sexta-feira, 27 de junho de 2025

5187) Esse artista é meu (27.6.2025)




 
É uma discussão que ferve por aí desde o tempo de Adão e Eva: por que motivo nos sentimos incomodados quando um artista que admiramos passa a ser admirado / consumido / incensado por gente “que não tem nada a ver”? 
 
(Primeira digressão: escrevi “desde o tempo de Adão e Eva” mas tecnicamente eu deveria jogar essa referência para o momento da primeira obra de arte registrada no Livro do Gênesis, coisa que não consigo situar... Qual seria?) 
 
Há distorções que são óbvias e chegam a ser caricaturais. Lembro muito bem da cara de dignidade ofendida de um amigo meu, comunista, setentão, nordestino, me mostrando no smartphone uma passeata de bolsonaristas cantando “Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores” de Geraldo Vandré, a Marselhesa esquerdista de nossa mocidade. 
 
Um incômodo mais sutil é o que acomete o pequeno fã-clube de algum artista de real talento que durante alguns anos só se vê reconhecido por esse núcleo fiel. Eles compram e divulgam seus livros, ou comparecem aos seus shows, peças, filmes. Vão aos poucos se solidificando num grupo onde todos são devotos e especialistas. Trocam informações entre si, reúnem-se para conversar sobre o artista, estão confortavelmente instalados numa comunidade que os aproxima e aconchega. 



(Os Ramones no metrô, foto de Bob Gruen)

 
E então alguma combinação de circunstâncias faz com que o “seu” artista seja revelado a esse ogro de mil cabeças, estúpido, insaciável, chamado O Grande Público. O escritor que vendia 20 mil livros passa a vender 700 mil. A banda de garagem que tocava em pequenos clubes agora está nos Lollapalooza e outros festivais, com turnê marcada na Europa. Ou seja, venderam a alma – não ao Diabo, com quem até Robert Johnson se entendia; mas ao Capitalismo, que é muito pior, porque existe. 
 
E de uma hora para outra os conhecedores-a-fundo e apoiadores-sinceros daquele Artista se veem atropelados por uma multidão de neófitos que ouviram cantar o galo mas não sabem onde, o que não os impede de ter opiniões exageradas e ruidosas sobre a afinação do galo e o giro da rosa-dos-ventos. E não adianta alguém dizer: “Eu acompanho esse artista há dez anos.” A resposta vai ser: “E daí?”.  
 
Penso nisso de vez em quando quando os meus Artistas obscuros são descobertos pela imprensa cultural ou, pior ainda, pela televisão. Ou, ainda pior, por influênceres que se baseiam em seus seis meses de experiência para emitir julgamentos definitivos sobre algum assunto em que eu queimo as pestanas desde quando tinha apenas o dobro da idade deles. 
 
A relação artística pode ser reduzida, de início, a um triângulo: Autor / Obra / Leitor (vou chamar só “leitor”, para simplificar).  Nunca é um triângulo equilátero, há sempre alguma dupla de pontos mais próxima, mas não importa: a área delimitada por estes três é o início de toda apreciação estética. 
 
Quando um quarto ponto se mete... essa área ganha outro tamanho, outra direção, outro significado. E aquele território que eu imaginava estar sob meu controle de repente não está mais. O playground aumentou de tamanho mas está cheio de gente esquisita que eu não conheço. (“Eu”, no caso, não tem que ser necessariamente a minha pessoa; é o grupo-de-consenso do qual eu faço parte.) 



(Bob Dtlan no estúdio, foto de Daniel Kramer)

 
Quando Bob Dylan se afastou da canção de protesto, aderindo à guitarra elétrica e ao rock, mais do que a repulsa ao estilo pop o que se viu foi a fúria dos que achavam que tinham um artista sob sua jurisdição: “Você vai fazer o que nós gostamos; você é nosso.” E Dylan (camaleônico, escorregadio, elusivo) não estava interessado nisso. 
 
Um artista tem sucesso sólido e permanente quando sabe (e consegue) conciliar a convivência entre o “núcleo duro” de seus fãs primeiros e fiéis, e essa vasta periferia dos que chegaram muito depois mas são muitíssimos mais. 
 
A psicologia do fã-raiz tende a ser ditatorial, se lhe derem muita corda. Não é apenas o fã bobinho das bandas pop. Os fãs intelectuais podem ser igualmente emocionais e possessivos. Quando Umberto Eco estourou vendendo milhões de cópias de O Nome da Rosa surgiram (na Europa, principalmente) protestos furibundos de semiólogos que se julgavam traídos porque seu ídolo estava agora “escrevendo romances comerciais para ficar rico”. 



(Kathy Bates, em Misery de Rob Reiner) 

 
Claro que nada se compara ao fã-medusa, aquele que tenta petrificar o Artista amado. Sua encarnação mais górgona é Annie Wilkes, a personagem interpretada por Kathy Bates no filme Misery (Rob Reiner, 1990), baseado no livro de Stephen King. Ela não apenas sente-se dona do Artista: sente-se patroa. Sente-se capacitada a dizer-lhe o que deve escrever, e de que modo. É o caso extremo em que o rival não são os outros fãs, mas o próprio Artista, quando teima em ser ele mesmo e fazer somente o que quer. 




Um caso igualmente extremo, mas mais sutil do que o da história de Stephen King, é o do conto “Queremos Tanto a Glenda”, de Julio Cortázar, na coletânea do mesmo nome (creio que no Brasil saiu como Orientação dos Gatos, Nova Fronteira, 1981). 
 
