sexta-feira, 24 de setembro de 2010

2355) A palavra show (24.9.2010)




É uma silabazinha onipresente a partir do instante em que a gente aperta o botão do controle remoto. Assistir TV é escutar esse vocábulo que, como um Aleph, comprime no grão de si mesmo um universo de significação. 

Não se trata apenas do Fantástico, o Show da Vida mas de qualquer coisa que a TV esteja mostrando: é um show de calouros, um show de prêmios, tudo é um show de cobertura, um show de imagens, um show de transmissão... 

A TV é um show permanente, e neste sentido essa palavra pertence muito mais ao universo televisivo do que ao universo musical (“vou assistir um show de MPB”). O que chamamos de “show business” não se refere propriamente à música, embora instintivamente associemos estas duas coisas. Refere-se à televisão, a Máquina Mostradora por excelência.

“To show” significa “mostrar”, e é isso que a TV faz melhor do que ninguém. A TV não analisa, não interpreta, não questiona, nem mesmo quanto tenta fazer isso, ou quando parece estar conseguindo. A função orgânica da TV é mostrar. 

Ela mostra uma coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, depois mostra outra coisa, e assim por diante, ao infinito. Foi criada para isto, e pense num produto que correspondeu à intenção! 

Mostra qualquer coisa, e, como as chamadas e os plimplins da Globo nos lembram o tempo inteiro, mostra acima de tudo a si mesma.

A expressão inglesa “to show off” significa “exibir-se, pavonear-se”, ou, mais paraibanamente, “se amostrar”. Dizemos que “o time do Santos ganhou a partida e deu um show”; isto não quer dizer apenas que jogou bem, mas que fez a costumeira exibição de firulas e pedaladas. 

O sujeito que se amostra está tentando ser-e-parecer mais do que é, está exagerando a si mesmo, está fingindo uma imagem um passo além da realidade; lamentavelmente, todo show tem um pouco disto. É da natureza do espetáculo de massas parecer que está mostrando algo quando na verdade se está mostrando uma versão mais colorida, mais ruidosa, mais luminosa e mais rica daquele algo. 

Em inglês, a palavra “show” no sentido de “exibição, espetáculo” data de 1561; no sentido de “ostentação exibicionista”, de 1713 (http://www.etymonline.com/index.php?term=show).

Ariano Suassuna, notoriamente ranzinza para com tudo que tenha cheiro de Bom Ar norte-americano, costuma chamar as apresentações musicais de “espetáculos”, e justifica: “Na minha terra, xô é uma palavra que se usa para espantar galinha”. 

Muita gente nem chama de “shows” aqueles espetáculos discretos, tipo voz-e-violão, de artistas como Elomar ou João Gilberto. Chama-os de concertos ou recitais, ou coisa equivalente. Porque é da essência do “show” musical o exibicionismo, as plumas e paetês, os naipes de sopros, as bailarinas, a fumaça de gelo seco... 

Uma tradução extremamente liberal da expressão “show business” nos daria “mostrar serviço”, e, no frigir dos ovos, é disso mesmo que se trata.





quinta-feira, 23 de setembro de 2010

2354) “Contos Obscuros de Poe” (23.9.2010)


A imprensa já divulgou, mas se eu registrar aqui talvez acabe atingindo uma meia dúzia que lê a mim e não lê a imprensa. Hoje à noite estarei lançando em João Pessoa meu livro mais recente, a coletânea Contos Obscuros de Edgar Allan Poe, publicado pela editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro. É o quarto volume de uma série de antologias do fantástico, que já inclui Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (2003), Contos Fantásticos no Labirinto de Borges (2005), Freud e o Estranho: Contos Fantásticos do Inconsciente (2007). O lançamento terá lugar no Centro Cultura Zarinha, na Avenida Nego, a partir das 19 horas, com uma palestra, e depois sessão de autógrafos. (Os leitores de Campina não pensem que serão desprestigiados – estou organizando o lançamento daí, que deverá acontecer no mês que vem).

