sábado, 26 de julho de 2008

0467) Quero ver o espírito olímpico (17.9.2004)


(Cameron Clapp)

O leitor há de ler este título e estranhar: “Oi, lá vem ele de novo com Olimpíadas! Vire o disco, cidadão! A Olímpíada já acabou!” Ledo engano, meu camarada. Os verdadeiros Jogos Olímpicos começam hoje, dia 17 de setembro, em Atenas, reunindo 4 mil atletas de 144 países para disputar 19 modalidades esportivas. Você vai ver muito pouca coisa na imprensa, mas pasme: há coisas que acontecem de verdade, pertencem ao mundo real, e nunca aparecem no jornal ou na TV! Pois bem: é hoje a abertura dos “Jogos Para-Olímpicos” de Atenas, os jogos para pessoas que portam algum tipo de deficiência. Basquete em cadeira de rodas, atletismo para deficientes visuais, natação para amputados, e assim por diante. Na organização e logística dos Jogos trabalham 35 mil indivíduos, sendo 15 mil deles voluntários.

Numa nota recente no blog “Boing Boing” (http://www.boingboing.net/), o jornalista britânico Stuart Hughes (BBC) registrava o fato de que nenhuma rede de TV dos EUA iria cobrir os Jogos Para-Olímpicos de Atenas. Isto apesar dos 200 milhões de espectadores (e cerca de 60-70 milhões de dólares de lucro) que a NBC teve cobrindo os Jogos Olímpicos recentemente encerrados. A nota do “Boing Boing” era ilustrada com a impressionante foto de Cameron Clapp disputando uma prova de atletismo, com duas pernas artificiais e sem o braço direito. Clapp, um garoto norte-americano de 18 anos, foi mutilado por um trem em setembro de 2001, mas recuperou-se e, com a ajuda de próteses mecânicas, tem participado de vários eventos esportivos. (Vejam as fotos e a história em: http://www.cameronclapp.com/home.asp) .

Por que motivo Jogos Para-Olímpicos não despertam o mesmo interesse que os outros? Mistério. As Olimpíadas nos fascinam por mostrar a nossa possibilidade de superar obstáculos, de ultrapassar limites, de conseguir o que nunca foi conseguido antes. São um espetáculo de afirmação das possibilidades infinitas do corpo e da mente. Ora... então, meus camaradas, por que não democratizar essa admiração? Está uma coisa muito parecida com a democracia ateniense, onde todo mundo era muito livre, todo mundo era artista, todo mundo era filósofo... menos os escravos, que davam duro para sustentar aquele luxo todo.

A verdade é que as Olimpíadas “normais” nos mostram o lado bonito do corpo, e os Jogos Para-Olímpicos nos mostram os dois lados: a força e a fragilidade, a beleza e a feiura, a glória e a tragédia. É um tema pesado demais, e a indústria cultural talvez não esteja preparada para lidar com isto. Melhor fazer de conta que todo mundo é igual, que todo mundo é perfeito, que desgraças não acontecem e não precisam ser enfrentadas. Hollywood até que tem uma tradição de endeusar deficientes mentais (Forrest Gump, I am Sam, Rain Man...) mas a TV americana não quer mexer nessa área sensível: os deficientes físicos. Até mesmo entre os gregos, o único deus coxo foi arremessado para longe do Olimpo e trancafiado num subterrâneo.

0466) O plágio publicitário (16.9.2004)



(do saite JoeLaPompe)


Certas idéias são tão geniais que seria um crime não plagiá-las. Ainda mais num ambiente competitivo quanto o da publicidade, onde boas idéias não bastam, é preciso ter idéias geniais de manhã, de tarde e de noite, senão o cara perde o emprego. E é numa dessas que os Departamentos de Criação deixam de ser uma indústria (onde as coisas são criadas) para virar um comércio (onde pega-se o que já existe, e passa-se adiante). Folhear revistas e surfar na Internet acaba sendo uma tábua de salvação.