Nele, Cortázar põe em cena uma nova versão, silenciosamente maligna, do Clube da Serpente, o círculo de intelectuais expatriados que, em O Jogo da Amarelinha (1960) devora e discute exaustivamente a obra teórica de um tal Morelli, sem saber que se trata de um velhinho obscuro que mora não muito longe deles. 
 
Neste conto, porém, trata-se de um grupo de admiradores da atriz de cinema Glenda Garson (uma homenagem explícita a Glenda Jackson). O grupo surge espontaneamente, porque começam a avistar-se uns aos outros no cinema antes e após as sessões, reconhecer-se, cumprimentar-se, sair depois do filme para um café ou um trago. E assim forma-se “a aliança, aquilo que depois todos chamamos de o núcleo e os mais jovens o clube” (trad. BT). 
 
(Nova digressão: O inesgotável Kurt Vonnegut propôs em seu romance Cat’s Cradle (1963) os conceitos de wampeter e de karass. Um wampeter é um ser que se torna o foco de atenção e devoção fanática de um grupo de pessoas, o karass. Essas pessoas giram em órbita ao redor dele (órbitas espirituais, claro). Exemplos de wampeter podem ser uma idéia, um livro, o Santo Graal...) 




Pois bem, no conto de Cortázar, o karass que se reúne em torno da imagem de Glenda Garson percorre todos os caminhos previsíveis dos fãs com um objetivo em comum: os encontros casuais, depois os encontros combinados, as visitas recíprocas, as infindáveis discussões sobre os incontáveis detalhes... Até que as discussões chegam a um ponto crucial. 
 
Somente pouco a pouco, a princípio com um sentimento de culpa, alguns se atreveram a deslizar críticas parciais, o desconcerto ou a decepção frente a uma sequência menos feliz, as quedas no convencional ou no previsível. (...) Começávamos a sentir que nosso carinho por Glenda ia mais além do mero território artístico e que somente ela se salvava do que imperfeitamente faziam os demais. (...) De repente os erros, as carências, nos pareceram insuportáveis; não podíamos aceitar que Nunca Se Sabe Por Quê terminasse assim, ou que O Fogo da Neve incluísse a infame sequência do jogo de pôquer (na qual Glenda não atuava, mas que de alguma maneira a maculava como um vômito, esse gesto de Nancy Philips e a chegada inadmissível do filho arrependido). 
 
Esses cinéfilos radicais dedicam-se, então a aperfeiçoar as obras em que sua musa atuou, para que em torno dela não existisse nada que não fosse a perfeição. São pessoas de recursos, isso não se discute. Um deles “havia sido sócio de Howard Hughes no negócio das minas de estanho em Pichincha”, de modo que dinheiro, jatinhos e tecnologia não são problema. Outro dispõe de “um computador” (o conto é de 1980). 
 
E eles põem mãos à obra. Localizam todas as cópias (numa época em que o cinema era 100% em celulóide) dos filmes de Glenda, extraem as cenas que lhes desagradam, refilmam (provavelmente com dublês) outras cenas de acordo com seus critérios... Ninguém (quase ninguém) percebe o deep fake que está sendo elaborado. 
 
A memória brinca com seus depositários e os faz aceitar suas próprias permutações e variantes, talvez a própria Glenda não tivesse percebido a mudança, e sim, porque isto todos nós percebemos, a maravilha de uma perfeita coincidência com uma recordação lavada de escórias, exatamente idêntica ao desejo. 
 
Glenda se aposenta das telas, o que parece coroar o esforço do fã-clube: sua obra agora está redonda, esférica, perfeita. Mas um dia a atriz resolve voltar a filmar, e isto é uma ameaça. A obra atingiu a perfeição: fazer um filme novo, agora, seria submeter-se aos erros, às influências da mediocridade alheia. O que fazer, então? E o narrador conclui: 
 
Quando Diana pousou a mão no braço de Irazusta e disse: “Sim, é a única coisa que nos resta a fazer”, falava por todos sem necessidade de nos consultar. (...) Saímos separados, cada um conduzindo seu desejo de esquecer até que estivesse tudo consumado, e sabendo que não seria assim, que ainda nos restaria abrir o jornal em certa manhã e ler a notícia, as estúpidas frases de consternação profissional. 
 
Ninguém é mais cruel do que um fã, ninguém é tão capaz de destruir a carne-e-osso do ser amado para manter intacta a imagem idealizada que tem dele. 
 
H. G. Wells tem uma crudelíssima parábola, “A Pérola do Amor” (1925; incluído na coletânea “O País dos Cegos e Outras Histórias”, Alfaguara, 2014, trad. BT) em que um príncipe indiano perde a jovem e linda esposa, por quem era apaixonadíssimo. Decidido a manter viva sua lembrança, ele gasta seus tesouros na construção de um palácio perfeito, chamado A Pérola do Amor. O corpo da princesa, num sarcófago de alabastro, é colocado bem no centro, e em volta dele começam a ser erigidas paredes, colunas, ornamentos arquitetônicos, com os materiais mais raros. 
 
Mas o príncipe não fica satisfeito. Embora todos digam que se trata do mais belo palácio já construído, ele todo dia acha um defeito aqui, outro acolá. O palácio está quase perfeito e ele não tem sossego. Um dia, ele pára por um longo tempo, olhando aquela maravilha, e por fim estende o braço e aponta com o dedo o sarcófago onde repousa a princesa, dizendo apenas: “Tirem essa coisa daí”. 




 
 
 





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