sexta-feira, 2 de outubro de 2009

1285) Contos com 6 palavras (26.4.2007)




Será possível contar uma história em apenas seis palavras? Muita gente acredita que sim. 

O escritor Marcelino Freire organizou uma antologia de contos que não poderiam ultrapassar a extensão de um miniconto de Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. 

Inadvertidamente, o antologista não estabeleceu um limite para a extensão do título – o que levou o picaresco Millôr Fernandes a bolar um título imenso, que contava a história quase toda. 

Já o “conto de seis palavras” tem como modelo um miniconto atribuído a Hemingway, que diz: "For sale: baby shoes, never worn" (“Vende-se: sapatos de bebê, sem uso”). Há toda uma história de tragédia familiar por trás deste minitexto. O miniconto consiste basicamente em sugerir, não em mostrar.

O websaite da revista Wired (http://www.wired.com/wired/archive/14.11/sixwords.html) convidou dezenas de autores para produzir textos de 6 palavras com histórias de ficção científica ou fantasia. 

Tem muita besteira, claro. Mas tem também algumas soluções brilhantes. Vejam este, de Eileen Gunn: “Computador? Trouxemos baterias? Alô! Computador? Computador?…” Não precisa mais nada para a gente imaginar uma nave silenciosamente à deriva no espaço, e astronautas congelados, todos com a cara de Mr. Bean.

As especulações sobre o fim do mundo também são ricas em possibilidades. Eis um exemplo de Gregory Maguire: “Nos arranha-céus calcinados, homens criaram asas”. Sugere uma II Guerra Mundial, uma inesperada mutação, uma volta-por-cima no Apocalipse. Não é pouco. 

Outros fins-do-mundo são menos imaginativos, mas não menos amedrontadores: “Choveu, choveu, choveu, nunca mais parou”. Vejam que se trata de algo cientificamente impossível, uma chuva que nunca pára – o que a torna mais inquietante ainda.

Viagens no tempo são um caminho interessante para estas narrativas super-rápidas. Harry Harrison propõe esta hipótese: “MÁQUINA CHEGA AO FUTURO. Ninguém lá...” 

Um recurso mais operacional, meio clichê dentro do gênero, mas eficaz nas curtas dimensões do miniconto, é a historieta de Alan Moore: “Tempo. Sem querer, inventei máquina do.” E tem a humorística hipótese de David Brin: “Dinossauros retornam. Querem petróleo de volta”.

Não multiplicarei os exemplos (no saite tem mais de 50). O interessante nestas experiências é o fato de que o autor conta com a imaginação do leitor, sua capacidade de recorrer a um banco-de-dados comum para preencher as lacunas, as partes não explicadas (não dá para explicar muito em seis palavras). 

As seis palavras funcionam como um cartum, criando uma unidade de sentido que se percebe de um só relance, sem precisar ficar esmiuçando “comos” e “por quês”. As seis palavras são a ponta de um iceberg de subtexto implícito, compartilhado, lido e aprendido por autor e leitor. São como um título de livro, uma manchete de jornal: exigem que a gente seja capaz de “já saber” e também de imaginar.





1284) Era tudo um sonho (25.4.2007)




(Little Nemo)

Histórias desse tipo são muito freqüentes. O protagonista está levando sua vidinha comum, e de repente fatos estranhos começam a acontecer. Seguem-se vários peripécias e a última frase do conto diz: “Então ele acordou e descobriu que tinha sido tudo um sonho”. Às vezes o autor, mais precavido, planta uma pista do que vai acontecer, dizendo algo como: “Estava cansado, sentei na poltrona e cerrei os olhos por alguns minutos; despertei quando ouvi a porta se abrir e vi entrar por ela uma fada, envolta numa luz esplendorosa...” Ou seja, ele deixa para o leitor uma pequena pista indicando que a partir de um certo ponto o sujeito estava dormindo. Mas por quê?

