quinta-feira, 30 de outubro de 2008

0625) A janela da poesia (20.3.2005)




(Ferreira Gullar)

Ferreira Gullar tem uma definição irretocável para uma das grandes angústias na vida de um poeta. Diz ele: “O grande problema do poeta é convencer a mulher de que, quando está debruçado na janela, fumando, olhando lá pra fora, ele está trabalhando”. 

E não é mesmo? A mulher de um cara como esse não precisa ser fã de Chico Buarque para cantarolar “Vai trabalhar, vagabundo” enquanto espana os móveis. Homem debruçado na janela só pode estar espiando os decotes que passam. E eu vos direi, no entanto, que é em momentos como esse que brotam as grandes idéias os grandes versos, as grandes inspirações.

O trabalho criativo é imprevisível. Maiakóvski, no seu essencial livrinho Como fazer versos, afirma, justificando seu hábito de anotar todas as idéias que lhe vêm à mente: 

"Gasto todo o meu tempo com estas preparações. Passo assim 10 a 18 horas por dia e estou quase sempre murmurando algo. É com essa concentração que se explica a famigerada distração dos poetas. O trabalho com estas preparações vai acompanhado em mim de semelhante tensão que em noventa por centro dos casos sei até o lugar em que, no decorrer de quinze anos de trabalho, vieram-me e receberam sua forma definitiva tais ou quais rimas, aliterações, imagens, etc.”

É exatamente assim que sucede comigo, e com muitos outros, tenho certeza. Comparando com o mundo informático, eu diria que a poesia é uma janela do Windows que nunca se desliga; fica minimizada num cantinho da mente, mas pronta para ser aberta, e o trabalho retomado, ao menor estímulo. Mesmo quando estamos conversando, trabalhando noutra coisa, comendo, namorando, aquela janelinha está ativada e pronta. 

Daí a famosa frase de Fernando Pessoa: “E quando estou pensando, estou sempre pensando noutra coisa”. A outra coisa é a janela da poesia.

Não devemos achar que o trabalho criativo é puramente mental, porque idéias que não são escritas são arquivos que não são salvos: basta o computador ser desligado (ou seja, uma noite de sono) para que tudo se evapore. Não adianta ter uma idéia genial: é preciso colocá-la no papel, brigar com ela, batalhar, cortar, reescrever, dar polimento, e isto às vezes leva anos. 

Tem poemas que eu comecei a escrever há mais de vinte anos, ainda não prestam, mas podem prestar um dia. Idéias novas surgem nos momentos mais inesperados. E o poeta (a mente criativa em geral; pode ser também um matemático, um cientista) é como um pára-raios. Tem que estar em alerta permanente, vigília permanente, porque nunca sabe quando os raios vão cair, só sabe que eles acabam caindo. 

Um poeta debruçado na janela é um pára-raios. Ele está trabalhando, sim, madame. Um pára-raios não trabalha apenas no momento em que recebe uma descarga, assim como um policial não trabalha apenas no momento em que evita um crime, ou um bombeiro não trabalha apenas quando escorrega por aquele poste vertical e entra no caminhão. Um pára-raios trabalha 24 horas por dia, e acha pouco.





0624) O repórter do medo e da repulsa (19.3.2005)



Morreu nos EUA o escritor Hunter S. Thompson, aquele malucão que é considerado o fundador do “jornalismo gonzo”, seja isto o que for. Não digo “suicidou-se” porque seria um pleonasmo, uma redundância. Thompson passou a vida inteira matando-se aos poucos, com drogas, e de vez em quando registrava em suas reportagens seus acessos maníacos de auto-destruição, sempre temperados com um humor amargo, auto-ironia e descontração. Dizem que o sujeito que se mata é porque se dá pouco valor, mas eu acho que é justamente o contrário. Um sujeito que se mata é porque dá excessiva importância a si mesmo, e conseqüentemente aos problemas mesquinhos e minúsculos que aporrinham sua vida tanto quanto a do picolezeiro da esquina. Ele acha normal que o picolezeiro passe por essas coisas, mas, ele? O sujeito mais importante do mundo? Melhor pular da cobertura.