O saite francês Joelapompe (http://www.joelapompe.net/) faz um apanhado desses casos em que um publicitário pede uma idéia emprestada e esquece de devolver. São páginas e mais páginas de exemplos muito esclarecedores sobre várias coisas. Primeira: a imensa criatividade desse pessoal; é uma idéia bem-bolada atrás da outra. Segunda: a imensa cara de pau dos mesmos. Terceira: a imensa irrelevância da gente levar essas coisas muito a sério, uma vez que (o saite mostra) há idéias que recebem prêmio num Festival mesmo sendo uma “chupação” descarada de uma idéia já premiada no mesmo Festival. Ao que parece, lá na selva deles vale tudo.

Tenho uma teoria. Se você pega uma idéia alheia, deve retrabalhar essa idéia a tal ponto que o autor da idéia original tenha dificuldade em reconhecer a sua; ou então seja forçado a admitir que a idéia copiada por você é muito superior à dele. É o que acontece, por exemplo, na página 6 do saite. O “ping” é um anúncio da Toyota (de uma agência brasileira) mostrando um hipopótamo rio abaixo, seguido pelo carro. O “pong” é um anúncio do Land Rover, com a mesma idéia de mostrar o carro “navegando” rio abaixo feito um hipopótamo. Aqui, no entanto, vemos dois hipopótamos meio submersos, com as orelhas despontando dos lados da cabeça; e ao fundo, como se fosse um terceiro animal, o jipe, com os retrovisores dos dois lados, como orelhas. A “rima” visual, inexistente no primeiro anúncio, faz com que a cópia me pareça bem melhor que o original.

A verdade, contudo, é que não se trata de mau-caratismo ou preguiça. É que o meio publicitário é um dos mais propícios à propagação de memes (ver “Os memes”, 23.5.2003). Os memes são idéias que pulam de mente em mente, e que praticamente forçam os seus hospedeiros a passá-las adiante. Quando vemos três cartazes de filmes usando a famosa imagem do “E.T.” de Spielberg (a bicicleta voadora passando diante de uma enorme lua cheia) temos que admitir que o poder de uma imagem se sobrepõe a qualquer tipo de escrúpulo. Certas idéias são tão fortes que se apossam de nossa mente e não a deixam em paz enquanto não as passarmos adiante. Certas imagens nos impressionam a tal ponto que parecem ter se tornado parte de nós, e quando as reproduzimos é como se as tivéssemos inventado naquele instante. A cultura-de-massas substitui a cultura clássica. E vive da proliferação de memes coletivos, onde o conceito de Autor é substituído pelo de Transmissor.

0465) I see dead people (15.9.2004)

(foto do saite Haunted When It Rains)

Um dos meus filmes de terror favoritos, em tempos recentes, foi Os outros, de Alejandro Amenabar, aquele em que Nicole Kidman mora com os filhos numa mansão sombria lá no fim do mundo, cercada por um misterioso grupo de criados. O leitor há de lembrar uma cena em que Kidman descobre na casa um velho álbum de fotos mostrando pessoas de olhos fechados, estiradas em suas camas. A criada explica que ali naquela região era costume fotografar assim as pessoas mortas, antes de enterrá-las; uma espécie de última recordação.

Este detalhe me impressionou, porque existe aqui no Nordeste uma tradição parecida. Lembro de ter visto, quando era pequeno, várias dessas fotos de defuntos. Vi outras depois, em livros ou em documentários de cinema que reconstituem esses costumes. Algumas fotos mostram o defunto já no caixão, colocado de pé, apoiado à fachada da casa. Desde menino estas fotos me produziam um imenso medo, pelo modo palpável como a morte se tornava presente. Nunca tive muito medo de bobagens como vampiros, frankensteins ou lobisomens; mas ainda hoje a visão de um defunto amortalhado dos pés à cabeça me provoca um certo incômodo emocional.