A intenção deste livro é chamar a atenção para a obra sempre atual de Edgar Allan Poe, que é uma espécie de Augusto dos Anjos norte-americano, com a diferença de que tornou-se mais famoso como contista, não como poeta. Assim como Augusto, Poe teve uma vida cheia de problemas, entre eles uma saúde frágil, um temperamento neurastênico, e uma penúria crônica. Ambos morreram relativamente moços: Augusto com 30 anos, Poe com 40. E viveram, cada um, num contexto literário regionalista, que não compreendia aquela sua fixação com o Universo, as galáxias, a evolução futura da Humanidade.

Talvez o traço mais distintivo de Poe seja sua fusão entre a racionalidade analítica e a alucinação obsessiva. Muitos de seus contos são narrados por indivíduos desequilibrados que se auto-analisam sem parar, e isto era decerto um traço do próprio autor. Poe ficou órfão desde a infância (era filhos de um casal de atores ambulantes) e foi adotado por um comerciante rico, que o criou como um jovem aristocrata sulista (algo equivalente a ser o filho de um fazendeiro nordestino rico). Dos 6 aos 11 anos de idade ele estudou na Inglaterra, o que influenciou não apenas seus modos como a sua literatura. Chegando à idade adulta brigou com o pai adotivo, foi embora de casa e passou a viver na pindaíba, pedindo dinheiro emprestado, conseguindo empregos como jornalista e perdendo-os logo depois, devido ao seu temperamento desabrido e a sua arrogância intelectual. Poe era um desses sujeitos inteligentes que têm pouca paciência para com quem é menos inteligente do que eles.

Sua personalidade peculiar identificou-se com o “conto de Blackwood”, gênero literário popularizado na época pelo famoso Blackwood Magazine, que consistia num pequeno ensaio introdutório explicando um fato espantoso da natureza ou da ciência, seguido de um episódio fictício com aparência de relato verdadeiro. Usando esta fórmula da época, Poe criou as bases do conto de terror moderno, do conto analítico-detetivesco, e da ficção científica. Inventou sozinho, no começo do século 19, a literatura do século 20 que se prolongou até o século 21.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

2353) A arte da definição (22.9.2010)



Sempre que falo em ficção científica, alguém me pede uma definição do gênero, e eu respondo que há uma fartura delas, centenas e centenas à escolha – e todas me parecem plausíveis. Nos meus tempos de movimento cineclubista, principalmente quando atrelado ao movimento estudantil, havia uma fase inicial da discussão que era chamada de “definição de conceitos”. O que é cinema? O que é mercado cinematográfico? O que é arte? O que é cultura? O que é povo? O que é povo brasileiro? O que é cinema brasileiro? E seguia nesse caminho. Em geral, as definições de conceitos levavam tanto tempo que o debate propriamente dito não começava nunca.

Responder essas perguntas não é tão fácil quanto parece. O que é cinema brasileiro? Ora, pensará alguém, são os filmes feitos no Brasil. Mas um filme feito no Brasil por uma equipe argentina e com dinheiro argentino é brasileiro? E um filme feito no Chile, com tema chileno, por uma equipe brasileira e com dinheiro brasileiro? Uma co-produção Brasil/EUA pode ser chamada de “filme brasileiro”? Se um filho de franceses roda em São Paulo uma adaptação de uma peça de Sartre ambientada na França, isso é cinema brasileiro? E assim por diante.

Uma definição é uma pequena utopia mental: o sonho de uma chave que abre todas as portas. Uma frase que descreve com exatidão centenas, milhares de exemplos. Suficientemente abstrata para poder abranger as características gerais de todos eles, e ao mesmo tempo suficientemente específica para poder dar conta do perfil único e peculiar de cada um. Definições precisas são um instrumento útil nas ciências, mas em se tratando de arte ou literatura é outra história. Como observou Todorov em sua análise da literatura fantástica, “a evolução segue aqui um ritmo completamente diferente: toda obra modifica o conjunto dos possíveis, cada novo exemplo muda a espécie”.