O grande público conhece Thompson, mesmo indiretamente, por causa do filme Fear and Loathing in Las Vegas, em que ele é interpretado por Johnny Depp. Ele é um dos grandes nomes de um tipo de jornalismo literário em que os norte-americanos são insuperáveis. Há vários rótulos para isto: “gonzo journalism”, “new journalism”, etc., mas isso para mim é como uísque escocês: sei que gosto, mas não distingo uma marca da outra. Em todo caso, é o jornalismo de Truman Capote em A Sangue Frio, o de Norman Mailer em Os Degraus do Pentágono, o de Tom Wolfe em The Electric Kool-Aid Acid Test (este aqui não li). É um mergulho total do escritor no assunto, trazendo para o momento da escrita toda sua informação cultural, suas próprias referências biográficas, seu jeito de viver, de pensar e de escrever. É também um jornalismo em que o escritor se permite usar técnicas da ficção: imaginar diálogos que não presenciou, descrever cenas que não sabe se aconteceram ou não, atribuir pensamentos a pessoas reais em circunstâncias reais. Como se vê, uma corda-bamba onde basta um vacilozinho para o sujeito ir à barra dos tribunais por calúnia, injúria, difamação e má literatura.

O traço distintivo de HST era o fato de que enquanto fazia as reportagens ele se entupia das mais variadas drogas, e isto era devidamente documentado no texto final. Não pensem que estou aconselhando ninguém a fazer o mesmo. Neste exato instante deve haver na América um milhão de pretensos “jornalistas gonzo” entupindo-se de drogas e imaginando, coitados, que isto os fará escrever tão bem quanto HST. Talentos de porte médio a droga frita dentro de uns poucos anos. Mas existem talentos robustos que travam uma batalha pública contra a droga durante décadas, o que faz muita gente atribuir erroneamente à droga um brilhantismo, uma agudeza mental que é justamente quem impede a droga de prevalecer durante esses anos todos. Foi o caso de William Burroughs, de Edgar Poe, e de Hunter S. Thompson, que no dia 20 de fevereiro, aos 67 anos, apertou o seu último gatilho.

0623) Luz e mágica industrial (18.3.2005)


(The Sims)

Jesus Cristo convida George Lucas para uma partida de golfe. Logo na primeira tacada, a bola de Jesus vai passando direto quando de repente dá uma quebra de 90 graus na trajetória e, pimba! Cai dentro do buraco. Lucas dá um olhar meio atravessado pra ele mas não reclama. Desfere sua tacada. A bola vai direto num tronco de árvore, ricocheteia, bate numa pedra, sobre no ar, choca-se com um helicóptero que vinha passando, cai sobre um lago, é abocanhada por uma perereca, a qual por sua vez é abocanhada por uma águia que se eleva nos ares com a perereca na boca; a perereca acaba por largar a bola que cai de uma altura de cem metros, pimba! Dentro do buraco. Jesus olha meio atravessado, e George Lucas o tranqüiliza: “Calma, calma, é tudo computação gráfica”.

A computação gráfica aplicada à imagem (cinema, TV, internet, vídeo) evoluiu tanto que me proporcionou minha teoria mais importante dos últimos vinte anos: “Somos o Video-Game de Alguém”. Nosso Universo é real, é feito de matéria, é organizado exatamente da forma descrita pelos nossos cientistas. Só tem uma coisa: tudo foi criado por uma raça de Super-Seres Cósmicos, com a finalidade de entretenimento, testes científicos e enriquecimento espiritual.

