domingo, 19 de setembro de 2010

2351) Página aleatória (19.9.2010)


Suponhamos que Diane Rafelstein era uma jornalista de origem judia nos EUA. Tinha origem pobre; seu pai foi um imigrante que após anos de trabalho duro na Austrália, em New South Wales, resolveu emigrar para a América. Diane, nascida em 1928, cresceu num ambiente sombrio, pois a Grande Depressão atingiu o país logo após a chegada da família. Conseguiu emprego como telefonista num jornal, e sua inteligência e habilidade com as palavras logo a levaram a uma mesa na redação, de onde não mais saiu, embora mudasse de cidade e de jornal várias vezes pelo resto da vida, até se estabelecer na Louisiana.

Diane amava as revistas de “pulp fiction”, que conheceu na infância, e que lhe despertaram um gosto pelo insólito. Quando era redatora-chefe do “Clarion”, de Nova Orleans, uma série de notícias anódinas atraíram sua atenção. Boletins informativos de sociedades científicas locais estavam registrando fenômenos invulgares que ocorriam nos pântanos e “bayous” daquele região, sempre em época de lua nova. Ao que parece, nesse período do mês havia um aumento do número de incidentes com salamandras, envolvendo crianças feridas de algum modo, donas-de-casa que se queixavam de infestação de répteis, etc. O fato começou a chamar a atenção, e certos evangélicos fervorosos, com o Novo Testamento em punho, alertavam o mundo para a aproximação do Apocalipse. Emissões de rádio e de TV tocavam no assunto a todo instante. As bancas de revistas exibiam, ao lado do novo exemplar da “Weird Tales”, manchetes sobre algum novo achado de répteis em locais improváveis.

Diane encarregou Bob Hassler, um jovem repórter, de trazer-lhe uma matéria a respeito. Sentia com angústia que algo estava para acontecer, mas achava que estava imaginando coisas; talvez uma investigação feita por Bob, um rapaz do Novo México, sensato e pouco imaginativo, pudesse manter uma neutralidade que ela sabia não possuir. Uma noite, Bob ligou para sua casa e afirmou saber do que se tratava. Tinha a voz trêmula, e mencionou algumas vezes “O Anel dos Nibelungos”, a ópera de Wagner. Diane não entendeu do que se tratava. “O crepúsculo dos deuses”, balbuciou Bob, numa voz que ela custou a reconhecer. Ele parecia estar falando consigo mesmo, e insistia em falar num “filão rastejante da medula viva” que se aproximava do “mundo superior”. Diane achou que o rapaz estava bêbado e estressado; sentiu-se culpada, avisou que estava indo para lá e pegou um táxi. Bob Hassler morava numa pensão no Bairro Francês. Ela bateu à porta, subiu ao andar de cima, tocou. Ele abriu a porta com o rosto em desordem, barba por fazer, cabelos revoltos. Mandou-a entrar, fechou a porta e apagou a luz. Parada no meio da sala, Diane agradeceu aos céus por não estar vendo o que produzia aquele som ciciante de milhares de patas macias emergindo das frestas, das fendas, dos ralos, dos esgotos, das torneiras, os milhares de corpos triunfantes que se desprendiam do filão da medula viva.

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