É uma discussão que ferve por aí desde o tempo de Adão e
Eva: por que motivo nos sentimos incomodados quando um artista que admiramos
passa a ser admirado / consumido / incensado por gente “que não tem nada a
ver”?
(Primeira digressão: escrevi “desde o tempo de Adão e Eva”
mas tecnicamente eu deveria jogar essa referência para o momento da primeira
obra de arte registrada no Livro do Gênesis,
coisa que não consigo situar... Qual seria?)
Há distorções que são óbvias e chegam a ser caricaturais.
Lembro muito bem da cara de dignidade ofendida de um amigo meu, comunista, setentão,
nordestino, me mostrando no smartphone uma passeata de bolsonaristas cantando
“Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores” de Geraldo Vandré, a Marselhesa
esquerdista de nossa mocidade.
Um incômodo mais sutil é o que acomete o pequeno fã-clube
de algum artista de real talento que durante alguns anos só se vê reconhecido
por esse núcleo fiel. Eles compram e divulgam seus livros, ou comparecem aos
seus shows, peças, filmes. Vão aos poucos se solidificando num grupo onde todos
são devotos e especialistas. Trocam informações entre si, reúnem-se para
conversar sobre o artista, estão confortavelmente instalados numa comunidade
que os aproxima e aconchega.
(Os Ramones no metrô, foto de Bob Gruen)
E então alguma combinação de circunstâncias faz com que o
“seu” artista seja revelado a esse ogro de mil cabeças, estúpido, insaciável,
chamado O Grande Público. O escritor que vendia 20 mil livros passa a vender
700 mil. A banda de garagem que tocava em pequenos clubes agora está nos
Lollapalooza e outros festivais, com turnê marcada na Europa. Ou seja, venderam
a alma – não ao Diabo, com quem até Robert Johnson se entendia; mas ao
Capitalismo, que é muito pior, porque existe.
E de uma hora para outra os conhecedores-a-fundo e
apoiadores-sinceros daquele Artista se veem atropelados por uma multidão de
neófitos que ouviram cantar o galo mas não sabem onde, o que não os impede de
ter opiniões exageradas e ruidosas sobre a afinação do galo e o giro da
rosa-dos-ventos. E não adianta alguém dizer: “Eu acompanho esse artista há dez
anos.” A resposta vai ser: “E daí?”.
Penso nisso de vez em quando quando os meus Artistas
obscuros são descobertos pela imprensa cultural ou, pior ainda, pela televisão.
Ou, ainda pior, por influênceres que se baseiam em seus seis meses de
experiência para emitir julgamentos definitivos sobre algum assunto em que eu
queimo as pestanas desde quando tinha apenas o dobro da idade deles.
A relação artística pode ser reduzida, de início, a um
triângulo: Autor / Obra / Leitor (vou chamar só “leitor”, para
simplificar). Nunca é um triângulo
equilátero, há sempre alguma dupla de pontos mais próxima, mas não importa: a
área delimitada por estes três é o início de toda apreciação estética.
Quando um quarto ponto se mete... essa área ganha outro
tamanho, outra direção, outro significado. E aquele território que eu imaginava
estar sob meu controle de repente não está mais. O playground aumentou de tamanho mas está cheio de gente esquisita
que eu não conheço. (“Eu”, no caso, não tem que ser necessariamente a minha
pessoa; é o grupo-de-consenso do qual eu faço parte.)
(Bob Dtlan no estúdio, foto de Daniel Kramer)
Quando Bob Dylan se afastou da canção de protesto,
aderindo à guitarra elétrica e ao rock, mais do que a repulsa ao estilo pop o que se viu foi a fúria dos que
achavam que tinham um artista sob sua jurisdição: “Você vai fazer o que nós
gostamos; você é nosso.” E Dylan (camaleônico, escorregadio, elusivo) não
estava interessado nisso.
Um artista tem sucesso sólido e permanente quando sabe (e
consegue) conciliar a convivência entre o “núcleo duro” de seus fãs primeiros e
fiéis, e essa vasta periferia dos que chegaram muito depois mas são muitíssimos
mais.
A psicologia do fã-raiz tende a ser ditatorial, se lhe
derem muita corda. Não é apenas o fã bobinho das bandas pop. Os fãs
intelectuais podem ser igualmente emocionais e possessivos. Quando Umberto Eco
estourou vendendo milhões de cópias de O
Nome da Rosa surgiram (na Europa, principalmente) protestos furibundos de
semiólogos que se julgavam traídos porque seu ídolo estava agora “escrevendo
romances comerciais para ficar rico”.
(Kathy Bates, em Misery de Rob Reiner)
Claro que nada se compara ao fã-medusa, aquele que tenta
petrificar o Artista amado. Sua encarnação mais górgona é Annie Wilkes, a
personagem interpretada por Kathy Bates no filme Misery (Rob Reiner, 1990), baseado no livro de Stephen King. Ela
não apenas sente-se dona do Artista: sente-se patroa. Sente-se capacitada a
dizer-lhe o que deve escrever, e de que modo. É o caso extremo em que o rival
não são os outros fãs, mas o próprio Artista, quando teima em ser ele mesmo e
fazer somente o que quer.
Um caso igualmente extremo, mas mais sutil do que o da
história de Stephen King, é o do conto “Queremos Tanto a Glenda”, de Julio
Cortázar, na coletânea do mesmo nome (creio que no Brasil saiu como Orientação dos Gatos, Nova Fronteira, 1981).