Um conto é uma história fictícia, inventada, sem compromisso total com isto que chamamos de “realidade consensual” (um ambiente em que todos concordamos sobre o que está à nossa volta). Se é assim, o autor pode inserir a qualquer momento algo que não pertença a esta realidade – um coelho falante, por exemplo – mas que seja necessário à sua narrativa. Mas o Realismo literário condicionou a mente de escritores e de leitores. O irreal deixou de ser uma opção. Era como se a partir de uma certa época tivesse se estabelecido um pacto entre Autor e Leitor no sentido de que o primeiro só poderia falar de coisas que fizessem parte da experiência concreta do segundo, na qual não havia lugar para coelhos falantes. O álibi de “era tudo um sonho” surgiu para conciliar estes dois impulsos – o de contar histórias onde esses elementos fantásticos fossem necessários, e o de depois trazer tudo de volta para a moldura de referências habituais do leitor. Se era tudo um sonho, tudo se justifica, porque nada daquilo existiu senão dentro da mente do personagem.

Um outro aspecto é importante. Como muitos escritores costumavam publicar seus contos em jornais (era o caso de Machado de Assis, entre muitos outros), isto foi um fator a mais para dar aos seus textos um ar de crônica, de texto leve, mero prolongamento do cotidiano, uma extensão da vida do Autor e da vida do Leitor. Tinha de certo modo a função de servir de argamassa ideológica para as experiências comuns a ambos em sua vida social. Podemos supor que a maior parte dos personagens de Machado de Assis não diferia muito, em classe social e em nível cultural, dos leitores a quem ele dirigia a maioria dos seus contos. Autor, Leitor e Personagem vivem todos num mesmo “continuum”, num mesmo universo de referências, numa relação triangular em que os dois primeiros contemplam à distância o terceiro e usam seu comportamento para extrair lições sobre a natureza humana, a vida em família, os sentimentos, as atitudes sociais, etc. O texto serve como elemento de ligação entre os três, fazendo com que o conto ou o romance publicado no jornal seja uma extensão do gabinete onde o Autor escreve e da sala de visitas onde o Leitor lê. E onde não há espaço para o Irreal, a não ser “que seja tudo um sonho”.





1283) Roliúde Nordestina? (24.4.2007)



Tenho lido notas na imprensa sobre um movimento destinado a transformar a cidade de Cabaceiras e seus arredores numa “Roliúde Nordestina”. A intenção é celebrar o fato de que ali já foram rodadas cenas de 18 filmes brasileiros, estando entre os mais recentes Cinema, Aspirinas e Urubus, Auto da Compadecida e São Jerônimo. Cabaceiras tem, de fato, uma paisagem magnífica: árida, pedregosa, cheia de formações geológicas fantásticas, como as do Lajedo de Pai Mateus.

Só acho errado, em primeiro lugar, considerar que isto faz dela uma Hollywood. Faria se fosse de lá que surgissem os capitais, os financiamentos, as produções, porque é isso que Hollywood é: um centro capitalista, milionário, com centenas de milhares de profissionais ganhando bem, e alta tecnologia. Não me parece que seja a situação atual de Cabaceiras. Cabaceiras é uma bela locação, não é centro empresarial cinematográfico. Se é para comparar a brava cidade do Cariri com o cinema americano, podemos compará-la com o Monument Valley, no Utah – aquelas mesetas enormes erguendo-se no deserto avermelhado, onde se filmaram tantos faroestes inesquecíveis. Ou com o Vale da Morte, paisagem belíssima e inóspita para onde até Antonioni (Zabriskie Point) já levou suas equipes.

Não é preconceito contra Hollywood, mesmo que nesta coluna filmes de Hollywood sejam desancados com freqüência. Sou dos cineclubistas de velha escola, “os filhos de John Ford e Jane Fonda”. Mas por que diabos o cinema paraibano, que tem tão pouco a ver com Hollywood, precisa recorrer a essa palavra para dizer que é cinema? O mestre Wills Leal, um dos envolvidos no projeto, teria afirmado que esta idéia "serviu apenas como elemento de marketing, pois o cinema que vem sendo feito ali e o que defendemos é exatamente o oposto".