Este incômodo, no entanto, não é forte o suficiente para me fazer afastar os olhos quando essas coisas surgem na minha frente. (É como aquela frase de Zeca Pagodinho: “O cigarro e a bebida são os maiores inimigos do homem, mas o homem que foge de seus inimigos é um covarde!”) Foi, portanto, com um misto de horror e fascinação que, após clicar um link pouco elucidativo, fui parar no saite “The History Broker”, com reproduções de daguerreótipos do século 19, o qual dedica páginas especiais a fotos de pessoas mortas. (Para quem tiver coragem, o endereço é: (http://www.rev.net/~hmcmanus/post/pm.htm).

É aquilo que Drummond chamava “um álbum de fotografias intoleráveis”. Não as descreverei; não porque sejam repulsivas ou aterrorizantes, mas porque são para ser vistas. São profundamente humanas, e revelam sentimentos que conseguimos reconstituir, por cima desse abismo todo de tempo e de espaço. A fotografia, então em vias de descobrimento, compensava o atraso da Medicina. As pessoas morriam muitas vezes de uma gripe, de uma febre, de uma comida estragada. Crianças, principalmente, tinham uma mortalidade muito alta. A invenção da fotografia parecia atenuar de algum modo a dor da perda.

Por outro lado, sabemos que entre alguns povos primitivos as pessoas não gostam de ser fotografadas, pois acham que a fotografia lhes captura a alma. Esse mesmo pensamento mágico parece estar por trás do costume de fotografar os recém-finados. Não é apenas para “lembrar de como eles eram”, é um pouco para manter sua alma aprisionada ali naquela imagem, evitar que vá embora para sempre. A foto era uma pequena maravilha tecnológica. O álbum era um limbo onde os vivos iam procurar “o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas.”

0464) Nem de menos, nem de mais (14.9.2004)


(livro-objeto de Brian Dettmer)

Duvido que venha um dia a existir um conceito único para definir uma grande obra literária. Os grandes livros são grandes por diferentes razões. Noutro artigo (“Os três tipos de romance”, 24.5.2003) falei que existem romances de idéias, romances de linguagem, e romances de história. São qualidades que às vezes se superpõem, mas mesmo quando isto não acontece, seria injusto negar grandeza a um livro só porque ele não nos satisfaz em uma dessas dimensões. Escrevendo sobre a obra de Flaubert, Michael Dirda avalia os prós e os contras de cada obra do escritor, e acaba concluindo que Um Coração Singelo e Madame Bovary são seus trabalhos mais bem realizados. Deste último, ele elogia “a rapidez e a economia narrativas”, e diz uma frase lapidar: “Se você segurar um exemplar de Madame Bovary e sacudir, não cai nada.”

É o ideal clássico da realização artística: uma obra onde tudo tem função, tudo tem propósito, tudo se justifica. Para mim, obras deste tipo correspondem a uma visão religiosa da realidade. Quando você acredita em Deus, está acreditando num princípio fundamental das coisas, que se relaciona com todas elas. Acreditar na existência de Deus é acreditar na intencionalidade do Universo (estamos aqui com uma finalidade qualquer) e em sua integridade – todas as coisas estão diretamente relacionadas com Deus: cada grão de areia, cada folha de relva.

A esta visão do Universo corresponde a visão idealizada de uma literatura que, no dizer de Jorge Luís Borges, é “um objeto artificial, que não sofre nenhuma parte injustificada”. Note-se que Borges ressalta o caráter artificial de obras assim, porque ele (um agnóstico) vê a Realidade como o contrário disto. A afirmação acima é feita no seu prefácio para La invención de Morel, o romance de ficção científica de Adolfo Bioy Casares. Neste texto (de 1940) Borges critica os chamados romances realistas, ou psicológicos, pelo fato de, tal como a vida real, serem informes, desconjuntados, repletos de elementos gratuitos e sem propósito. Borges, que tinha temperamento classicista, pensa que a literatura poderia eventualmente alçar-se acima deste caos, e realizar o ideal dos grandes clássicos: “Clássico é esse livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos, permitindo interpretações sem fim.”