Não sei se o caro leitor já jogou, ou viu alguém jogar, The Sims, aquele joguinho em CD-Rom onde criamos algumas casas, algumas famílias, e eles passam a viver, trabalhar e interagir uns com os outros. As crianças adoram. Já saíram uns dez “pacotes de expansão” cheios de novidades: os Sims agora são vistos no trabalho, na rua, nas festas, nas diversões... Eles namoram, casam, têm filhos, morrem. E a garotada não desgruda do computador. Nós somos os Sims de uma raça cósmica: “Superior Intelligence’s Mankind System”. Eles planejaram os algoritmos matemáticos que presidem à organização da matéria, à criação da vida, à formação do Sistema Solar e dos ecossistemas terrestres, e por fim ao surgimento da Humanidade. São muito, muitíssimo mais poderosos do que os alienígenas misteriosos de Clarke & Kubrick em 2001, Odisséia no Espaço. Na verdade, os alienígenas de 2001 não passam de um pacote-de-expansão do programa original.

Confesso que minha teoria não é totalmente original, foi parcialmente bebida em livros como Simulacron 3 de Daniel Galouye, “The Tunnel Under the World” de Frederik Pohl e outros, que são os avós de Matrix. A computação gráfica me serviu apenas para demonstrar a possibilidade matemática de que isto ocorra. Com nossa tecnologiazinha pré-histórica, somos capazes de determinar matematicamente cada ponto de uma imagem aparentemente tridimensional, sua cor, sua textura, sua localização, seus deslocamentos. Somos capazes de usar esses pontos para compor imagens, seres, pessoas. E criar cenas inteiras, filmes inteiros com essas nuvens de pontos coloridos, fazendo cada criatura dessas obedecer nossas instruções: “Sente ao teclado... escreva sua coluna do jornal...”

0622) A praga do telemarketing (17.3.2005)



De vez em quando algum amigo meu se queixa: “Ligo pra sua casa e só dá secretária eletrônica!” Minha resposta: “Claro, foi pra isso mesmo que a instalei”. Ele: “Para manter os amigos à distância?” Eu: “Não, para filtrar as ligações. Eu só atendo o telefone se souber quem está falando”. Uma das razões para isto é a praga do telemarketing que, pelo menos aqui no Rio, é uma dor de cabeça permanente para quem tem telefone em casa. Você entra no chuveiro, o telefone toca, e você, que está esperando uma ligação importante, enrola-se na toalha e sai molhando o corredor até o aparelho. Do outro lado, uma voz feminina cheia de jovialidade lhe pede uma doação para um asilo de velhinhos. Nada contra os velhinhos, mas minha única vingança possível é dizer que não, muito obrigado.

Ou então eu interrompo uma refeição para atender, e do outro lado é uma moça que tenta por fina força me convencer a aceitar mais um cartão de crédito além dos dois que já possuo. Ou então é um banco atrás de novos correntistas. Ou então uma corretora de seguros. Ou então uma editora me oferecendo assinatura de revista a preço de banana. Por estas e outras eu não interrompo mais o meu banho, não deixo um prato pela metade, não largo o teclado quando ouço o telefone tocar lá fora. Se o fizesse, não teria tempo para mais nada senão ficar repetindo “Não, muito obrigado”, com a resignação de um papagaio.

Às vezes, quando a interrupção vem num momento mais inadequado, a vontade que me dá é explodir, dizer palavrões, tratar mal a pessoa lá do outro lado. Duas lembranças me dissuadem disto. A primeira é o fato de que nos EUA, há pouco tempo, uma dona-de-casa atendeu mal uma dessas ligações e o telefonista (era um cara de maus bofes) passou a ameaçá-la – afinal, ele sabia o nome, o telefone e o endereço dela, e ela não sabia nada sobre ele. A segunda é o fato de que minha filha já foi telefonista do Sebrae e mais de uma vez chegou em casa com os olhos inchados, porque algum brutamontes de maus bofes a tratou mal. Eu sou do tempo antigo, e o que não quero que façam à minha filha não vou fazer à filha dos outros.

