espanhol possível para o livro de Rios fosse o romance de Felipe Alfau Locos: a Comedy of Gestures, de 1928 (um romance de contos interligados, muito elogiado pela crítica), mas este foi escrito em inglês, e publicado nos EUA em 1936. 

Em todo caso, Cohen escolheu o livro de Rios, e justifica assim esta escolha: 

“Talvez seja mais adequado considerá-lo o Finnegans Wake espanhol. A reescritura do mito de Don Juan feita por Julián Rios é acima de tudo um romance com a linguagem. Milalias, vestido de Don Juan, vai em busca de Babelle, vestida de Bela Adormecida, pelo meio de um baile à fantasia, numa mansão decadente em Londres. Os comentários sobre as identidades dos convivas mascarados acabam dando lugar à crítica sobre o poder de mascaramento das palavras – o modo como elas eclipsam significados mais antigos por trás de seu uso cotidiano. A façanha verbal de Rios é igualada apenas pela dos seus tradutores, Suzanne Levine e Richard Francis, o que prova mais uma vez que a verdadeira natureza de um romance antecede o ato de sua escrita, sendo uma espécie de forma ideal buscando concretizar-se em todas as línguas do mundo”. 

Sendo uma obra modernista tardia, temporã, Larva se beneficia de toda uma cultura acumulada de décadas, não apenas em obras literárias seguidoras de Joyce, mas também da fortuna crítica que analisou seus processos, e da sua recepção por parte dos leitores, algo que acaba pavimentando o caminho para que obras futuras sejam aceitas com mais naturalidade. Ainda assim, inquietou por causa de seus trocadilhos multilinguísticos, seus neologismos, suas mutações verbais, sua narrativa sem foco fixo. 

Juan Goyttisolo, ele próprio um grande experimentalista, comentou que Larva era “um terremoto literário e linguístico” que inquietou a literatura espanhola oficial, porque “revelava, através de ilações e de jogos que magnetizam o leitor, conhecimentos e leituras de cuja seiva criadora o nosso Parnaso está carente”. 

Rios, que em geral ajudou nas traduções de seus livros, costumava dizer que “a tradução é uma nova oportunidade de melhorar o original; nenhum livro é perfeito”.




domingo, 17 de outubro de 2010

2376) Drummond: mais “Lanterna Mágica” (17.10.2010)



(Itabira, MG)

Nos oito poemas curtos de “Lanterna Mágica” (em Alguma Poesia, seu livro de estreia de 1930), Carlos Drummond, como um turista dos anos 1920 que chega de viagem, usa essa engenhoca-de-época para projetar na parede imagens coloridas dos lugares por onde andou. O terceiro poema, “Caetés”, é uma minúscula vinheta de cinco linhas, meio irrelevante, na qual ele inclusive repete praticamente a mesma imagem que usara no poema anterior, sobre Sabará, ao dizer: “A igreja de costas para o trem”. (Em Sabará, é a cidade que está “atrás daquele morro, com vergonha do trem”, e “só as torres pontudas das igrejas não brincam de esconder”).

O poema IV, Itabira, promete pelo título autobiográfico algum tipo de epifania pessoal, mas é seco como uma foto em preto-e-branco: “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê. / Na cidade toda de ferro / as ferraduras batem como sinos. / Os meninos seguem para a escola. / Os homens olham para o chão. / Os ingleses compram a mina. / Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”. Este poema é uma espécie de anotação para o que é talvez o primeiro grande poema de CDA sobre sua terra natal, “Confidência do Itabirano” (em “Sentimento do Mundo”).

O poema V, “São João Del-Rei”, volta a evocar o onipresente trem, ao se abrir com a pergunta: “Quem foi que apitou? / Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho”. Mais uma vez Drummond fotografa a imobilidade das cidadezinhas mineiras: enquanto Sabará era “entrevada”, São João Del-Rei é “paralítica”. Lá, “o Rio das Velhas lambe as casas velhas”; aqui, as ruas estão “cheias de mulas-sem-cabeça / correndo para o Rio das Mortes”. Embora a intenção do poeta pareça ser (como a de qualquer turista que fotografa) registrar o que mais lhe chama a atenção em qualquer paisagem, captar o que lhe parece mais único e mais característico, vê-se que acaba registrando sempre as mesmas coisas. As cidades de Minas lhe parecem todas parecidas.