Que beleza de visão! E que pena. Porque isto, por mais belo que seja, não pode servir como receita universal para a literatura. Basta pensar nas obras que tendem para o Barroco, onde as “partes injustificadas”, as repetições, as frases gratuitas, os episódios desconjuntados, servem ao propósito final da obra. Se sacudirmos um exemplar de Ulisses, do Grande Sertão, do Dom Quixote, páginas e mais páginas irão cair, ou ser levadas pelo vento. O Barroco é excesso, é transbordamento, é um derramamento e uma celebração do intelecto e da energia vital.

0463) A hóstia consagrada (12.9.2004)



Haley Waldman é uma garota de 8 anos que vive no estado de New Jersey, nos EUA. Sua família é católica, e há pouco tempo Haley começou os preparativos para a sua primeira comunhão. Durante o processo, sua mãe avisou a Diocese de Trenton de que a garota iria precisar de uma hóstia especial, que não contivesse trigo, porque sofre de uma doença que não lhe permite absorver sequer a menor quantidade de glúten, contido no trigo. (Chama-se “doença celíaca”, só pode ser tratada com dieta, e o leitor pode achar mais detalhes em: http://www.acelbra.org.br/2004/index.php).

Aí começou o drama. O pessoal da diocese fincou pé: a hóstia tem que ser feita de trigo, não se pode usar uma hóstia de arroz, como a mãe sugeriu. Foi criado um impasse. A mãe recorreu a um padre de uma paróquia vizinha, que concordou em usar a hóstia de arroz, e a comunhão foi realizada. Mas aí o Vaticano recusou-se a validar o sacramento. A mãe ficou mandando cartas aos jornais e às autoridades eclesiásticas. A Igreja manteve-se firme, dizendo que não podia ceder. E a briga continua.

Eu estudei em colégios católicos (as Lurdinas, e o Alfredo Dantas de Professor Loureiro), e até numa universidade católica, mas nunca comunguei até hoje. E me recordo dos terríveis pesadelos e das noites de insônia, quando nos ameaçavam com a comunhão. Digo “ameaçavam” porque para nós a perspectiva de receber Jesus era desse tamanhinho comparada com as catástrofes que podiam acontecer: a hóstia virar sangue, a gente morder a hóstia e ir para o Inferno, e assim por diante. Eu ainda não conhecia a expressão “relação custo-benefício”, mas achei melhor não correr o risco.

Diante desse impasse entre os dogmatismos dietéticos da Medicina e da Igreja, fico pensando que a menina deve estar passando por um purgatório ainda pior do que o meu. Achei de início que a Igreja é quem deveria ceder. A Transubstanciação, pelo que entendo hoje, ocorre como uma conseqüência do ritual, e não acho que Deus, se é tão Onipotente quanto reza a bula, se sinta impedido de receber a alma de uma menina inocente só porque a hóstia é de arroz. Uma das coisas que mais me comoveram em minha educação católica foi quando me disseram que qualquer pessoa, até eu, poderia batizar uma criança doente, tocando-a com o dedo molhado em água comum e proferindo a fórmula do batismo. Isto me pareceu da mesma ordem de grandeza moral do direito jurídico que permite a qualquer cidadão, sem ser formado em Direito, redigir seu próprio pedido de habeas-corpus. Qual o problema, então?

O problema (disse-me um amigo, que é ateu, cínico, realista) é que se liberarem hóstia de arroz (e se liberarem vinho sem álcool para ex-alcoólicos) daqui a pouco tem gente querendo estender esse direito em todas as direções, dispensar a hóstia e o vinho, e comungar usando Cheetos e Coca-Cola. A Igreja não é besta, e sabe muitíssimo bem do que este mundo de hoje é capaz.