Aliás, quero refazer esta última colocação. Todos nós que temos de quarenta anos pra cima vivemos reclamando da estupidez de certos hábitos contemporâneos, e contrapomos a eles os hábitos “do tempo antigo”. Amigos, mudemos de estratégia. Dizendo assim estamos desvalorizando nossos valores. Tratar bem a filha dos outros não é coisa antiga, é coisa moderna, é civilização. Invadir o espaço telefônico alheio, não é eficiente nem moderno: é uma grosseria, um desprezo pelo cliente, comparável ao “spam”. Minha resposta atual, quando tenho o azar de atender uma ligação assim, é dizer: “Eu estava interessado, sim, em adquirir um novo cartão, mas recuso-me a me envolver com uma empresa que interrompe minhas atividades dessa forma grosseira e não-solicitada. Vocês acabaram de perder um cliente. Passe bem!”

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

0621) Leituras aconselhadas (16.3.2005)




Acontece de vez em quando, e toda vez que acontece eu penso comigo mesmo: “Preciso preparar uma resposta para a próxima vez que acontecer”. Por alguma razão freudiana, nunca preparo (talvez a razão freudiana seja a vertigem do improviso, a fascinação pelo ato de abrir a boca e começar a falar sem ter a mínima idéia do que vou dizer). 

Mas voltando ao assunto principal, tudo isso ocorre quando alguém me diz: “Me aconselhe um livro bom”. Como diabo se responde a isto?

Não há conceito mais subjetivo e impalpável do que o de “um livro bom”. Pessoas gostam de ler diferentes coisas, por diferentes motivos. Eu não posso simplesmente aconselhar um clássico da literatura: “Leia Os Irmãos Karamazov...” Corre o risco do cara perguntar se eu próprio já o li, e eu ter que dar a humilhante resposta. (Me consolo em pensar que Jorge Luís Borges também não leu.) 

Muitas vezes o que o interlocutor quer é que lhe aconselhemos isso que hoje em dia se chama um livro “cult” – um livro bom, bem escrito, fascinante, que dê o que pensar, mas que por alguma razão seja conhecido por muito pouca gente, o tipo do livro que dificilmente veremos elogiado num suplemento literário. 

O que o nosso amigo quer equivale a nos perguntar “uma praia legal onde passar as férias”. Tá na cara que ele não quer ouvir como resposta “Porto Seguro” ou “Búzios”.

Como eu tenho fama de conhecedor de ficção científica, muitas vezes a pergunta é: “Qual o livro de FC que você me aconselha?” Fico igualmente perdido, a não ser que se trate de um amigo cujos gostos literários eu conheço bem. Porque aí posso pensar por associação de idéias. 

Eu digo: “Olhe, se você gosta de política e ciência, talvez goste de Os Despossuídos, de Ursula Le Guin – é a história de um sujeito dividido entre dois mundos, sabendo-se prestes a fazer uma descoberta científica que vai revolucionar a humanidade, mas para isto tendo que largar seu país pobre e socialista e ir trabalhar num país capitalista e corrompido, mas que vai lhe dar laboratórios à altura”. Onde se lê “país” leia-se “planeta”, aliás.

Aconselhar leituras é sempre problemático porque a gente vê num livro uma coisa, e o cara ao lado vê outra. 

Já me pediram um livro engraçado e eu propus O Pêndulo de Foucault

Já me pediram um livro erótico e eu aconselhei Noites do Sertão de Guimarães Rosa. 

Já me pediram um livro de amor e eu indiquei Fragmentos do Discurso Amoroso de Roland Barthes (talvez a única coisa inteligente já escrita sobre o tema). 

Já me pediram um livro de terror, daqueles de deixar o cara uma semana sem dormir, e eu (desta vez de propósito) indiquei As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano.

Aconselhar livros é pior do que alcovitar namoros alheios, porque nunca sabemos quando um casal livro-e-leitor vai se ajustar, se encaixar, se combinar. Melhor deixar isto entregue aos deuses do Acaso, e à bússola cega e clarividente de cada um.






