sexta-feira, 2 de outubro de 2009

1284) Era tudo um sonho (25.4.2007)




(Little Nemo)

Histórias desse tipo são muito freqüentes. O protagonista está levando sua vidinha comum, e de repente fatos estranhos começam a acontecer. Seguem-se vários peripécias e a última frase do conto diz: “Então ele acordou e descobriu que tinha sido tudo um sonho”. Às vezes o autor, mais precavido, planta uma pista do que vai acontecer, dizendo algo como: “Estava cansado, sentei na poltrona e cerrei os olhos por alguns minutos; despertei quando ouvi a porta se abrir e vi entrar por ela uma fada, envolta numa luz esplendorosa...” Ou seja, ele deixa para o leitor uma pequena pista indicando que a partir de um certo ponto o sujeito estava dormindo. Mas por quê?

Um conto é uma história fictícia, inventada, sem compromisso total com isto que chamamos de “realidade consensual” (um ambiente em que todos concordamos sobre o que está à nossa volta). Se é assim, o autor pode inserir a qualquer momento algo que não pertença a esta realidade – um coelho falante, por exemplo – mas que seja necessário à sua narrativa. Mas o Realismo literário condicionou a mente de escritores e de leitores. O irreal deixou de ser uma opção. Era como se a partir de uma certa época tivesse se estabelecido um pacto entre Autor e Leitor no sentido de que o primeiro só poderia falar de coisas que fizessem parte da experiência concreta do segundo, na qual não havia lugar para coelhos falantes. O álibi de “era tudo um sonho” surgiu para conciliar estes dois impulsos – o de contar histórias onde esses elementos fantásticos fossem necessários, e o de depois trazer tudo de volta para a moldura de referências habituais do leitor. Se era tudo um sonho, tudo se justifica, porque nada daquilo existiu senão dentro da mente do personagem.

Um outro aspecto é importante. Como muitos escritores costumavam publicar seus contos em jornais (era o caso de Machado de Assis, entre muitos outros), isto foi um fator a mais para dar aos seus textos um ar de crônica, de texto leve, mero prolongamento do cotidiano, uma extensão da vida do Autor e da vida do Leitor. Tinha de certo modo a função de servir de argamassa ideológica para as experiências comuns a ambos em sua vida social. Podemos supor que a maior parte dos personagens de Machado de Assis não diferia muito, em classe social e em nível cultural, dos leitores a quem ele dirigia a maioria dos seus contos. Autor, Leitor e Personagem vivem todos num mesmo “continuum”, num mesmo universo de referências, numa relação triangular em que os dois primeiros contemplam à distância o terceiro e usam seu comportamento para extrair lições sobre a natureza humana, a vida em família, os sentimentos, as atitudes sociais, etc. O texto serve como elemento de ligação entre os três, fazendo com que o conto ou o romance publicado no jornal seja uma extensão do gabinete onde o Autor escreve e da sala de visitas onde o Leitor lê. E onde não há espaço para o Irreal, a não ser “que seja tudo um sonho”.





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