0462) O Cinema Subterrâneo (11.9.2004)




O que é um cinéfilo? A resposta mais instintiva é dizer que é um sujeito que aprecia filmes-de-arte. Concordo, mas não é bem isto. Cinéfilo é um sujeito que ama o cinema, o fenômeno cinematográfico em toda sua extensão. 

Se ele é da minha geração pra cima, por exemplo, o amor que tem pelos filmes estende-se à sua lembrança dos cinemas como eram antigamente. 

Os tubos de ferro chumbados ao chão, à frente da janelinha da bilheteria, para ajudar a organizar a fila. 

Os displays de cartazes e fotos, embutidos na parede, protegidos por vidro, iluminados por fluorescentes. 

O som profundo do gongo, anunciando o apagar gradual das luzes e a abertura das cortinas para início da sessão (ritual que hoje, no Rio, se mantém no Cine Odeon-BR). 

O vendedor de balas e chicletes caminhando por entre as filas com sua caixa semicircular pendurada ao pescoço. 

O “pshhh...” coletivo ao aparecer na tela o “urubu” da Condor Films. A lua cheia, redonda, que se transformava no logotipo retangular da PelMex.

O cinéfilo não ama apenas as elucubrações de Bergman ou a grotesqueria de David Lynch: ele ama com fervor fetichista toda a parafernália de objetos, rituais e emoções que cercam o ato de ver um filme. 

Daí, não é de admirar que a polícia parisiense tenha descoberto dias atrás o que a imprensa chamou com bom humor de “o verdadeiro cinema underground”. Num dos incontáveis subterrâneos de Paris, no 16ème “arrondissement”, policiais descobriram uma vasta caverna que aparentemente era usada como sala de exibição de filmes, na área por baixo do Palais de Chaillot (perto da Torre Eiffel).

Os subterrâneos de Paris são vastos. Há um passeio turístico que percorre um trecho bem limitado, onde ficam algumas catacumbas históricas. Alguns saites fornecem visões interessantíssimas sobre este mundo de galerias, esgotos, verdadeiros labirintos de cuja existência a maioria das pessoas nem suspeita. 

Os policiais fizeram a descoberta enquanto patrulhavam um trecho dos mais de 200 km de galerias subterrâneas da capital. Na caverna, dezoito metros abaixo do chão, havia luz elétrica, três linhas telefônicas, circuito fechado de TV, e uma sala de exibição com 400 m2, equipamento completo de projeção, e uma boa quantidade de filmes, que iam de clássicos do “film noir” até títulos recentes. A um canto, uma espécie de bar, com bebidas. 

Ao retornarem três dias depois, com técnicos que iriam descobrir a origem do “gato” elétrico que iluminava o local, descobriram que a luz e os telefones tinham sido cortados, e havia um bilhete no chão: “Não tentem nos encontrar”. 

Nada contra o DVD, o “home theater”, os filmes baixados pela Internet. Mas é tão poético a gente descobrir que na cidade que nos deu Godard e Truffaut existe um grupo de inconformistas que, como os cristãos primitivos, recolhe-se ao fundo das catacumbas para apreciar sua ração diária de fotogramas.






quarta-feira, 23 de julho de 2008

0461) De Odessa a Beslan (10.9.2004)





A imagem de uma mãe carregando nos braços o filho pequeno, morto a tiros, é uma das mais impressionantes da cena do massacre na escadaria de Odessa, em O Encouraçado Potemkin. Quase cem anos depois (o episódio de Odessa ocorreu em 1905; o filme de Eisenstein é de 1925) a imagem se repete na escola de Beslan, invadida dias atrás por rebeldes separatistas chechenos. É bem verdade que o garoto de Odessa foi fuzilado pelos cossacos do Czar, que atiraram contra a multidão para reprimir um protesto pacífico; e que as crianças de Beslan foram mortas por fanáticos que combatiam o governo e o exército (teoricamente, os fanáticos deveriam corresponder aos marinheiros revoltados do Potemkin). Mas... faz diferença? Quando é o filho da gente que morre com um tiro, faz diferença se a bala veio do Governo ou da Oposição?