0620) Zilka Salaberry (15.3.2005)



Morreu Zilka Salaberry, a Dona Benta do “Sítio do Picapau Amarelo”. Para mim é o caso típico da atriz de um papel só, embora eu saiba muito bem que Dona Zilka teve uma carreira longa e variada. Paciência. Anos e mais anos interpretando a matriarca do Sítio fixaram sua imagem de maneira indelével na minha (acredito que na de nós todos) memória afetiva.

Cresci devorando os livros infantis de Monteiro Lobato. Alguns deles, como Historia do Mundo para as Crianças, Emília no país da gramática, Serões de Dona Benta ou O Picapau Amarelo, não li menos de cem vezes. Por que? Acho que porque eu era meio burrinho e acabava me esquecendo, porque a releitura sempre me deu tanto prazer quanto a leitura inicial.

Nunca me dei bem com a literatura adulta de Lobato, que mesmo assim tem alguns contos bons. Mas o linguajar era pomposo, o que nos mostra que as crianças de 1930 eram mais contemporâneas nossas do que os adultos. Lobato e Malba Tahan formataram minha cabeça e a de mais de uma geração. Graças a eles dois, dezenas de milhões de brasileiros como eu escaparam da burrice. Um país que tem dois escritores como estes não pode dar errado.

Voltando a Dona Benta, é admirável que Lobato tenha escolhido uma avó, e não um avô, como o símbolo da sabedoria. Talvez eu tenha me deixado contaminar com facilidade porque sou de uma família onde as mulheres idosas sempre foram chegadas tanto aos livros quanto às lições de sapiência, ao saber “só de experiências feito”. Minha mãe, minha avó Clotilde, minha tia Adiza, foram algumas das principais Donas Bentas que supervisionaram meu crescimento e a formação do meu caráter. Isto me tornou um adepto de certas formas de matriarcado, porque sendo homem eu entendia muito bem os rompantes de autoritarismo e de rispidez dos homens, sabia de sua falibilidade como líderes. As mulheres, mais compassivas, mais serenas, tinham uma autoridade que se baseava menos no individualismo e mais numa rede interligada de responsabilidades.

É notável que Monteiro Lobato, num livro como A Reforma da Natureza, faça com que ao final da II Guerra Mundial os líderes da Europa, engalfinhando-se em contradições e disputas, resolvam convocar Dona Benta e Tia Nastácia para servir como “árbitras” das questões internacionais. Dona Benta, muito bem informada sobre política, aceita imediatamente e parte para a Europa. Aos oito anos de idade eu achava isto uma coisa meio surrealista, e ao mesmo tempo extremamente lógica. Afinal, Hitler, Mussolini e o Rei Carol da Romênia tinham comprovado sua incompetência para gerir o mundo, e nada mais natural do que convocar para conserta-lo as pessoas cujo sistema de administração tinha produzido uma comunidade organizada e pacífica.

Dona Benta é o símbolo de uma autoridade baseada na experiência e na credibilidade, mas disposta a acreditar no novo, no imprevisto e no improvável – haja vista a disposição com que ela se deixa arrastar nas aventuras das crianças, seja visitando a Grécia antiga, seja indo parar na Terra do Faz de Conta.

0619) O rádio e a vitrola (13.3.2005)




(Rádio-vitrola Philips)

O rádio e a vitrola (ou CD-Player, para os mais contemporâneos) nos dão experiências diferentes da vida. Quando ligamos o rádio, nunca sabemos exatamente o que vamos escutar. No máximo temos idéia do horário dos programas: programa de notícias, de música, de futebol, etc. Mas quando ligamos um programa musical, não escolhemos as canções, ficamos à mercê do programador. Claro que sempre é possível escolher uma rádio “que só toca MPB”, ou “só toca rock”, etc., mas não temos direito a escolhas mais específicas.

Na vitrola, o programador somos nós. Ela só toca se a gente disser o quê, e botar pra tocar. Por definição, então, a vitrola só toca o que a gente possui em casa. Temos controle sobre a programação – com a ressalva de que, se quisermos ouvir um disco que não temos, nada feito.