Uma definição pode ser definida como uma lista de características que incluem um conjunto de objetos numa categoria abstrata. Essas características devem ser necessárias, ou seja, um objeto só pertence à categoria se apresentar todas elas. Ela deve se situar a meio caminho entre dois perigos: o da definição excessivamente vaga, que acaba incluindo objetos que não pertencem à categoria, e o da definição demasiado restritiva, que acaba deixando de fora objetos que pertencem a ela.

Em literatura, uma definição nunca é conclusiva, porque toda obra literária é heterogênea. Se cada obra fosse uma coisa só, como as formas geométricas, seria fácil criar uma definição que cobrisse todos os exemplos de um gênero e não incluísse nenhum que aparenta pertencer a outro. Mas a existência de, digamos, O Homem Demolido, um romance policial ambientado num futuro em que existem telepatas, anula essa possibilidade. Qualquer definição de romance policial ou de FC que o inclua estará incluindo uma obra de, num certo aspecto, é “um estranho no ninho”.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

2352) Obscuridade (21.9.2010)




Os artistas sonham com a fama, em parte, por uma questão banal de carência afetiva (querem ser elogiados, aplaudidos, paparicados) e em parte porque acreditam que ela lhes proporciona onipotência, superpoderes. Como se dissessem: “De agora em diante, vou fazer somente o que eu quero, e do jeito que eu quero”. 

Lamento informar que, daqui de onde vejo os famosos, não é bem assim. A fama multiplica as oportunidades, mas essa própria multiplicação subdivide o tempo e a energia do famoso. 

Uma vez vi uma entrevista da empresária de Caetano Veloso explicando a alguém que teve um pedido recusado: “Caetano recebe vinte pedidos por dia para shows ou participações em eventos. Não pode aceitar todos”. 

Numa entrevista à revista Wired, George Lucas explicou por que não costuma surfar na Internet: “Meu trabalho exige que eu me reúna com grupos que somam cerca de 250 pessoas por dia, todos os dias, e quando tenho algum tempo livre eu o dedico a minha família”.

Quando o sujeito fica famoso começa a ser chamado para coisas que sempre teve vontade de fazer, mas também para centenas de coisas que não lhe interessam nem um pouco, e que querem apenas contar com um famoso a mais em sua galeria de fotos e em sua “área VIP”. 

Essa industrialização da fama para qualquer um e a qualquer preço é uma das forças mais massacrantes que a estupidez humana botou em movimento através da imprensa. Para os carentes que citei nas primeiras linhas, é o Paraíso. São paparicados porque são famosos, e são famosos porque são paparicados. Para um sujeito que quer continuar trabalhando a sério, a fama traz mais atrapalhos do que soluções.

Poucas leituras serão tão depressivas quanto as cartas de Robert Heinlein sobre o assédio dos fãs, em seu volume póstumo de correspondência, Grumbles from the Grave. No auge da fama, Heinlein não escrevia mais literatura, porque tinha de viajar o tempo inteiro para dar palestras, participar de convenções, etc., e o tempo que podia dedicar à escrita era para responder dezenas de cartas de leitores todo dia. Para não falar nas centenas de visitantes implorando uma ou duas horas de papo. 

Aos 74 anos, doente, cortou os laços com o mundo exterior, e em poucos anos escreveu Friday (1982), Job (1984), The Cat Who Walks Through Walls (1985) e To Sail Beyond the Sunset (1987). Talvez não sejam seus melhores livros, mas, dane-se, são os livros que ele queria escrever e ninguém deixava.

