Quando falamos em forma e conteúdo, isso nos evoca imagens visuais: a forma é algo que está fora, está ao redor, e o conteúdo é algo que está contido, abrigado, reunido dentro dessa forma.
A imagem mais frequente (já perguntei isso muitas vezes) é a de um copo dágua. O copo é a forma, a água é o conteúdo. Algumas pessoas explicam: “E o conteúdo toma a forma do vaso que o contém.”
Para mim parece fazer algum sentido. É como dizer que num filme a forma são as imagens, e o conteúdo são os diálogos (também já ouvi esta explicação). Parece fazer sentido, sim.
Em todo caso, leituras antigas e conversas antigas já me sugeriram uma abordagem diferente, que por enquanto tem dado para o meu gasto.
O que chamamos de “conteúdo”, muitas vezes, eu prefiro chamar de o “tema” ou o “assunto” do livro/filme/quadro etc. Ou, de forma mais abrangente, o conjunto de idéias, histórias, situações etc. abordadas nessa obra.
Qual o conteúdo de Dom Casmurro, de Machado de Assis? Muita gente dirá que é o ciúme doentio de um homem inseguro da própria masculinidade, casado com uma mulher que além de ser bonita é bem mais esperta do que ele.
Qual o conteúdo do filme 2001, Uma Odisséia no Espaço? Muita gente dirá que é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje, conquistador do Sistema Solar, e o homem do futuro.
Qual o conteúdo de Ainda Estou Aqui, filme brasileiro recente, dirigido por Walter Salles? Muita gente dirá que é o modo como a repressão da ditadura militar destruiu famílias que mesmo assim se mantiveram firmes após as perdas que sofreram.
E assim por diante. Eu prefiro considerar, porém, nesses casos, que isto não é propriamente o “conteúdo” de cada filme, e sim o tema. São duas coisas que se misturam bastante em nosso juízo. O que as separa e as distingue? Provavelmente é a “forma”.
(o Tema, filtrado pela Forma, produz o Conteúdo)
Minha proposta de interpretação é:
O “tema” é um conjunto de idéias que orientaram a criação da obra, filtradas pela “forma” – na verdade, criadas pela forma, que é a obra em si (o texto, o filme, etc.,). Essas idéias, ao serem assimiladas pelo leitor/espectador, produzem uma terceira coisa que seria o “conteúdo”.
Por isso, existe uma dificuldade em separar a forma e o conteúdo, porque este é determinado por aquela, nessa obra específica. Se a forma não fosse aquela, fosse outra, o tema poderia ser o mesmo (ciúme, evolucionismo, repressão) mas o conteúdo seria necessariamente outro.
Acho que fica mais claro quando comparamos obras parecidas. A Última Ceia que aconteceu entre Jesus Cristo e seus apóstolos, por exemplo. É um tema muito familiar na cultura ocidental, deve haver dezenas de milhares de pinturas reproduzindo esta cena, esta ceia.
Aqui vão quatro delas.
Leonardo da Vinci:
Ugolino da Siena:
Salvador Dalí:
Eu não acho
que estas quatro pinturas tenham o mesmo conteúdo. Que produzam a mesma
resposta estética – em mim, ou em qualquer pessoa. O que cada uma delas nos diz
é muito diferente. As associações de idéias e até mesmo a resposta emotiva,
afetiva, provocada por cada uma é muito diferente.
O tema das quatro pinturas é o mesmo: é a ceia de Jesus com seus apóstolos. O tema é sempre exterior à obra: ele desencadeia a criação da obra, está presente em cada momento de sua criação, mas é exterior a ela.
Essas quatro pinturas têm conteúdos diferentes porque a forma, ou seja, aquilo que somos capazes de enxergar no quadro, é diferente em cada caso.
O conteúdo, como eu o percebo e o sinto quando leio, vejo filmes, olho quadros, etc., é uma espécie de corrente eletromagnética (perdoem a metáfora tosca) que vibra entre a obra e a minha mente.
Como dizia a imortal definição do mestre Damon Knight: “Um conto não são aquelas páginas impressas, é o que acontece em sua mente quando você lê o que está escrito nelas.”
E que já adaptei assim:
Vendo as coisas dessa maneira, fica difícil a gente separar o conteúdo da forma. Seria, como numa comparação famosa (não lembro agora quem disse isso) tentar ver a dança sem o dançarino. A dança não existe sem aquele dançarino; o conteúdo não existe sem aquela forma.
Livros com o mesmo tema, escritos por diferentes escritores, acabam tendo necessariamente conteúdos muito distintos. Basta comparar, num exemplo mais que conhecido, Os Sertões de Euclides da Cunha e A Guerra do Fim do Mundo de Mario Vargas Llosa.
Este meu ponto de vista não é uma teoria: é uma coisa para uso próprio, mas que pode ser útil para alguém mais. É uma espécie de guia-mapa que me ajuda a navegar por entre livros, filmes, canções e tudo o mais.
Faço um certo esforço, toda vez, para me livrar da noção persistente de que toda obra de arte tem um conteúdo que é algo pronto e previamente definido, guardado dentro da obra. E que a forma se encarregar de transmitir, revelar, entregar esse conteúdo ao leitor (etc.).
Essa noção dá origem àqueles questionários com que a gente começa a se acostumar desde a infância, a adolescência, os trabalhos escolares: “Qual é a mensagem do filme?... O que foi que o autor quis dizer com este poema?...” Perguntas que deixam implícita a existência de uma resposta certa, uma resposta já pronta, e cabe ao aluno deduzir ou adivinhar qual é.
Como se o conteúdo, até por essa conotação material da própria palavra, fosse algo embrulhado e encaixotado para ser entregue ao consumidor. E cada comprador receberia uma caixa igual.
Vejo o conteúdo (se temos mesmo que usar esta palavra) como um resultado, ligeiramente diferente em cada leitor, e até mesmo em cada leitura do mesmo leitor. O resultado, numa primeira etapa, de tudo que a forma fez com o tema ou conjunto de temas utilizados; e, numa segunda etapa, de como aquele primeiro resultado foi percebido e interpretado pelo leitor.
Claro que diferentes críticos darão diferentes pesos seja às intenções do autor seja às interpretações dos públicos variados. Todo autor é cheio de intenções! O importante é reconhecer que não há um conteúdo já-pronto, à espera de ser decodificado: há um conjunto de estímulos variados (verbais, visuais, etc.) que sofrerá inúmeras decodificações diferentes e produzirá, em cada pessoa, um conteúdo diferente.
Sempre dentro (o bom senso nos indica) das possibilidades colocadas pelo livro ou filme, pela forma daquela obra.
Ninguém poderá dizer que o conteúdo de Dom Casmurro é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje e o homem do futuro.
Muitos críticos, por exemplo, veem no livro A Náusea de Jean-Paul Sartre um romance pessimista, sombrio, que afirma a falta de sentido da existência humana.
Eu vejo nele outro
conteúdo: uma afirmação otimista da falta de sentido, a priori, do Universo e da humanidade, e em consequência disto a
nossa enorme e vertiginosa liberdade de inventar o sentido que quisermos para
tudo isto.
Quem produz o conteúdo do Universo somos nós, e nossa única limitação é termos que usar o que o Universo nos oferece, ou seja, a forma do Universo. O qual, como dizia Sir James Jeans, “não se parece com um mecanismo, e sim com um pensamento”.
Quem produz o conteúdo do Universo somos nós, e nossa única limitação é termos que usar o que o Universo nos oferece, ou seja, a forma do Universo. O qual, como dizia Sir James Jeans, “não se parece com um mecanismo, e sim com um pensamento”.
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