Meu fragmento preferido neste poema-conjunto é o de número VI, “Nova Friburgo”. Consta de apenas uma frase: “Esqueci um ramo de flores no sobretudo”. Isto é tudo que o poeta anota sobre a cidadezinha fluminense. Esta frase me marca de um modo especial porque o Padre Massote, diretor da Escola Superior de Cinema da UCMG, onde estudei, certa vez a citou erradamente numa aula sobre roteirização. Disse ele: “Às vezes uma única imagem é o bastante para captar o espírito de um ambiente. Drummond tem um poema sobre Nova Friburgo que tem apenas uma frase: ‘Um cravo na lapela’”. O fato de Massote confundir as frases é menos importante do que o fato de as duas frases terem uma certa equivalência simbólica ou poética. Tanto o ramo de flores no sobretudo quanto o cravo na lapela parecem evocar um ambiente de uma certa formalidade no trajar, de um certo cavalheirismo meio fora de moda, de uma certa afetividade reprimida. E a lição dele, via Drummond, estava coberta de razão.

sábado, 16 de outubro de 2010

2375) Um Nobel para Vargas Llosa (16.10.2010)



O peruano Mario Vargas Llosa acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Quando essas coisas acontecem, minha primeira reação é lamentar as inúmeras vezes em que me sentei com um livro do autor laureado, li 50 páginas e larguei para ler um livro de outro cara. No “boom” da literatura latino-americana, nos anos 1970, comecei a comprar tudo quanto era livro traduzido dos autores latinos. Pelas minhas mãos passaram livros de Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Manuel Scorza, Carlos Fuentes, Lezama Lima, Manuel Puig, Miguel Ángel Astúrias, Juan José Arreola, e provavelmente outros que não lembro agora. Todos ótimos escritores, claro, mas, por alguma razão misteriosa, os únicos que me ficaram na preferência até hoje foram Garcia Márquez, Borges, Cortázar e Bioy Casares.

Vargas Llosa é um caso especial, porque tentei sem sucesso ler La ciudad y los perros (em português, “Batismo de Fogo”), suas memórias de estudante num colégio militar peruano, mas o livro que acabou caindo nas minhas graças foi Pantaleão e as visitadoras (que dizem ser uma obra menor), uma sátira muito divertida sobre um oficial do exército, muito conservador e emproado, a quem cabe a (in)grata tarefa de fornecer prostitutas para os soldados acampados num posto avançado na selva. As situações são hilárias, o personagem é impagável, e Llosa ainda consegue um “tour de force” com seu modo de narrar a maior parte do livro num esquema aparentemente impossível de manter por muito tempo, invertendo diálogo e descrição.

Nunca li o famoso A Guerra do Fim do Mundo, que Llosa escreveu sobre a Guerra de Canudos, porque sempre achava que primeiro precisava reler Os Sertões (o que só fiz recentemente), e depois porque muitos amigos meus detestam o livro, consideram-no uma interferência indevida em assuntos íntimos e privados de nossa História e da nossa Literatura. Dividido, fui ler outras coisas. Como por exemplo o divertidíssimo Tia Júlia e o Escrevinhador, que é para mim o grande livro dele. É uma história meio autobiográfica, sobre a paixão de um rapaz pela própria tia (que ele insiste em dizer: “Você não é minha tia, é apenas a viúva do meu tio”), alguns anos mais velha. Ele se apaixona por ela e insiste até convencê-la a casar; mas isto é apenas o começo das dificuldades. O caso de amor é intercalado com os capítulos dos melodramas radiofônicos escritos por um radialista que reencarna os folhetinistas do século 19 e os autores de pulp fiction dos EUA. O livro dá um retrato veraz do que era o Peru nessa época. (Houve uma desconchavada adaptação para o cinema, com Keanu Reeves e Barbara Hershey, transpondo a ação para Nova Orleans, já que o público dos EUA não se interessa por histórias passadas em países que ele não sabe onde ficam.) Não sei se o Nobel foi justo, sei que os dois livros que li de Vargas Llosa podem ser relidos até o fim da vida.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