Bem, se é o oposto, temos referências muito mais nobres do que a palavra Hollywood. Poderíamos batizar um possível centro cinematográfico paraibano com o nome de “Aruanda” ou “São Saruê”, que me parecem mais bonitos e mais sonoros do que Hollywood. Mas é impressionante essa nossa dependência psicológica em relação aos nossos neo-colonizadores. Mesmo quando os combatemos, ficamos nos comparando com eles o tempo todo. É como chegar para um torcedor de futebol em Campina e perguntar qual é o time dele, e ele dizer: “Torço por aquele outro time, sem ser o Campinense”. Um torcedor assim merece respeito?

Tudo que pudermos fazer pelo Cinema Paraibano é importante, porque há tanta coisa para ser feita. Uma delas é imaginarmos que o cinema paraibano prescinde, para existir, da existência de Hollywood. Como prescinde também (para dar um exemplo mais nobre) da Cinemateca Francesa, que para mim é o Templo Universal da Arte Cinematográfica. Ou a gente é alguma coisa que vale a pena existir por méritos próprios, ou então faz como Graciliano Ramos sugeriu fazer com Alagoas – transforma num golfo.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

1282) “Sambando nas brasas, morô?” (22.4.2007)



Estreou no Rio o filme de Elizeu Ewald Sambando nas Brasas, morô?, um docudrama ambientado na década de 1950 no Rio de Janeiro. Docudrama é um neologismo que a turma do cinema inventou para esses filmes que misturam documentário e ficção. Não é simplesmente um filme de ficção com reconstituição de época, é um filme que usa imagens feitas na própria época retratada, ou, no caso de um filme totalmente contemporâneo, uma mistura de cenas documentais e trechos encenados com atores. Sambando nas brasas, morô? é a história de um jovem músico de Minas Gerais (Marcello Novaes) que vai morar no Rio, na casa do irmão mais velho, no começo dos anos 1950. O rapaz toca na orquestra da Rádio Nacional e depois na noite carioca; o irmão é cinegrafista da Agência Nacional, do governo Getúlio Vargas. Com estes dois ganchos narrativos, o filme nos mostra um abundante material de imagens sobre a música, o rádio e a política da época, além de imagens de um Rio de Janeiro que não existe mais.

O filme é em preto-e-branco, e a transição entre material de arquivo e material filmado é feita sem solavancos narrativos, embora seja perceptível (e inevitável) a diferença de nitidez na fotografia e um de do outro. O lado documental é reforçado pela inserção de entrevistas (a cores) com pessoas que viveram aquela época: Carlos Heitor Cony, Armando Nogueira, Paulo Moura, Nelson Pereira dos Santos, José Louzeiro e vários outros. Sambando nas brasas nos faz passar pelo governo Getúlio Vargas, pelo atentado contra Carlos Lacerda, o suicídio de Getúlio (Cony comenta: “Getúlio era um suicida nato”), a eleição de Juscelino e a tentativa de golpe contra sua posse, a conquista da Copa de 58, a construção de Brasília. Tudo isto devidamente filmado pelo “camera man” interpretado pelo ator Clemente Viscaino, que acaba virando uma “testemunha ocular da História” empunhando uma câmara de 16mm.

Paralelamente a isto corre a história de amor entre o saxofonista Pedro e Arlete (interpretada por Tracy Segal), uma paquera que começa ao som de sambas no Cassino da Urca e chega ao casamento ao som da Bossa Nova de João Gilberto. Este filme de Elizeu Ewald poderia ser emendado, sem sutura, ao seu filme de 2001, Nelson Gonçalves, em que ele usa a mesma técnica e o mesmo estilo para contar a vida do grande cantor da vida boêmia. O mais interessante nestes filmes é a maneira como se pode hoje recorrer a material de arquivo para preencher os interstícios descritivos de uma ação. Mesmo existindo uma diferença de tonalidade, granulação, foco, etc. nas imagens do Rio antigo, podemos, com um pouco de suspensão da incredulidade, imaginar que estamos vendo um filme de 1955, tal a fluência com que passamos de uma imagem para a outra. A existência de uma imensa quantidade de material de arquivo disponível conduz a esse novo gênero do filme-colagem, onde existem infinitas possibilidades de fusão entre passado documental e presente dramatúrgico.