Ouvir rádio ou ouvir vitrola, portanto, são experiências de vida distintas. Na infância, toda vez que eu ligava o rádio tinha medo de que tocasse muita porcaria, mas o que esperava era que de repente aparecesse uma música que eu gostava e não tinha em casa, ou então alguma novidade que me fizesse largar qualquer brinquedo com que estivesse me entretendo (ou, de preferência, largar o dever de casa) e correr para junto, para ouvir até o fim e ficar sabendo qual era a música, quem era o artista. Ouvir rádio era um contato com O Mundo. As grandes epifanias musicais da minha vida foram através do rádio. A primeira vez que ouvi “Saudosa Maloca”, a primeira vez que ouvi “Eleanor Rigby”, ou The Brothers Four cantando “The Green Leaves of Summer”, Nelson Gonçalves cantando “Vermelho 27”, Leny Eversong cantando “Granada”.

Já a vitrola nos transporta para um mundo perfeito porém fechado. Nesse mundo, só ouvimos o que já conhecemos e já gostamos; e é um mundo onde não existe a novidade, a surpresa. Mesmo a possível surpresa tem que passar primeiro pelas nossas mãos, tem que ser comprada ou ganha e colocada por nós para tocar.

Assim é a cabeça das pessoas. A pessoa com Cabeça Rádio vive antenada para tudo que acontece em volta, é sempre uma das primeiras a perceber o brotar de novas tendências. Vive plugada nos terminais da Contemporaneidade, sensível ao mínimo estremecimento sísmico da cultura planetária, venha ele da Turquia ou da Provença. O lado negativo disto é que a pessoa tende a se distrair com irrelevâncias, a valorizar besteiras, e a consumir quantidades industriais de lixo cultural.

A pessoa com Cabeça Vitrola vive em seu mundo perfeito, onde as mudanças só ocorrem com uma lentidão geológica. Torna-se um gurmê de si mesmo, porque de tanto escutar e re-escutar seu próprio repertório passa a conhecê-lo num grau espantoso de sutileza e detalhe. As novidades lhe chegam em conta-gotas. E seu gosto, à medida que se torna exigente e perfeccionista, torna-se também conservador. Só ouve o que gosta, e só gosta do que já conhece.

Na vida cultural brasileira temos numerosos e ilustres exemplos de ambos os grupos.



quarta-feira, 22 de outubro de 2008

0618) Pobre princesa feia (12.4.2005)



Nos meus passeios diários pelas homepages de jornais do mundo inteiro (bem, de três ou quatro países apenas, para ser sincero) tenho visto uma cachoeira de artigos irônicos e cheios de graçolas a respeito do anunciado casamento do Príncipe Charles com a Sra. Camilla Parker-Bowles. Todo mundo sabe que o casal namora e se relaciona há décadas. Ao que parece, antes mesmo do casamento dele com a falecida Princesa Diana os dois já trocavam abraços. E durante o casamento Charles/Diana, a desafortunada Camilla virou uma espécie de saco-de-pancadas da imprensa inteira. Por que? Porque é uma mau-caráter, uma calhorda, porque não escova os dentes, porque passa cheque sem fundo? Não: porque é feia.

Coitada de Dona Camilla, que aliás nem sequer é mais feia do que a maioria das inglesas, benza-as Deus. A finada Lady Di ganhou a simpatia de Deus e o mundo porque tinha uma carinha fotogênica e uma silhueta contemplável, mas era “uma cabecinha-de-vento”, como a qualificou Paulo Francis num momento de magnanimidade. Uma inglesinha como tantas outras, que leu muito os Irmãos Grimm na infância e sonhou em ser princesa e rainha, como tantas brasileirinhas sonham em ser modelos e atrizes. Seu palminho de rosto, comparado ao de Camilla, despertava analogias imediatas com Cinderela e As Irmãs Feias (a feiura de Camilla, claro, valia por duas).