O que se passa na cabeça de sujeitos que dizem amar a Deus e explodem aviões cheios de civis inocentes, sujeitos que dizem lutar pela liberdade e massacram minorias étnicas, sujeitos que dizem defender a democracia e bombardeiam sem dó nem piedade cidades inteiras? Tem alguma coisa errada. Eu ainda acho que quem descreveu de maneira mais lúcida o que acontece com esse pessoal foi justamente Karl Marx, que deve dar umas trinta voltas no túmulo todo dia, devido às impropriedades que se cometem em seu nome.

Marx criticava no capitalismo industrial a alienação, o estranhamento, o distanciamento total entre o operário e aquilo que ele produz. Um operário numa linha de montagem se concentra no que está fazendo, e perde de vista o sentido humano daquele trabalho. Lembro de uma historieta que li num manual político anos atrás, sobre um sujeito que trabalhava numa indústria, onde sua função principal era produzir pequenas roldanas de metal, muito fininhas. Ele trabalhou ali durante anos sem saber para que serviam. Um dia, em casa, seu barbeador elétrico pifou, e ele o abriu, para ver se conseguia consertá-lo. E descobriu dentro do barbeador justamente aquelas roldanas que ele fabricava!

Trabalho alienado é todo aquele do qual perdemos o espírito e nos limitamos a seguir instruções ao pé da letra, sem entender, sem perguntar. É todo aquele em que a divisão do trabalho se sofistica a tal ponto que nenhum dos envolvidos tem a visão geral do que está acontecendo: aquilo vira um processo mecânico que se auto-executa às cegas, sem ninguém para corrigir-lhe os rumos quando ele se desvia do objetivo inicial. É muito irônico que hoje o mais grave exemplo de trabalho alienado seja a Guerra Revolucionária – cujas sementes Marx plantou. A Alienação nos revolucionários é o resultado de muitos fatores combinados, entre eles: hierarquização rígida, lavagem cerebral, incapacidade para o diálogo político, facilidade de aquisição de armas, militarização... Os separatistas pensam que estão fazendo uma Revolução. E estão apenas repetindo a escadaria de Odessa.

0460) Burocracia (9.9.2004)



A vida da gente é cheia de enfurecimentos periódicos; é algo como as secas do Nordeste ou as inundações da Índia. De tempos em tempos, lá vem de novo aquele flagelo, tão familiar, estragar nosso humor e nosso dia de trabalho. Um dos que me perseguem com mais insistência é a burocracia. A toda hora estou me deparando com algum bloqueio mental humano relacionado a documentos. Vou dar um exemplo. Ligou para mim um moça de uma gravadora de São Paulo, dizendo que precisava da autorização para uma música minha ser gravada. Anotei os dados (a música, o artista, o disco, a gravadora, o endereço) e mandei a autorização. Dias depois ela volta a ligar: “O senhor esqueceu de reconhecer a firma da autorização.” Expliquei que não tinha esquecido, tinha achado desnecessário. Mas ela fez finca-pé. É necessário, sim, tem que reconhecer, senão como nós vamos provar que a assinatura é sua?

Expliquei que o cartório onde tenho firma reconhecida fica no centro do Rio, e “reconhecer uma firma” para mim significa pegar um ônibus, pegar o metrô, andar dois quarteirões, esperar na fila, fazer o reconhecimento, caminhar dois quarteirões, pegar o metrô, pegar o ônibus. Não dá menos de duas horas. Se eu estivesse sem nada urgente, até faria. Mas naqueles dias eu estava “por aqui” de trabalho atrasado, e não dispunha de duas horas para fazer uma coisa que aos meus olhos era desnecessária. Mas eu ia dar um jeito.