1281) Zola e a Fatalidade (21.4.2007)


(Émile Zola)

Será que existe mesmo esse negócio, a Fatalidade com F maiúsculo? Claro que as fatalidades minúsculas existem e acontecem todo dia, como o cara que vai botar uma carta no Correio, passa perto de uma construção, cai-lhe uma viga na cabeça e tchau. A Fatalidade é outra coisa, é algo que pertence mais ao domínio do Destino do que ao do Acaso, é algo que parecia escrito-nas-estrelas, predeterminado para acontecer. Por mais que se fuja a ela, está-se fugindo na direção de Tebas ou de Samarra, ou seja, sempre na direção desse encontro marcado com nosso futuro irreversível.

No filme Belle de Jour de Luís Buñuel há uma cena em que o casal interpretado por Jean Sorel e Catherine Deneuve vai caminhando por uma rua de Paris e vê numa calçada uma cadeira de rodas, vazia, estranhamente deixada ali. Sorel se interrompe e fica olhando para aquele objeto com um ar fascinado. A esposa o puxa pelo braço, “vamos embora, o que foi?” E ele, “nada, nada...” Ainda um pouco intrigado recomeça a andar, meio que olhando para trás. Ele próprio não sabe por que aquilo lhe chamou a atenção. Saberemos nós, no fim do filme, quando ele é alvejado pelos tiros de Pierre Clémenti e fica paralítico. Foi um vislumbre do próprio futuro; um aviso do Destino.

Num livro de Sérgio Paulo Rouanet leio um comentário sobre Émile Zola, o grande romancista do naturalismo francês da virada dos séculos 19/20. Zola era um neurótico obsessivo, que deu um certo trabalho aos psiquiatras da época. Os obsessivos são essas pessoas que lavam as mãos cem vezes por dia, ou que ao sair de casa voltam vinte vezes porque acham que deixaram alguma luz acesa ou alguma torneira aberta. Há o caso famoso de uma mulher que só saía de casa levando o ferro de passar roupa, para ter certeza de que não o deixara ligado. Diz Rouanet: “Zola precisava antes de dormir tocar várias vezes os mesmos móveis, abrir as mesmas gavetas. Contava os bicos de gás, os degraus de uma escada. De noite, abria os olhos sete vezes, para provar a si mesmo que não ia morrer” (Os Dez Amigos de Freud, vol. 2, pag. 363).

Ora – como morreu Zola? O próprio Rouanet registra (vol. 1, pag. 142) que Zola morreu em 28 de setembro de 1902, durante o sono, envenenado pelo óxido de carbono produzido pela lareira de seu apartamento. A chaminé estava entupida e o gás se acumulou no aposento. Depois suspeitou-se de um entupimento proposital; Zola arranjara muitas inimizades com sua participação no Caso Dreyfus, em que combateu com ferocidade o anti-semitismo na França. Mas à luz dessa morte, as ansiedades e obsessões anteriores parecem se justificar. Como se ele pressentisse no futuro, um perigo relacionado ao gás, à noite, à hora de ir dormir. Como se precisasse se certificar, todas as noites, movido pela angústia dos pressentimentos vagos, de que estava em segurança e que aquela coisa que temia não iria acontecer.

1280) Kurt Vonnegut Jr. (20.4.2007)




Li não sei onde que idade madura é quando começam a morrer os nossos ídolos, e velhice é quando começam a morrer nossos colegas de faculdade.