Quem sou eu para dar pitaco na vida alheia. Mas acho que o Príncipe Charles é um sujeito sensaborão, cheio de nós-pelas-costas, e tudo que quer é um matrimônio britânico à velha moda. Qual é o problema, então? O que me espanta é a impressionante unanimidade (no Brasil e fora dele) da antipatia com a Dona Camilla, só porque é feia. Todas as pessoas a quem perguntei não sabem nada dela – sabem que é de família tradicional, que namora com o príncipe, que o Príncipe declarou uma vez que gostaria de ser o O.B. dela, e que ela tem cara-de-cavalo.

Lembro-me de uma campanha presidencial americana, anos atrás (acho que no tempo de Nixon), quando o candidato democrata estava sendo escolhido. Li um artigo numa revista analisando os possíveis candidatos e a certa altura o articulista dizia: “O melhor candidato Democrata seria Fulano de Tal. É sério, honesto, inteligente, competentíssimo, e teria tudo para ser um dos melhores presidentes que o país já teve. Mas nunca será eleito, porque não tem carisma, fotografa mal, discursa mal. Excelente administrador– mas péssimo candidato”.

O que me lembra a piada do bêbado que ao chegar em casa tenta abrir a porta, a chave cai, e ele vai procurá-la junto ao poste-de-luz da esquina. O guarda diz: “Por que não procura no lugar onde a chave caiu?” E ele: “Lá está muito escuro, não vou achar nunca. Melhor procurar aqui, que pelo menos tem luz”. É o problema dos americanos, coitados, sempre procurando um presidente na TV. Deixem o Príncipe Charles procurar a chave dele no escuro. Um sujeito não pode ser bobão quando sabe o que quer.

0617) Sidney Lumet (11.3.2005)



O Oscar deste ano foi o chiclete de sempre. Não havia sequer um grande “blockbuster” entre os indicados para Melhor Filme. Eu acho isto um bom sinal. Não tinha Titanic, Senhor dos Anéis, Último Imperador... Apenas cinco filmes de porte médio, dos quais o único que vi e comentei aqui (Entre umas e outras) não tem nada de excepcional mas é um filme assistível. O cinema de Hollywood está cada vez mais parecido com desfile da Beija-Flor, e um filme simples assim é um alívio, como uma roda-de-samba no botequim.

Me alegrei com o Oscar honorário para Sidney Lumet. O auge da carreira de Lumet como diretor coincidiu com o tempo em que eu era cineclubista e crítico de cinema, e ainda admiro sua obra. Lumet não é um “auteur” no sentido europeu do termo, não é um reinventor da linguagem, ou um intelectual com idéias próprias. É um sujeito com alma teatral que domina a técnica do cinema. Seus melhores filmes são modelos de narrativa clássica, aulas de como contar uma história e reger um elenco, extraindo dele o máximo.

Assassinato no Orient Express é a melhor adaptação de Agatha Christie para o cinema (com o Testemunha de Acusação de Billy Wilder, de 1957), não só pela reconstituição de época e pelo elenco, mas pelo roteiro (de Paul Dehn) que pela primeira vez faz justiça às elucubrações do detetive. Dia de Cão é o filme de assalto a banco que formatou todos os outros, um fascinante equilíbrio entre roteiro e improviso. Rede de Intrigas é uma sátira sobre o poder externo e a corrupção interna da TV, com um roteiro (de Paddy Chayefsky) que parece uma HQ surrealista mas acabou sendo profético. A Colina dos Homens Perdidos é um filme exemplar sobre o absurdo da guerra, da prisão e do militarismo. Armadilha Mortal é um mistério policial bem urdido, totalmente teatral, cheio de reviravoltas, e seu único defeito é ser uma tentativa de igualar Jogo Mortal (Sleuth) de J. L. Manckiewicz, o que aliás quase consegue.