Virginia Woolf, autora do célebre Um quarto só para si, disse: 

“Enquanto a fama bloqueia e constringe, a obscuridade envolve uma pessoa como se fosse uma névoa; a obscuridade é escura, ampla, e livre; a obscuridade permite que a mente trace seu caminho sem encontrar obstáculos. Sobre o indivíduo obscuro pousa a impregnação suave das trevas. Ninguém sabe onde ele vai nem de onde está vindo. Ele pode ir em busca da verdade e pode proclamá-la; ele é o único que é de fato livre; o único que é verdadeiro, o único que experimenta a paz”.










domingo, 19 de setembro de 2010

2351) Página aleatória (19.9.2010)


Suponhamos que Diane Rafelstein era uma jornalista de origem judia nos EUA. Tinha origem pobre; seu pai foi um imigrante que após anos de trabalho duro na Austrália, em New South Wales, resolveu emigrar para a América. Diane, nascida em 1928, cresceu num ambiente sombrio, pois a Grande Depressão atingiu o país logo após a chegada da família. Conseguiu emprego como telefonista num jornal, e sua inteligência e habilidade com as palavras logo a levaram a uma mesa na redação, de onde não mais saiu, embora mudasse de cidade e de jornal várias vezes pelo resto da vida, até se estabelecer na Louisiana.

Diane amava as revistas de “pulp fiction”, que conheceu na infância, e que lhe despertaram um gosto pelo insólito. Quando era redatora-chefe do “Clarion”, de Nova Orleans, uma série de notícias anódinas atraíram sua atenção. Boletins informativos de sociedades científicas locais estavam registrando fenômenos invulgares que ocorriam nos pântanos e “bayous” daquele região, sempre em época de lua nova. Ao que parece, nesse período do mês havia um aumento do número de incidentes com salamandras, envolvendo crianças feridas de algum modo, donas-de-casa que se queixavam de infestação de répteis, etc. O fato começou a chamar a atenção, e certos evangélicos fervorosos, com o Novo Testamento em punho, alertavam o mundo para a aproximação do Apocalipse. Emissões de rádio e de TV tocavam no assunto a todo instante. As bancas de revistas exibiam, ao lado do novo exemplar da “Weird Tales”, manchetes sobre algum novo achado de répteis em locais improváveis.

Diane encarregou Bob Hassler, um jovem repórter, de trazer-lhe uma matéria a respeito. Sentia com angústia que algo estava para acontecer, mas achava que estava imaginando coisas; talvez uma investigação feita por Bob, um rapaz do Novo México, sensato e pouco imaginativo, pudesse manter uma neutralidade que ela sabia não possuir. Uma noite, Bob ligou para sua casa e afirmou saber do que se tratava. Tinha a voz trêmula, e mencionou algumas vezes “O Anel dos Nibelungos”, a ópera de Wagner. Diane não entendeu do que se tratava. “O crepúsculo dos deuses”, balbuciou Bob, numa voz que ela custou a reconhecer. Ele parecia estar falando consigo mesmo, e insistia em falar num “filão rastejante da medula viva” que se aproximava do “mundo superior”. Diane achou que o rapaz estava bêbado e estressado; sentiu-se culpada, avisou que estava indo para lá e pegou um táxi. Bob Hassler morava numa pensão no Bairro Francês. Ela bateu à porta, subiu ao andar de cima, tocou. Ele abriu a porta com o rosto em desordem, barba por fazer, cabelos revoltos. Mandou-a entrar, fechou a porta e apagou a luz. Parada no meio da sala, Diane agradeceu aos céus por não estar vendo o que produzia aquele som ciciante de milhares de patas macias emergindo das frestas, das fendas, dos ralos, dos esgotos, das torneiras, os milhares de corpos triunfantes que se desprendiam do filão da medula viva.

sábado, 18 de setembro de 2010

2350) A estética do Mas Não É Possível (18.9.2010)


(Lou Brooks)