Ao que parece ainda estou no primeiro estágio. Morreu aos 84 anos Kurt Vonnegut Jr., escritor para quem o fato de estar vivo era uma mera casualidade, e que sempre encarou com desconfiança o planeta Terra, a humanidade que o habita e ele próprio.

Vonnegut tinha uma relação conflituosa com a literatura de ficção científica, cujos temas ele utilizava, mas a cuja comunidade afirmava não pertencer, talvez com medo de ser discriminado. Para uma crítica literária pretensiosa e desinformada, como é grande parte da norte-americana, o simples fato de alguém escrever dentro de determinado gênero cancela por antecipação qualquer possibilidade de boa literatura.

O grande clássico de ficção científica de Vonnegut, na opinião da crítica, é As Sereias de Titan. Pelo meu gosto pessoal, seu melhor livro é Matadouro 5, em que ele mistura o bombardeio americano a Dresden, na II Guerra Mundial (ao qual ele escapou, pois na época estava prisioneiro dos alemães nessa cidade), com as aventuras de Billy Pilgrim, um rapaz que é abduzido por extraterrestres e passa a viajar aleatoriamente no Tempo, fazendo um ping-pong caótico entre Passado, Presente e Futuro.

Vonnegut era sardônico, amargo, irascível, e, como muitos indivíduos portadores destes traços, dado a rasgos melodramáticos e sentimentais. Parecia-se muito (e não só fisicamente) com Mark Twain.

Seus livros de maior sucesso são muitos: Almoço dos Campeões, Pastelão, ou Solitário Nunca Mais, Galápagos, Hocus Pocus e vários outros. Tinha um estilo telegráfico, de frases curtas, bordões repetidos, personagens que se comportavam às vezes como personagens de histórias em quadrinhos. Algo no seu sarcasmo lembrava os filmes de Robert Altman e as HQs de Robert Crumb.

Vonnegut criticava com acidez a cultura-de-massas, como no conto “Harrison Bergeron”, em que um personagem é levemente mais inteligente que a média da população, e o Governo implanta um rádio-transmissor em seu cérebro, o qual emite um sinal ensurdecedor de 20 em 20 segundos, para impedir que ele use sua inteligência e obtenha vantagens. O sujeito está conversando e quando está prestes a ter uma idéia, o transmissor soa: “Seus pensamentos fugiram em pânico, como ladrões ouvindo um alarme”.

Vonnegut dizia que um leitor diante de uma página impressa é como um violinista diante de uma partitura: metade da obra está ali diante dele, e a outra metade cabe a ele executar no seu instrumento, que no caso do leitor é sua própria mente.

Vonnegut nunca desistiu. “O planeta está tentando se livrar de nós,” dizia ele. “Depois de duas Guerras Mundiais, e do Holocausto, e da Guerra dos Bálcãs, ele chegou à conclusão de que somos uns animais inviáveis”. Daí viriam os terremotos, tsunamis, e até mesmo a Aids. “É o sistema imunológico da Terra que está nos perseguindo”.







1279) Viva o clichê (19.4.2007)


(The Progressive Review)

De vez em quando nesta coluna eu desço a ripa nos clichês literários e cinematográficos. Isto significa que advogo a extinção imediata deles, sua proscrição, algum tipo de “pogrom” ou de “solução final”? Longe disto. O clichê, o lugar-comum, a banalidade, o estereótipo mil vezes repetido, tudo isto tem sua utilidade dentro da retórica criativa. O segredo é saber usá-los com parcimônia e discernimento. O que é um clichê? Em geral, é uma maneira interessante de mostrar ou dizer algo, uma maneira que mostra ou diz com tal eficácia que todo mundo começa a utilizá-la. Daí a pouco, todo mundo já viu algo parecido. Daí a alguns anos, ninguém agüenta mais ver – isto é uma figura de linguagem, porque estudos científicos já demonstraram que o público agüenta, sim, rever uma coisa um milhão de vezes, desde que haja alguém disposto a mostrá-la um milhão de vezes.