2374) Os mineiros e os anões (15.10.2010)



O resgate dos 33 mineiros chilenos nos lembra as individualidades ocultas por trás dos números. Quando ouvimos falar que 33 mineiros estão soterrados não é muito diferente de sabermos que 2.900 pessoas morreram no ataque ao World Trade Center. É um número. Quando ouvimos notícia sobre uma guerra, ficamos sabendo que 20 mil soldados morreram. No outro dia, vem uma correção: não foram 20 mil, foram 21 mil. Que diferença faz, para nós, essa mudança da algarismos? Nenhuma. O Globo de hoje (quarta, dia 13) traz uma página inteira sobre os mineiros, fazendo algo que a imprensa aconselha a si mesma há décadas: “personalize a notícia”. Ao invés de estatísticas, conte histórias individuais. No fim da história, quando você fornecer um número, pode ser que algum leitor mais inteligente pegue aquela história e multiplique pelo número: “são 33 casos como este, são 20 mil casos como este”. Mas se começar a discussão pelo aspecto quantitativo, o leitor não vai ter o que multiplicar. Morreram 20 mil ou 200 mil, tanto faz.

Dizem que na história tradicional de Branca de Neve os sete anões (que, aliás, também trabalhavam com mineração) eram um grupo indiferenciado. Uma porção de anões sem nome e sem rosto. Foi o talento de Walt Disney e seus redatores que decidiu dar a cada um deles um nome e uma característica: daí que temos Mestre, Zangado, Soneca, Dunga, Feliz, Atchim e Dengoso. Disney sabia que a riqueza de possibilidades e de situações (dramáticas ou cômicas) se multiplica quando temos um grande número de individualidades bem marcadas. Uma situação qualquer envolvendo Zangado e Soneca vai ser desenvolvida, necessariamente, de um modo diferente do que se fosse a mesma cena envolvendo o Mestre e Atchim. Roteiristas de cinema fazem isso há milênios.

À medida que os mineiros emergem do túnel vertical, já se tornaram tão individualizados quanto os anões de Branca de Neve. Este aqui é o mais velho, com mais de 60 anos; aquele ali é o mais novo, com 19. A mera percepção desses números faz com que cada um deixe de ser um “número” e ganhe um traçozinho de individualidade. Tem um que tem duas namoradas. Outro que já sobreviveu a três desmoronamentos. Tem um que é o escritor do grupo. Outro que estava em seu primeiro dia de trabalho quando ocorreu o acidente. Tem um que é boliviano; e outro cujo filho estuda Medicina. À medida que surgem, vão se transformando num nome, num pequeno parágrafo de biografia, num rosto sisudo ou sorridente. Nunca saberemos quem são, como pessoas, mas tornam-se personagens visíveis, cada um com suas peculiaridades. É para personalizar números que a imprensa existe, para contar dramas coletivos através de retratos individuais. É mais fácil com sete anões do que com 33 mineiros, e mais fácil com estes do que com 20 mil mortos de uma guerra, mas mesmo com meia dúzia pode-se dar uma pequena amostra do drama individual a ser multiplicado pela frieza das cifras.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

2373) Livro Eletrônico Incrementado (14.10.2010)



A Feira do Livro de Frankfurt está recolocando em novos termos a evolução do livro eletrônico e o eterno debate sobre “o Fim do Livro de Papel”. A tendência agora é o que eles chamam de “Livro Eletrônico Incrementado” (“enhanced e-book”). Já vi uns protótipos dele por aí, de diversas fábricas e modelos. As variações são muitas, como em todo produto novo que está tateando o mercado. É um tablete leve, achatado, com uma tela e alguns comandos, e uma memória onde a gente pode descarregar arquivos digitais com milhares de títulos.