No romance folhetim ou na novela de televisão esta exclamação surge de maneira recorrente. Ao ver ou ouvir algo, ao ler uma jotícia de jornal ou abrir uma carta, o personagem exclama estupefato: “Mas não é possível!”. Algo surpreendente acaba de lhe suceder, algo que ele jamais imaginou que sucedesse, e agora virou um fato concreto, ali, diante dos seus olhos. O folhetim tem baixa imunidade para com o vírus da surpresa, do inacreditável, do imprevisto. Todos sabemos que em toda telenovela existe o “núcleo rico” (tipicamente uma família dona de uma grande empresa e cheia de ramificações, muitos filhos, cônjuges, ex-cônjuges, netos, etc.), o “núcleo pobre” (empregados e suas famílias; vizinhos; amigos suburbanos), o “núcleo jovem” (tem que ter uma turma de adolescentes, para atrair essa faixa da audiência), às vezes um “núcleo rural” (quando há fazendas envolvidas), etc. O que é normal num desses universos é às vezes impossível em outros. E haja gente de olhos arregalados e queixo caído.

Quem diz muitas cabeças diz muitas sentenças, porque todos nós vivemos em mundinhos particulares de crenças, opiniões e paradigmas. E a vida nos obriga a viver esbarrando em pessoas de crenças e paradigmas totalmente diversos. Mundos em colisão, como dizia Velikovsky, o apocalíptico. Quem está se abalroando não são planetas, são estilos de vida.

“Mas não é possível!”, exclama a advogada chique, ao ver a filha adolescente trazer para dentro de casa um namorado que é a cara de Neymar do Santos. “Mas não é possível!” exclama o torneiro mecânico ao ver no Jornal Nacional a notícia de que a indústria onde trabalha foi vendida para os chineses e vai demitir 2 mil trabalhadores. “Mas não é possível!” reage com pasmo o aposentado quando o gerente do Banco lhe informa que alguém usou seu cartão e limpou suas economias. Para todos esses personagens, o mundo se rasgou numa costura que jamais será refeita. O equilíbrio do Universo sofreu um certo abalo, e talvez nunca mais retorne.

Achamos que algo não é possível, em geral, porque avaliamos mal o caráter de outras pessoas, não calculamos do que ela são capazes. Folhetins e telenovelas estão cheias de lobos em pele de cordeiro, de heróis que se transformam em vilões ou vice-versa, de personagens insípidos que num momento de crise revelam recursos insuspeitados. Um velho preceito dos roteiristas de cinema ensina que um personagem deve ser suficientemente complexo para poder nos surpreender, mas suficientemente coerente para que essa surpresa, um segundo depois, seja aceita pelo público. A surpresa não pode ser gratuita, não pode ser extraída do nada. A reviravolta, quando acontece, já deve estar plantada desde antes, para que o leitor possa voltar atrás, reler certos detalhes, como tantas vezes ocorre no romance policial, e reconhecer: “É, tem razão, havia algumas pistas. Parecia impossível, mas estava ali, o tempo todo”.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

2349) O Ulisses turco (17.9.2010)



Considerado pelo escritor Joshua Cohen como o equivalente turco ao romance de James Joyce,
Huzur (1949) de Ahmet Hamdi Tanpinar, foi traduzido em inglês como “A Mind at Peace”. É, como o Ulisses, uma história que transcorre ao longo de 24 horas, recheada de flash-backs que a expandem até cerca de 400 páginas. Diz Cohen: 

“O grande romance de Tanpinar também se desenrola em 24 horas, mas em Istambul às vésperas da II Guerra Mundial. A Turquia está dividida entre o Oriente e o Ocidente, assim como Mumtaz, um órfão que planeja ser autor de romances históricos, está dividido entre uma tradição decadente e o seu amor por uma mulher mais velha e divorciada, Nuran, cujos defeitos e seduções são completamente do mundo moderno”. 