Vou dar um exemplo banal. O filme começa com a luz se acendendo na sala de um apartamento, onde entra uma mulher jovem, vestida de executiva. Ela joga a bolsa sobre o sofá, liga a secretária eletrônica, e sai por uma porta; quando começamos a ouvir os recados ela retorna, mastigando uma maçã; senta no sofá joga os sapatos para longe... Pronto, está dito tudo. É uma jovem independente, mora sozinha, trabalha pra caramba, mal tem tempo de comer... Houve um dia um roteirista que, incumbido de apresentar rapidamente esta personagem bolou esta ceninha. Que foi copiada alguns milhares de vezes desde então.

Já viram um bêbado no cinema brasileiro? Ele vem sempre cambaleando pela rua afora, bebendo na boca da garrafa. Olhe, eu nunca vi na vida real um bêbado bebendo da boca da garrafa, e olha que nestas cinco décadas eu já passei mais tempo dentro de bares do que dentro de bibliotecas. Mas não importa. Mostrar o cara bebendo na garrafa tem mais ênfase do que mostrar num copo. A função do clichê é dizer algo numa fração de segundo, e nessa fração de segundo ficou dito: esse sujeito está bêbado às quedas.

A função do clichê é passar informações rápidas sobre detalhes secundários para poder avançar a história e falar de coisas mais importantes. Para que essa informação seja passada rapidamente, a imagem tem que ser clara, direta inequívoca: esse sujeito está bêbado, aquela moça mora sozinha e trabalha muito. O clichê se justifica como um atalho na descrição ou na exposição, para conduzir a narrativa ao que realmente importa, ao que de fato interessa. O problema é quando os clichês se sucedem, os lugares-comuns vêm um atrás do outro, e só levam a novos lugares-comuns e novos clichês. Aí percebemos que o autor não tem muita coisa a dizer, está simplesmente repetindo coisas que já viu e que aprendeu a fazer, mas que em si não dizem muito – é como aqueles músicos que ficam a tarde inteiro “praticando escalas”, tocando dó-ré-mi-fá-sol-fá-mi-ré-dó, para ficar com os dedos mais ágeis, mas a música em si nada diz, não desperta emoção estética alguma.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

1278) Afeganistão: Cabul (18.4.2007)




Quando eu tinha 7 ou 8 anos ficava de Almanaque Mundial em punho, decorando as capitais do mundo. Para quê? Não sei, mas para um agnóstico precoce um almanaque era um bom sucedâneo para as Escrituras Sagradas. Tudo que tinha ali era verdade. Sendo verdade, valia a pena saber de cor – pois nunca se sabe. 

Todo o meu conhecimento sobre o Afeganistão residia nas duas palavras acima, até o dia em que os talibãs explodiram as estátuas de Buda no flanco da montanha. Confesso que quando George W. Bush invadiu o país algum tempo depois, sob o esfarrapadíssimo pretexto da estar caçando Osama Bin Laden, pensei: “Bem feito para todos dois”.

O que aconteceu foi que de repente o Afeganistão começou a existir, não só para mim, mas para o mundo ocidental em peso. Prova disto é a quantidade de livros com “Cabul” no título que a gente encontra no balcão da livraria. 

O mais conhecido é O livreiro de Cabul, reportagem de uma jornalista norueguesa que ficou algum tempo hospedada na casa do tal livreiro, e depois escreveu um livro, o qual tem vendido que só pipoca em comédia. 

Em princípio o livro seria uma louvação do esforço do livreiro para manter acesa (digamos) a chama da cultura num país devastado pela intolerância religiosa e depois pela guerra; mas a jornalista, norueguesa que é, não foi embora sem fazer suas críticas ao machismo e ao patriarcalismo local. Vai daí que agora surge outro livro: Eu sou o livreiro de Cabul, em que o personagem do primeiro contesta a norueguesa e defende seus próprios valores.