Ali você tem a chance de ver o livro em diversos formatos, com as opções de mudar o estilo da fonte, o tamanho da fonte, a cor da fonte, a cor do fundo... Eu sou meio fetichista visual, e gosto de variar o aspecto da minha página. Quando escrevo estes meus artigos, por exemplo, raramente estou usando letras pretas sobre página branca (por acaso, é justamente o que estou usando agora; mas sou honesto, e não mentirei). Em geral gosto de usar (por exemplo) fundo preto com letras brancas em fonte Courier New; ou letras amarelas em fonte Paladino Linotype sobre fundo vermelho; ou letras azul-marinho em fonte Georgia sobre fundo vermelho-claro; e assim por diante. Por que isso? Ora, porque isto me dá uma sensação de enorme liberdade visual, depois de quatro décadas contemplando letras pretas sobre papel branco.

O Incrementado, no entanto, traz muito mais do que isto. Ilustrações à pampa, é claro, sem que isto modifique o preço do livro. Profetizo que o livro eletrônico será o grande mercado para as obras sobre pintura, História da Arte, etc. – imagine só, todas as obras do Louvre, em alta resolução, com opção de zoom nos detalhes, num livro bem levezinho, e pelo mesmo preço dum livro comum! Além disso, o Livro Eletrônico incrementado terá hipertextos com ensaios críticos, históricos, biográficos. Links para fontes específicas na Internet onde será possível baixar arquivos ou informações atualizadas sobre o assunto do livro. Clips de entrevistas com o autor ou com críticos literários; trechos de filmes ou de séries de TV baseadas na obra. Pequenas ilustrações animadas, grande atrativo para os livros infantis. Brincadeiras interativas que darão ao livro um perfil quase de jogo.

Tudo muito bom, mas por alguma razão o gutemberguiano em mim olha isto com desconfiança. Porque na verdade não é o livro que está se expandindo, é o mundo do videogame e da TV que estão se expandindo para dentro do livro. O livro eletrônico é do mesmo tipo sanguíneo que essas coisas, e vai virar um “recebedor universal”. Eu não coloco em momento algum a questão do eletrônico versus papel. O problema aqui é texto versus imagem. Em vez de nos preocuparmos com o fim do livro de papel, deveríamos nos preocupar com o encolhimento do Texto, da Literatura, espremida por mídias mais intuitivas. Estamos inventando, passo a passo, o Livro Para Quem Não Sabe Ler.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

2372) Colégio de Brotos (13.10.2010)



Oscarito é a cara da chanchada brasileira, e uma coisa que ele fazia muito bem era macaquear o discurso pomposo, fosse científico ou político. No começo de Nem Sansão nem Dalila ele aparece como um professor universitário dando uma aula sobre o Tempo, e utilizando-se do Paradoxo de Zenão, que Jorge Luís Borges cita a três-por-dois em sua obra. Em Colégio de Brotos de Carlos Manga (1956), ele é Agapito, o zelador de um colégio interno. Em sua primeira aparição na tela, está fantasiado de professor, empunhando uma caveira, e dando para uma sala vazia uma aula sobre as teorias de Lombroso, para quem um criminoso tinha sempre um conjunto característico de traços faciais.

Colégio de Brotos foi sucesso naquela época, e um dos meus filmes preferidos quando garoto. Dele eu lembrava, acima de tudo, uma cena que se passa no museu do colégio, quando Oscarito entra lá à noite e é ameaçado seguidamente por uma armadura medieval, estátuas de guerreiros primitivos, e uma múmia. No fim descobre-se que era o vilão, infiltrado no colégio para roubar umas moedas raras, mas mesmo na época eu ficava me perguntando se o vilão se vestia de múmia e ficava à espera, para o caso de alguém entrar ali de madrugada.