O livro é dividido em quatro partes, intituladas a partir de personagens. Na primeira, “Ihsan”, o menino Mumtaz fica órfão e é adotado pelo primo mais velho Ihsan, que o envia para estudar na França e se encarrega de sua educação humanística e literária. Na parte II, ele conhece Nuran e se apaixona por ela; os dois conversam extensamente sobre a modernização da Turquia e a necessidade de aceitá-la sem perder o vínculo com sua cultura tradicional. A parte III tem o nome de Suad, um antigo namorado de Nuran que reaparece em sua vida, gerando uma tensão sobre Mumtaz e fazendo-o reavaliar sua própria vida. A parte IV tem o nome de Mumtaz e corresponde, mais ou menos, a um rito de passagem para a maturidade, no momento trágico em que as tropas nazistas invadem a Polônia, deflagrando a guerra. 

Numa resenha no saite do Los Angeles Times (http://tinyurl.com/bt3cay), Richard Eder observa que a tradução inglesa é cheia de excentricidades e dá a impressão de um inglês falado com sotaque, mas ao mesmo tempo observa que isto “tem a qualidade arrebatadora de um tal sotaque, comunicando ao leitor a pulsação de um mundo que lhe é estranho”, e pergunta, com espírito: “Será que recordaríamos Marleme Dietrich se ela falasse com sotaque britânico?”. 

A Literary Fiction Review (http://tinyurl.com/25pmzw6) destaca a dualidade de Istambul, metade na Ásia, metade na Europa, e os percursos incessantes de Mumtaz e Nuran através do Bósforo. E cita um trecho do romance: 

“É somente para a Humanidade que o Tempo, monolítico e absoluto, se divide em dois; e porque o Tempo, essa fosca lanterna, essa luz fuliginosa, luta para continuar a arder dentro de nós, porque ele introduz um cálculo tão complexo no seio das coisas mais simples, porque nós medimos a sua passagem pelas nossas sombras projetadas no chão, ele separa a vida e a morte, e, como o pêndulo de um relógio, nossa consciência oscila entre dois polos criados pela ela mesma. A humanidade, prisioneira do tempo, desespera-se tentando escapar dele. Ao invés de se entregar ao tempo, ao invés de fluir ao longo dele, com todas as outras coisas, nessa corrente imensa como um continente, a humanidade tentar enxergar o Tempo pelo lado de fora”.







2348) “Pesquisas sobre a sexualidade” (16.9.2010)



Adolescentes se reúnem num terraço, numa noite de sábado, tomando cerveja. Alguém propõe: “Vamos jogar o Jogo da Verdade!”. Arrumam-me em círculo e sorteiam um deles, que jura responder as perguntas dos outros dizendo somente a verdade. O mais interessante é que nessas brincadeiras ninguém pergunta se ele colou na prova, ou se já furtou dinheiro dos pais, ou se já fumou maconha. Perguntam sobre sexo. “Você já fez sexo oral?...” E antes mesmo da resposta todos riem: kkkkkkkkk...

Não sabem, mas estão praticando um dos muitos jogos que o grupo Surrealista praticou em Paris na década de 1920, sob a batuta de gênios da poesia como André Breton e Paul Éluard. Os Surrealistas não sorteavam os respondedores, mas promoviam reuniões em que faziam perguntas, sobre as respectivas vidas sexuais, que tinham de ser respondidas por todos com franqueza absoluta. Não era preciso jurar. A ética surrealista, a paixão surrealista, o fulgor surrealista que os iluminava fazia com que essa franqueza não fosse um problema, e sim uma forma de êxtase, de exaltação. Outros tempos.

Doze dessas reuniões (entre janeiro de 1928 e agosto de 1932) foram registradas por escrito. Duas delas foram publicadas na revista oficial do movimento, La Révolution Surrealiste, sob o título geral de “Recherches sur la sexualité”. Anos depois, as anotações manuscritas das doze sessões foram encontradas nos arquivos pessoais de André Breton e publicadas sob o mesmo título, com organização de José Pierre (Ed. Gallimard, 1990). A edição que li é uma tradução inglesa, sob o título Investigating Sex – Surrealist Discussions 1928-1932 (Verso, 1992). Entre os participantes estão Breton, Éluard, Max Ernst, George Sadoul, Man Ray, Antonin Artaud, Louis Aragon, Yves Tanguy, Jacques Prévert, Benjamin Péret, etc. Entre as mulheres (uma previsível minoria), Nusch Éluard, Jeannette Tanguy, Katia Thirion, Simone Vion e outras. A maioria deles participa apenas de poucas sessões; Breton é o único que está presente em todas.

