quarta-feira, 23 de julho de 2008

0460) Burocracia (9.9.2004)



A vida da gente é cheia de enfurecimentos periódicos; é algo como as secas do Nordeste ou as inundações da Índia. De tempos em tempos, lá vem de novo aquele flagelo, tão familiar, estragar nosso humor e nosso dia de trabalho. Um dos que me perseguem com mais insistência é a burocracia. A toda hora estou me deparando com algum bloqueio mental humano relacionado a documentos. Vou dar um exemplo. Ligou para mim um moça de uma gravadora de São Paulo, dizendo que precisava da autorização para uma música minha ser gravada. Anotei os dados (a música, o artista, o disco, a gravadora, o endereço) e mandei a autorização. Dias depois ela volta a ligar: “O senhor esqueceu de reconhecer a firma da autorização.” Expliquei que não tinha esquecido, tinha achado desnecessário. Mas ela fez finca-pé. É necessário, sim, tem que reconhecer, senão como nós vamos provar que a assinatura é sua?

Expliquei que o cartório onde tenho firma reconhecida fica no centro do Rio, e “reconhecer uma firma” para mim significa pegar um ônibus, pegar o metrô, andar dois quarteirões, esperar na fila, fazer o reconhecimento, caminhar dois quarteirões, pegar o metrô, pegar o ônibus. Não dá menos de duas horas. Se eu estivesse sem nada urgente, até faria. Mas naqueles dias eu estava “por aqui” de trabalho atrasado, e não dispunha de duas horas para fazer uma coisa que aos meus olhos era desnecessária. Mas eu ia dar um jeito.

O jeito que eu arranjei foi o seguinte. Eu tenho (virginiano que sou) uma porção de cópias de uma folha onde mandei xerocar frente-e-verso, e autenticar, minha carteira de identidade e meu CPF. Nessa folha estão, portanto, meus principais documentos, onde minha assinatura é claramente legível. Peguei uma dessas cópias, e escrevi a mão, embaixo: “Autorizo a gravação da música tal, pela gravadora tal...” Assinei, e mandei. Dias depois me liga a moça de novo. “O senhor desculpe, mas não é esse documento que nós precisamos. Precisamos é da autorização com firma reconhecida, e a firma não foi reconhecida.”

Para encurtar a novela: eu me recusei a reconhecer a firma, e disse que por mim a música não seria gravada. Pois sabem o que a moça fez? Ela pegou duas fichas de um cartório de São Paulo, mandou para mim pelo Correio, eu assinei as fichas, devolvi pelo Correio, e ela mandou reconhecer nesse tal Cartório a primeira autorização que eu tinha enviado. E essa desespero todo por quê? Era a escritura de uma mansão em Paris, de um prédio na Quinta Avenida? Era o recibo de uma herança de 100 milhões de dólares? Era um desses documentos que, fazem a independência financeira de um falsificador? Não. Era eu autorizando um artista (que é amigo meu) a gravar uma música minha. Olhe... eu não simpatizo com as pessoas que pirateiam discos, que sonegam direitos autorais. Mas é por estas e outras que as gravadoras, como os dinossauros, estão afundadas num pântano, de onde só sairão para os Museus do futuro.

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