Cabul no Inverno é um relato (meio pessimista, ao que parece) do pós-guerra no país, e acaba de chegar às livrarias As andorinhas de Cabul, um romance que se passa no Afeganistão pré-invasão norte-americana. E tem também Mulheres de Cabul, outra reportagem de viés feminista, retratando as muitas repressões específicas sobre as mulheres afegãs, cujo destino popularizou no Ocidente, nos últimos anos, outra palavra: “burka”. 

E na capa deste último livro vi uma foto que me deu um sobressalto. A foto mostra algumas meninas, trajando a pesada burka das mulheres afegãs, amontoadas em um lugar qualquer e fotografadas de perto, olhando para a câmera.

Esta foto me lembrou de imediato outra, parte da famosa série tirada pelo fotógrafo Flávio de Barros na Campanha de Canudos. É a foto das pessoas aprisionadas pelas tropas federais nos últimos dias de combate no Belo Monte: uma pequena clareira com centenas de mulheres e crianças andrajosas sentadas no chão. 

Um detalhe desta foto, ampliado, foi utilizado na capa da edição dos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles sobre a Guerra de Canudos. É a imagem de uma mulher inesperadamente bela, com duas crianças, o olhar abatido, sem rumo. As duas fotos são reproduzidas em tom sépia, e em ambas existe a mesma granulação, os mesmos andrajos, a mesma expressão perdida. 

Dá o que pensar, cem anos depois. Afeganistão: Canudos.






1277) A via-crucis de Romário (17.4.2007)



Escrevi aqui (“A romaria de Romário”, 6 de fevereiro) sobre a campanha do grande Baixinho rumo ao seu milésimo gol. Tudo estava bem encaminhado. Romário marcou 9 gols em apenas 3 jogos, contando até (ninguém me convence do contrário) com uma pequena colaboração dos juízes (marcando pênaltis e mais pênaltis) e de alguns goleiros que iam nas bolas sem muita convicção, em jogos cujo resultado já estava definido, e um gol a mais não faria diferença.

Quando ele atingiu o 998, o Rio de Janeiro (cidade movida a marketing) se mobilizou inteiro para o milésimo. Quem não mora na cidade não tem a proporção da coisa; ouve o alarido das tevês e das rádios, mas ouve à distância. Num dos jogos em que ele poderia ter o feito o Gol Mil, saí passeando pelas ruas do bairro do Flamengo, num domingo às seis da tarde, e onde houvesse um TV ligada as calçadas estavam cheias de cadeiras, e de gente em pé, assistindo e esperando. E não eram apenas os futeboleiros habituais. Vi famílias inteiras, o cara levando a mulher, os filhos pequenos sentados no colo... Tudo isto para quê? Para um dia o menino dizer, aos cinqüenta anos: “Eu vi o gol mil do Romário”.

Por enquanto ninguém viu ainda, e eu culpo o próprio Baixinho. Na semana que antecedeu o jogo Vasco x Flamengo, quando ele tinha 998, o “Globo Esporte” descobriu um gol que a equipe dele não tinha computado, o que elevaria o número para 999. Marrento, ele recusou e devolveu o presente: “Fica de lambuja”, disse ele ao microfone. No domingo, o Vasco deu uma sapatada de 3x0 no Flamengo, e ele fez o terceiro gol, um golaço. Tivesse aceito o gol recém-descoberto, aquele teria sido o Gol Mil, e era um gol para entrar na História, o terceiro de uma vitória esmagadora sobre o maior rival. Haveria flashes espoucando até agora.

Mas não quis. Não quis, e daí em diante, como dizem os jogadores, “a bola não quis mais entrar”. Jogos e mais jogos sem nada acontecer, inclusive este último Vasco 4x4 Botafogo, em que durante os 90 minutos Romário ficou com a bola (segundo a TV-Globo) exatamente 10 segundos, o tempo de driblar um zagueiro e chutar por cima do gol. O Vasco perdeu nos pênaltis, caiu fora do Campeonato, e a equipe de produção do Baixinho ficou com uma festa adiada nas mãos. Pior são os técnicos de marketing dizendo cobras-e-lagartos dele, dizendo que o rapaz amarelou. Pois é, agora, só em maio.