Os Surrealistas discutem sexo e amor por todos os ângulos, falam de perversões, de fantasias, discutem a mecânica do orgasmo, a diferença entre o gozo do homem e o da mulher. Interrogam-se sobre os aspectos quantitativos das relações sexuais, discutem sonhos eróticos, questionam-se sobre sexo coletivo, homossexualismo, masturbação, infidelidade, íncubos e súcubos... O conceito de “Amor Louco” (“amour fou”), que tanto exploraram na poesia, no romance e no cinema, surge insistentemente. O conceito de amor surrealista era o sonho de encontrar, como disse Rimbaud, “a verdade num só corpo e numa só alma”. O amor era “um fato manifesto que nada fizemos para produzir e que, num dia específico e diante de um rosto específico, encarnou-se misteriosamente”. Ou, como disse Aragon: “O milagre: como pensar no que não é o milagre quando o milagre está em seu vestido noturno?”.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

2347) A Hora do Homem (15.9.2010)



No ensaio “The Hour of Man”, Henry Miller comenta trechos da um ensaio homônimo publicado em 1951 por seu amigo Walker Winslow, que, como ele próprio, se horrorizava com o grau de despersonalização, frieza e indiferença que a sociedade industrial consumista (“o Pesadelo com Ar Condicionado”) impõe às pessoas. 

A certa altura, diz Winslow: 

“Eu gostaria de ver o rádio e a TV serem desligados durante uma hora por semana, a revista e o jornal jogados no chão, o carro trancado na garagem, a mesa de churrasco dobrada, a garrafa de bebida arrolhada, os sedativos mantidos dentro das embalagens. Gostaria de ver tanto a produção quanto o consumo de coisas sendo suspensos durante uma hora. A política seria esquecida, fosse nacional ou internacional. 

Essa hora que proponho se chamaria A Hora do Homem. Durante essa hora, os homens se interrogariam, e aos seus vizinhos, sobre o propósito de sua presença na Terra, sobre o que é a vida, sobre o que um homem e uma mulher têm o direito de pedir à vida, bem como o que têm para oferecer em troca.” 

Miller endossa esse sonho quimérico do amigo, lembra que nos países islâmicos os fiéis são convocados para rezar em uníssono cinco vezes por dia. E ele diz: 

“Arrisco-me a dizer que se esse procedimento viesse a ser adotado, iríamos receber da boca das nossas crianças as observações e sugestões mais sagazes , mais práticas e mais fecundas”. 

O que me chamou a atenção no texto – e despertou uma associação de idéias imprevista – foi que ele me lembrou, por vias transversas, um detalhe de um livro de ficção científica de Clifford Simak, O Planeta de Shakespeare (1976). 

Nesse romance insólito e humanista, um astronauta se vê naufragado num planeta semideserto, onde descobre vestígios de um náufrago anterior, que tinha consigo livros de Shakespeare. Ele percorre o planeta, passa por várias aventuras, mas a mais estranha delas é uma espécie de visão psicodélica que o ataca de maneira imprevisível, aleatória. 

Em alguma hora do dia ou da noite, sem aviso prévio, ele sente sua mente sendo invadida por uma torrente avassaladora de emoções indizivelmente grandiosas, emoções que o transportam para um estado de êxtase e beatitude que ele não tem palavras para descrever. Quando aquilo passa (e às vezes dura minutos, às vezes horas inteiras), ele está exausto mas gratificado, porque se sentiu em contato com alguma força poderosa e benéfica, mesmo que inexplicável. 