Essas incoerências são a coisa mais encantadora do filme B, uma vez que os filmes A têm na equipe alguém para cortar tudo que não tenha uma explicação lógica. Vai daí que as chanchadas da Atlântida tinham de vez em quando essa saborosa imprevisibilidade. Por exemplo: o filme se passa num colégio interno, onde estudam rapazes e moças, todos dormindo nos respectivos alojamentos (assim como os professores); mas eles chamam aquilo o tempo todo de “universidade” e “faculdade”. E à noite alunos e professores ficam dançando numa boate (visivelmente dentro do colégio) ao som de uma orquestra!

Sérgio Augusto, no indispensável Este Mundo é um Pandeiro (Cia. das Letras, 1989), diz que o filme se inspira em Escola de Sereias (“Bathing Beauty”, 1944, filme de George Sidney com a anfíbia Esther Williams). O filme de Manga é uma chanchada curiosa, porque não se passa no Rio, ou pelo menos em nenhum momento se fala no Rio. Como o astro do filme é Francisco Carlos, a ação se divide entre o colégio, com boate e tudo, e uma emissora de rádio onde ele faz carreira. As únicas cenas externas são os jardins do colégio, onde rapazes e moças caminham sobraçando livros e cadernos, e, à noite, sentam nos gramados, ouvindo Francisco Carlos cantar serenatas. A noção de espaço e de tempo do filme B, principalmente o brasileiro, merece uma tese de mestrado. No caso de Colégio de Brotos, não sei se alguma universidade brasileira dos anos 1950 se parecia com aquele ambiente, e por que motivo é chamada de “colégio”. Há rapazes de terno, e há rapazes de pulôver, inclusive Augusto César Vanucci e Daniel Filho fazendo papéis, bem diluídos, de quase vilões. Por um lado, uma chanchada típica; por outro, um filme único e curioso.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

2371) A Presidência segundo Asimov (12.10.2010)




Isaac Asimov tem um conto, “Democracia Eletrônica”, sobre o possível futuro das eleições presidenciais nos EUA (o conto está traduzido na antologia Sonhos de Robô, Editora Record). 

Num futuro distante, as eleições presidenciais são controladas pelo grande computador Multivac. A família de Norman Muller está em polvorosa, porque o Estado de Indiana, onde eles vivem, será escolhido para a eleição. Esta é a primeira estranheza que o autor infiltra no conto. 

Vemos a expectativa da família, e o mau humor do sogro de Norman, que resmunga o tempo todo, relembra os bons velhos tempos, critica as eleições atuais: “Disseram que o sistema acabaria com os políticos radicais, o desperdício de dinheiro dos contribuintes na campanha e os joões-ninguém sorridentes, vendidos e anunciados para o Congresso ou para a Casa Branca...”

E de pista em pista vamos descobrindo como os presidentes são eleitos nesse futuro. Asimov explica que tudo mudou após o advento dos computadores, e principalmente do Multivac, o sistema que “tinha meia milha de comprimento e três andares”, e “cinquenta técnicos não paravam de andar pelos corredores, dentro de sua estrutura”. Pois é, amigos... o conto é de 1955, que poderíamos chamar A Era dos Computadores-Dinossauros. 

E logo ficamos sabendo que ele, Norman Muller, foi escolhido para ser O Eleitor. Agentes do Serviço Secreto ocupam sua casa, cortam as comunicações, e no dia marcado o conduzem para um lugar secreto. Ele é plugado a sensores que avaliam sua pressão sanguínea, batimento cardíaco, condutividade da pele, ondas cerebrais, etc. , enquanto ele responde perguntas sobre uma infinidade de assuntos, desde coleta do lixo até ser contra ou a favor de um incinerador central.

Mas... por que Norman? Resposta: porque Multivac examinou os dados da população dos EUA, e considerou que ele era “...não o mais esperto, o mais forte, ou o mais sortudo, mas o mais representativo desse ano”. O mais mediano. O eleitor padrão. E é de acordo com as opiniões de Norman que o próximo Governo será eleito. 