Nele, Cortázar põe em cena uma nova versão,
silenciosamente maligna, do Clube da Serpente, o círculo de intelectuais
expatriados que, em O Jogo da Amarelinha (1960)
devora e discute exaustivamente a obra teórica de um tal Morelli, sem saber que
se trata de um velhinho obscuro que mora não muito longe deles.
Neste conto, porém, trata-se de um grupo de admiradores
da atriz de cinema Glenda Garson (uma homenagem explícita a Glenda Jackson). O
grupo surge espontaneamente, porque começam a avistar-se uns aos outros no
cinema antes e após as sessões, reconhecer-se, cumprimentar-se, sair depois do
filme para um café ou um trago. E assim forma-se “a aliança, aquilo que depois todos chamamos de o núcleo e os mais
jovens o clube” (trad. BT).
(Nova digressão: O inesgotável Kurt Vonnegut propôs em seu
romance Cat’s Cradle (1963) os
conceitos de wampeter e de karass. Um wampeter é um ser que se torna o foco de atenção e devoção fanática
de um grupo de pessoas, o karass. Essas
pessoas giram em órbita ao redor dele (órbitas espirituais, claro). Exemplos de
wampeter podem ser uma idéia, um
livro, o Santo Graal...)
Pois bem, no conto de Cortázar, o karass que se reúne em torno da imagem de Glenda Garson percorre
todos os caminhos previsíveis dos fãs com um objetivo em comum: os encontros
casuais, depois os encontros combinados, as visitas recíprocas, as infindáveis
discussões sobre os incontáveis detalhes... Até que as discussões chegam a um
ponto crucial.
Somente pouco a pouco, a princípio com um sentimento de culpa, alguns
se atreveram a deslizar críticas parciais, o desconcerto ou a decepção frente a
uma sequência menos feliz, as quedas no convencional ou no previsível. (...)
Começávamos a sentir que nosso carinho por Glenda ia mais além do mero
território artístico e que somente ela se salvava do que imperfeitamente faziam
os demais. (...) De repente os erros, as carências, nos pareceram
insuportáveis; não podíamos aceitar que Nunca Se Sabe Por Quê terminasse
assim, ou que O Fogo da Neve incluísse a infame sequência do jogo de
pôquer (na qual Glenda não atuava, mas que de alguma maneira a maculava como um
vômito, esse gesto de Nancy Philips e a chegada inadmissível do filho
arrependido).
Esses cinéfilos radicais dedicam-se, então a aperfeiçoar
as obras em que sua musa atuou, para que em torno dela não existisse nada que
não fosse a perfeição. São pessoas de recursos, isso não se discute. Um deles “havia sido sócio de Howard Hughes no
negócio das minas de estanho em Pichincha”, de modo que dinheiro, jatinhos
e tecnologia não são problema. Outro dispõe de “um computador” (o conto é de 1980).
E eles põem mãos à obra. Localizam todas as cópias (numa
época em que o cinema era 100% em celulóide) dos filmes de Glenda, extraem as
cenas que lhes desagradam, refilmam (provavelmente com dublês) outras cenas de
acordo com seus critérios... Ninguém (quase ninguém) percebe o deep fake que está sendo elaborado.
A memória brinca com seus depositários e os faz aceitar suas próprias
permutações e variantes, talvez a própria Glenda não tivesse percebido a
mudança, e sim, porque isto todos nós percebemos, a maravilha de uma perfeita
coincidência com uma recordação lavada de escórias, exatamente idêntica ao
desejo.
Glenda se aposenta das telas, o que parece coroar o
esforço do fã-clube: sua obra agora está redonda, esférica, perfeita. Mas um
dia a atriz resolve voltar a filmar, e isto é uma ameaça. A obra atingiu a
perfeição: fazer um filme novo, agora, seria submeter-se aos erros, às influências
da mediocridade alheia. O que fazer, então? E o narrador conclui:
Quando Diana pousou a mão no braço de Irazusta e disse: “Sim, é a única
coisa que nos resta a fazer”, falava por todos sem necessidade de nos
consultar. (...) Saímos separados, cada um conduzindo seu desejo de esquecer
até que estivesse tudo consumado, e sabendo que não seria assim, que ainda nos
restaria abrir o jornal em certa manhã e ler a notícia, as estúpidas frases de
consternação profissional.
Ninguém é mais cruel do que um fã, ninguém é tão capaz de
destruir a carne-e-osso do ser amado para manter intacta a imagem idealizada
que tem dele.
H. G. Wells tem uma crudelíssima parábola, “A Pérola do
Amor” (1925; incluído na coletânea “O País dos Cegos e Outras Histórias”,
Alfaguara, 2014, trad. BT) em que um príncipe indiano perde a jovem e linda
esposa, por quem era apaixonadíssimo. Decidido a manter viva sua lembrança, ele
gasta seus tesouros na construção de um palácio perfeito, chamado A Pérola do
Amor. O corpo da princesa, num sarcófago de alabastro, é colocado bem no centro,
e em volta dele começam a ser erigidas paredes, colunas, ornamentos arquitetônicos,
com os materiais mais raros.
Mas o príncipe não fica satisfeito. Embora todos digam
que se trata do mais belo palácio já construído, ele todo dia acha um defeito
aqui, outro acolá. O palácio está quase
perfeito e ele não tem sossego. Um dia, ele pára por um longo tempo, olhando
aquela maravilha, e por fim estende o braço e aponta com o dedo o sarcófago
onde repousa a princesa, dizendo apenas: “Tirem
essa coisa daí”.
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