Ele sente que aquele influxo de emoções é produzido à distância por algum ser que “varre” o planeta ao acaso como a luz de um farol varre o espaço, e quando por coincidência ele está no trajeto dessa “luz”, o fenômeno acontece. E o personagem chama aquilo A Hora de Deus. 

O mais interessante é que a Hora de Deus, de Simak, é uma bela alegoria poético-científica do que talvez sentíssemos se a modesta e possível Hora do Homem, de Miller e Winslow, fosse posta em prática. Mas sendo o mundo o que é, ambas me parecem igualmente impossíveis.





terça-feira, 14 de setembro de 2010

2346) Drummond: Lagoa (14.9.2010)



Este é um poema despretensioso e discreto do livro Alguma Poesia de Drummond, que está completando 80 anos de lançamento. Nunca lhe dei maior atenção, certamente porque o via ladeado por poemas de muito maior peso e ressonância, e isto reflete uma distorção no conceito estético de “livro de poemas”. Em tese, um poema devia ser uma obra de arte autônoma, podendo (e até devendo) ser lido à revelia de todos os demais poemas do autor. No melhor dos mundos, livros de poemas só existiriam quando esses poemas fossem seriais, fossem mutuamente necessários para existir e significar, como é o caso (com diferentes perfis) de livros como A Educação pela Pedra de João Cabral, Doze Noturnos da Holanda de Cecília Meireles, etc. Para que um poema fosse lido, respeitado e valorizado no que é, cada um devia ser publicado sozinho, num livro à parte. O que, é claro, é impraticável. (Era. O mundo está mudando. Eletronicamente, a gente pode publicar as coisas no formato que bem entender.)

“Lagoa” tem uma linguagenzinha tão beabá e direta que soa, no livro do poeta de 28 anos, como a voz de um menino amuado: “Eu não vi o mar. / Não sei se o mar é bonito. / Não sei se ele é bravo. / O mar não me importa”. Por que um poema sobre uma lagoa começa negando o mar? Talvez porque entre os mineiros exista uma inveja do mar do mesmo jeito que entre as mulheres, segundo Freud, existe uma inveja do pênis. Não ter um mar é, por alguma razão oceânica, amniótica e profunda, não ter algo essencial à vida, e cada um se compensa disto como pode (os bolivianos, por exemplo, têm lá seu Ministério da Marinha). O menino, casmurro por não ter um mar, dá-lhe as costas.

“Eu vi a lagoa. / A lagoa, sim. / A lagoa é grande / e calma também”. Que beleza essa frase-que-contém-tudo: “A lagoa, sim”. Pronto. O que vem depois é mera ilustração. “Na chuva de cores / da tarde que explode, / a lagoa brilha. / A lagoa se pinta / de todas as cores. / Eu não vi o mar. / Eu vi a lagoa...”

Que lagoa será essa? Alguma lagoa doméstica, por trás dum quintal de Itabira? A da Pampulha, ainda bravia e pré-Juscelino, pré-Niemeyer? Uma lagoa meramente mental? Drummond só se transferiu para o Rio de Janeiro em 1934, mas eu, por vício de contiguidade, sempre li este poema com os olhos da memória na Lagoa Rodrigo de Freitas, que fica a dois ou três quarteirões do mar, protegida por uma selva de arranha-céus ipanemenses. Poucas visões do “meu” Rio são tão belas quanto a que temos ao rodear de carro a Lagoa ao anoitecer, porque os prédios em volta dela acendem-se em luzes azuis, amarelas, violetas, verdes, laranjas, e essas luzes refletem-se no espelho descansado das águas. O roxo do céu, a luz das estrelas, a iluminação branquicenta dos postes de mercúrio e as formas dos morros mudam esse panorama de cem em cem metros. Natureza e civilização fazem uma urdidura de beleza e complexidade urbana. Mar? Quem precisa de mar? Eu sou mineiro.