No fim do interrogatório, Norman é liberado, e pergunta timidamente quem foi o candidato que ele acabou de eleger. Respondem-lhe que é segredo, e que terá de esperar a proclamação oficial. O que me lembra a velha história do coronel nordestino – o morador do sítio entrega-lhe a cédula em branco, o coronel preenche, bota na urna, o morador pergunta em quem votou e o coronel diz: “Oxente, meu filho, que pergunta é essa?! O voto é secreto!!!”.

O conto de Asimov ilustra um velho ideal científico: a perfeição total na arte da projeção estatística. Dizem os Ibopes que numa pesquisa de recorte bem feito (idade, classe social, região, etc.) chega um ponto a partir do qual a resposta é a mesma, com 2 mil, 200 mil, 2 milhões de pessoas. 

Asimov se pergunta se conseguiremos um dia encontrar a Amostragem Perfeita. Tema atualíssimo... abordado há 55 anos.






domingo, 10 de outubro de 2010

2370) Nova viagem à Lua (10.10.2010)



Pesquisando a história remota da FC no Brasil, buscamos algo que se assemelhe aos livros que Julio Verne ou H. G. Wells estavam publicando na Europa, e ficamos decepcionados quando não os encontramos. Os livros de Verne e Wells eram produto de sociedades muito diferentes da nossa. Surge aqui um ou outro título concebido no mesmo espírito (como o prova, por exemplo, O Doutor Benignus, de Augusto Emilio Zaluar), porém o mais normal é encontrarmos obras que tratam aqueles temas com outro espírito, outras intenções, e afeitas às expectativas de outro público.

Nessa linha, uma curiosa referência teatral é a opereta em 3 atos Nova Viagem à Lua, de Artur Azevedo e Frederico Severo. Artur Azevedo foi um dos principais autores teatrais de sua época. Sua peça Amor por anexins, escrita aos quinze anos, é montada ainda hoje. Esta opereta foi lançada em 1877, quando ele tinha 22 anos, com música de Le Coq, e foi representada pela primeira vez no Teatro Fênix Dramática, no Rio.

Trata-se de uma comédia de costumes, típica do autor, em que a viagem à Lua é apenas o elemento desencadeador de situações cômicas. A ação do primeiro ato passa-se em Ubá (MG), e os dois últimos na Corte (o Rio). Luís, o filho do fazendeiro Arruda, de Ubá, quer casar com Zizinha, filha do velho Santos, que é um antigo amigo de Arruda, embora agora os dois estejam com as relações estremecidas. Santos diz que só cederá a mão da filha a Luís se este convencer o pai a vir à Corte (ao Rio de Janeiro), coisa que ele jurara nunca mais fazer.

Machadinho, amigo de Luís e membro da sociedade carnavalesca “Netos da Lua”, fica sabendo do entusiasmo do velho Arruda com a leitura de Da Terra à Lua de Julio Verne, e convence o fazendeiro de que é possível construir um foguete e ir à Lua. Pede dinheiro emprestado e manda construir uma alegoria carnavalesca em forma de foguete, que fotografa e mostra a Arruda para convencê-lo de que está tudo pronto para a viagem.

Arruda é levado ao Rio, narcotizado e, ao acordar, está no meio de um baile carnavalesco na sede dos “Netos da Lua”. Os rapazes o convencem de que está na Lua e que o filho dele foi coroado Rei da Lua sob o nome de Luís I. O Dr. Cábula, um intelectual de discurso comicamente empolado, colabora na farsa. Depois, com o aparecimento do velho Santos, tudo se esclarece; os dois velhos retomam a amizade e Luís casa com Zizinha.

Podemos desenvolver a partir daí uma teoria da vocação carnavalizadora (inclusive no sentido proposto por Bakhtin) que a narrativa brasileira (literatura, cinema, teatro) pratica com os temas tratados a sério pela Europa e EUA. Não é privilégio brasileiro: na Europa de 1870 certamente havia “farsas selenitas” nesse estilo. Mas essa carnavalização é coisa nossa, não há dúvida. Na chanchada cinematográfica, no filme B, no teatro, nas letras de MPB, os temas da FC são geralmente pretexto para a sátira, a paródia, a brincadeira, em que tudo acaba num baile à fantasia.