Lumet tem filmes fracos, claro; o mais chato de todos é uma adaptação musical de O Mágico de Oz, com Diana Ross e Michael Jackson, tão kitsch e caótica que parece ter sido dirigida por estes dois.

O melhor filme dele, e um dos melhores que já vi, é O Homem do Prego, a história de um judeu que escapa do campo de concentração, vai morar no Harlem de Nova York, e passa a explorar os negros da vizinhança. O filme tem trilha de Quincy Jones, uma inesquecível fotografia em preto-e-branco, tem Rod Steiger no papel principal (às vezes meio “over”, mas sempre impressionante), e uma montagem de flash-backs rapidíssimos que me proporcionou uma das grandes iluminações mentais da minha vida. O Homem do Prego é muitas vezes referido no livro de Lumet (já publicado no Brasil) Fazendo Filmes, e nas memórias do montador Ralph Rosenblum (When the Shooting Stops... the Cutting Begins). É de 1965, mas fico com a sensação de que somente agora, quarenta anos depois, o filme recebeu o Oscar que merecia.

0616) Os oratórios de Farnese (10.3.2005)



Está em cartaz no Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil, uma exposição (ao que parece, a maior já realizada) da obra de Farnese de Andrade, artista falecido em 1996. Tive meu primeiro contato com essa obra em 1971, quando no Festival de Cinema de Brasília o prêmio de melhor curta-metragem foi concedido a um documentário de Olívio Tavares de Araújo sobre a obra de Farnese. Nunca saiu da minha mente aquela coleção de objetos híbridos, “assemblagens”, caixas dentro de caixas, pedaços de bonecos ou manequins mutilados, fotografias antigas, imagens de santos, pedaços variados de vidro, de metal, de conchas do mar.

Há um depoimento de Farnese onde ele afirma ter estudado gravura durante vários anos, mas um dia uma porção de objetos que manipulava começaram a adquirir outro sentido quando justapostos uns aos outros, e ele passou a dedicar-se à confecção desses conjuntos tridimensionais. Há uma sala inteira da exposição dedicada aos seus oratórios: aqueles relicários de madeira de guardar santos, que nas mãos de Farnese viram uma espécie de “monstruário” de justaposições surrealistas. Um bebê de louça partido ao meio, com uma barata no interior. Bolas de cristal que emergem das paredes de madeira como se estas criassem olhos para nos espiar de volta. Há um objeto chamado “Orgasmo”, uma espécie de enorme compoteira de vidro com pedestal, cuja parte inferior é cheia de areia branca, tendo por cima uma camada de minúsculas esferas brancas, e sobre esta outras camada de bolas de vidro um pouco maiores, até que da abertura superior da compoteira emerge uma seqüência de bolas de cristal maciço, sendo que a última e menor delas traz dentro de si a imagem de uma criança.

Cada objeto de Farnese, se visto isoladamente, daria assunto para meia hora de contemplação silenciosa, e incessante associação de idéias. Quando vemos vinte deles numa mesma sala, em dez minutos julgamos ter visto tudo. O que é impacto original e perturbador de um “objeto inquietante”, como diziam os surrealistas, visto em conjunto denuncia o seu caráter técnico, de um gesto criador repetido. Sugere uma simples linha-de-montagem de surpresas pré-fabricadas.

Problema do artista? Não creio. Os oratórios de Farnese não foram feitos para ser assimilados em grupo, e sim isoladamente. Agrupá-los produz uma overdose que anestesia o espectador. É como um livro de poemas, que ninguém pega para ler de cabo a rabo – porque a obra de arte não é o livro, é cada poema. A obra de arte produzida por Farnese não são os trinta ou cinqüenta objetos daquela sala (a exposição toda, aliás, tem mais de 120), e sim cada um deles. Que, idealmente, deveria ser visto e pensado à revelia dos demais. A exposição ideal para Farnese deveria ser uma sala vazia com um objeto no centro, objeto que seria trocado toda semana, para que toda semana viéssemos repetir nossa visita e renovar nossa inquietação.