Quando vocês revirem os gols e as jogadas fantásticas de Pelé na Copa de 70 (o chute a gol do meio de campo, o drible de corpo no goleiro uruguaio, o salto de dois metros para cabecear contra o gol da Itália) lembrem que aquele cara tinha 29 anos e mil gols no currículo. Estava num clímax que ninguém jamais igualou. Romário merece fazer mil gols, e até mais. O que não merece é passar por um sofrimento tão grande. O peso do marketing está sendo excessivo para um cara que tem 41 anos em cada panturrilha.

1276) A areia da ampulheta (15.4.2007)



Muita gente experimenta a sensação de que, à medida que os anos passam, vão ficando cada vez mais curtos. Tenho várias teorias para explicar este fato inusitado. Quando tínhamos dez anos de idade, um ano parecia uma coisa interminável, que não iria acabar nunca. Pensávamos nas férias de fim de ano e achávamos que quando elas chegassem estaríamos decrépitos, de barbas brancas. Hoje, doze meses passam assim: vupt! Quando a gente menos imagina, lá vem a Micarande de novo.

Leon Tolstoi tinha uma boa teoria, baseada nas proporções. Dizia ele: “Para um menino de cinco anos, um ano é 1/5 do tempo que ele experimentou, ou seja, é muita coisa. Para um velho de 80 anos, é apenas 1/80”. Faz sentido, porque corrobora uma verdade intuitiva que descobri sozinho: nossa mente desconhece o Passado e o Futuro, conhece apenas o Presente, e este corresponde à memória de todas as nossas experiências. Tolstoi aos 80 anos tinha um Presente com esta mesma extensão, quase incomensurável, mas o preço disto era que um ano, lá dentro, sumia de vista.

Há teorias segundo as quais os anos estão mais curtos devido a um processo astronômico qualquer, e que nossos calendários e a nomenclatura das quatro estações não correspondem mais às voltas da Terra em torno do Sol. Mas a Ciência discrepa.

Outra teoria diz: imagine uma ampulheta, um relógio-de-areia. A parte de cima está cheia de areia, a qual começa a escorrer, num filete fininho, pelo orifício, para se depositar na metade de baixo. A areia da parte de cima foi cuidadosamente nivelada, de modo que corresponde a um círculo colocado num plano horizontal. Este círculo é Um Ano (ou um dia, ou um mês, o que quisermos). Seu diâmetro depende de quê? Depende da quantidade de areia que resta para se escoar. À medida que lá embaixo a areia vai escoando, o volume total da parte de cima se reduz, a areia como um todo vai descendo, e o círculo plano da sua superfície vai se reduzindo em tamanho. O sujeito olha para o lado de repente e pensa: “Oi... Diminuiu?!”

Esta redução explica também a sensação que temos, ao longo da vida, de que o mundo vai ficando pequeno. As distâncias físicas diminuem, porque automóveis e aviões são mais rápidos. As distâncias psicológicas também, graças ao fax, ao DDD e DDI, à Internet, ao Skype. A cada encolhimento do Espaço, corresponde um encolhimento proporcional do Tempo. Se hoje a gente transpõe mil quilômetros num pulo, por que não transporia mil dias?

E a vida segue, construindo seus castelos numa areia que não pára de se escoar por um ralo invisível, numa hemorragia poenta, paciente e fatal. Daí a pouco o círculo de cima já está deste tamanhinho, e parece ainda menor pela quantidade de coisas que ali edificamos, planos, projetos, sonhos, tudo já se atravancando e se esbarrando num circulozinho cada vez menor; mas já nos acostumamos a ele, estamos ali há tantos anos que temos todo o direito de achar que ele vai permanecer ali ininterrupt