O jeito que eu arranjei foi o seguinte. Eu tenho (virginiano que sou) uma porção de cópias de uma folha onde mandei xerocar frente-e-verso, e autenticar, minha carteira de identidade e meu CPF. Nessa folha estão, portanto, meus principais documentos, onde minha assinatura é claramente legível. Peguei uma dessas cópias, e escrevi a mão, embaixo: “Autorizo a gravação da música tal, pela gravadora tal...” Assinei, e mandei. Dias depois me liga a moça de novo. “O senhor desculpe, mas não é esse documento que nós precisamos. Precisamos é da autorização com firma reconhecida, e a firma não foi reconhecida.”

Para encurtar a novela: eu me recusei a reconhecer a firma, e disse que por mim a música não seria gravada. Pois sabem o que a moça fez? Ela pegou duas fichas de um cartório de São Paulo, mandou para mim pelo Correio, eu assinei as fichas, devolvi pelo Correio, e ela mandou reconhecer nesse tal Cartório a primeira autorização que eu tinha enviado. E essa desespero todo por quê? Era a escritura de uma mansão em Paris, de um prédio na Quinta Avenida? Era o recibo de uma herança de 100 milhões de dólares? Era um desses documentos que, fazem a independência financeira de um falsificador? Não. Era eu autorizando um artista (que é amigo meu) a gravar uma música minha. Olhe... eu não simpatizo com as pessoas que pirateiam discos, que sonegam direitos autorais. Mas é por estas e outras que as gravadoras, como os dinossauros, estão afundadas num pântano, de onde só sairão para os Museus do futuro.

0459) A eternidade dos pássaros (8.9.2004)




(o manuscrito do poema de Keats)

Um dos meus contos preferidos sobre Realidade Virtual (mundos criados em computador) é “In the Upper Room” de Terry Bisson (Playboy, abril 1996), cujo texto completo pode ser obtido em: http://www.freesfonline.de/authors/bisson.html

É a história de um cara que se perde no interior de um catálogo virtual da Victoria´s Secret, a famosa loja de lingerie. Nesse catálogo virtual, o cliente, em vez de folhear uma revista com fotos das mulheres usando aqueles trajes provocantes, “entra” numa mansão e percorre quartos onde encontra simulações de belas modelos trajando coisas mais provocantes ainda. 

Um crítico chamou a atenção para um detalhe que revela o caráter serial, repetitivo, mecânico daquele mundo. Diz o narrador: “I stood beside her at the window watching the robins arrive and depart on the grass. It was the same robin over and over.” (“Fiquei ao lado dela, observando os tordos chegarem e partirem do gramado. Era o mesmo tordo, que ia e voltava, ia e voltava.”) 

Esse passarinho, sempre o mesmo, revela a natureza artificial daquela paisagem; e o escritor destaca isto com sutileza, com o uso de verbos ( “arrive”, “depart”) que usamos normalmente para aviões, não para aves.

Que frio na espinha, que calafrio na alma não sentiríamos se percebêssemos, em nosso mundo real, que certos elementos se repetem em “loop” interminável, como os figurantes de filmes como Cidade das Trevas ou O 13o. andar

As pessoas acostumadas a jogar jogos em CD-Rom (de The Sims a Zoo Tycoon ou a Great Theft Auto) estão acostumadas à presença desses figurantes cibernéticos: pessoas, carros ou animais que estão sempre passando ao fundo, sempre os mesmos, cumprindo as mesmas ações e os mesmos gestos, para nos dar a ilusão de Vida Real.

O que não deixa de me trazer à memória a famosa “Ode to a Nightingale” de John Keats (1819), em que o grande poeta romântico sente-se desprendido da realidade terrena ao escutar o canto de um rouxinol, cuja beleza o liberta por alguns instantes das tristezas da vida e da fragilidade do corpo (Keats morreria de tuberculose dois anos depois, aos 26 anos). 

Ele se sente transportado para um plano fora do espaço e do tempo ao escutar aquela canção que, sem dúvida, é a mesma que os rouxinóis cantam desde que o mundo é mundo. Keats percebeu (embora não nos termos que aqui coloco) que um pássaro não passa de um corpo físico descartável que executa um software musical repetitivo, sempre o mesmo, e que nunca se extingue: “Thou wast not born for death, immortal bird!” 

O pássaro não morre, porque é um figurante virtual em nosso mundo; cada rouxinol de hoje é o mesmo que cantou na Antiguidade remota. O poeta percebeu que era o mesmo rouxinol que ia e voltava, cantando para indivíduos únicos, efêmeros, mortais, conscientes da existência do Tempo, e de que só deixariam na Terra a sua canção. 

O rouxinol de Keats continua cantando, mas me consola pensar que Keats também.









0458) Skull and Bones: a máfia de Bush (7.9.2004)


(a "tumba" que serve de sede à S&B em Yale)

Eu me interesso muito pelas “Teorias da Conspiração”, essas hipóteses mirabolantes segundo as quais o mundo é governado por irmandades ocultas, grupos de indivíduos poderosíssimos e mal-intencionados, que (segundo alguns) foram capazes de afundar o Titanic somente para que um cofre com documentos comprometedores, que vinha no porão de carga, não chegasse às mãos da Justiça dos EUA. Meses atrás vi na TV-a-cabo um documentário sobre uma dessas sociedades secretas: a “Skull and Bones”, que recruta estudantes da Universidade de Yale.

A “Skull and Bones” tem interesse neste momento pelo fato de ter entre seus membros o nosso ilustre George W. Bush, presidente dos EUA, candidato à reeleição. Fiquei surpreso ao ver que Michael Moore, em seu filme Fahrenheit 9/11, não menciona este grupo, que parece ter uma verdadeira rede de membros espalhados em postos-chave dos EUA: no Governo, no mercado financeiro, nos serviços de inteligência como a CIA. Há um livro a respeito, Secrets of the Tomb: Skull and Bones, the Ivy League, and the Hidden Paths of Power, de Alexandra Robbins, que tem um saite em: http://www.secretsofthetomb.com/. E quem quiser informações ainda mais detalhadas pode ir ao saite: http://www.parascope.com/articles/0997/skullbones.htm.

Sociedades secretas costumam forjar vínculos emocionais muito fortes entre seus participantes, através de rituais de iniciação, que são testes de coragem, de capacidade e de caráter a que o neófito é submetido para ser considerado digno de pertencer ao grupo. Existem rituais periódicos de reafirmação e fortalecimento dessa união. Esses indivíduos, que têm origem social e formação ideológica semelhante, adquirem um vínculo implícito de lealdade. A “S&B”, fundada em 1832, tem entre seus membros indivíduos de algumas das famílias mais influentes nos EUA: Whitney, Harriman, Russell, Taft, Stimson, Lovett, Bush.

Não acho que esses sujeitos sejam satanistas, ou neo-nazistas, ou que tenham sofrido lavagem cerebral por parte de espiões alienígenas. Não é nada disso. Sociedades assim captam jovens brilhantes, ambiciosos, de famílias ricas, e criam entre eles uma cumplicidade que lhes será muito útil daí a algumas décadas, quando estiverem todos nos postos mais altos do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, das Forças Armadas, do mercado de capitais, da diplomacia, da indústria. Uma sociedade assim, na verdade, não manipula seus membros: é, sim, manipulada por eles. São eles que se servem dela, da lealdade tácita que ela gera entre seus participantes, para facilitar o jogo do poder, o tráfico de influências, a troca de favores, a concessão de pistolões, os acordos de interesses. Todos se conhecem (a “S&B” não tem mais do que 600 membros vivos), mesmo que não pessoalmente; e sabem com quem estão lidando. E, aliás, não adianta alguém ir se queixar ao Senador John Kerry. Ele também estudou em Yale, e também é membro da “Skull and Bones”.