Quando eu tinha uns dez ou onze anos, Victor Hugo era um
dos autores lidos lá em casa, por meu pai, minha mãe, minha irmã Clotilde e eu
(os mais novos eram muito pequenos ainda). Eu era pequeno mas metido a esperto,
e li tanto Os Miseráveis quanto O Corcunda de Notre-Dame. Entendia
tudo? Entendia todas as palavras, todas
as idéias, todos os significados? Claro que não; mas conseguia acompanhar os
acontecimentos, e captar alguma coisa dos dramas que aconteciam com aquelas
pessoas.
Nessa época aprendi uma lição fundamental como leitor: eu
não preciso entender tudo que estou lendo, desde que possa continuar a leitura.
Absorvo o que consigo entender. Depois cuido do resto. Nenhuma palavra
desconhecida e nenhuma idéia adulta já tiveram o poder de me afastar de um
livro. (Isto é exagero, claro. Ainda hoje tem uma porção de livros que eu
simplesmente não compreendo, e vou ler outra coisa.)
Hoje lembrei Os Homens
do Mar (1866), numa edição do Clube do Livro. (Anos depois encontrei outra
tradução, com o título Os Trabalhadores
do Mar.) Contava a história de um tal de Gilliatt, pescador jovem que vive à
beira-mar, na ilha de Guernsey, no litoral da França. (Onde Hugo morou durante
seu exílio.) Desde o começo achei o
lugar fascinante, porque tinha uma pequena elevação de terra que, na maré alta,
ficava submersa. Quando a maré baixava, a terra emergia, e nela havia um
rochedo escavado em forma de cadeira, uma cadeira que os locais chamam de
“Gild-Holm-‘Ur”.
Gilliatt tinha o costume de sentar nessa cadeira e ficar
olhando o oceano, enquanto a água da maré montante subia pouco a pouco,
molhando seus pés, depois suas pernas... E esta cena se repete tragicamente no
final do livro. (Não li o livro todo: outro costume salutar que cultivei era o
de abrir qualquer livro em qualquer página e começar a ler em qualquer ponto,
para ver se entendia e se gostava.)
Nesse tempo eu já estava escolado em romances espantosos
de ficção científica e de terror. Já sabia quem eram Drácula e Frankenstein,
então... “sou um ser humano, e nada que seja sobre-humano me é estranho.”
A certa altura do livro de Victor Hugo ele introduz, no
mundo rústico de Gilliatt, duas personagens, que dão nome ao capítulo: Durande
e Déruchette. Quem serão essas duas? Vamos ver como elas entram no livro, na
tradução catita de Machado de Assis. (Que não sei se é a mesma do livro da
foto, o volume que li na época.)
(...)
LIVRO
TERCEIRO
Durande
e Deruchette.
I
GARRULICE
E EFLÚVIOS
Deruchette
tinha as mais lindas mãozinhas deste mundo, e pés iguais às mãos, quatro pezinhos
de mosca, dizia mess Lethierry. Tinha em si a bondade e a doçura: o tio
Lethierry era toda a sua família e riqueza: o trabalho dela, era deixar-se
viver; tinha por talento algumas canções, por ciência a beleza, por espirito a
inocência, por coração a ignorância; tinha a graciosa indolência crioula,
mesclada de travessura e de viveza, a jovialidade traquinas da infância com um
pendor à melancolia, vestuários um pouco insulares, elegantes, mas incorretos,
chapéus de flores todo o ano, fronte ingênua, pescoço flexível e tentador,
cabelos castanhos, pele branca com alguns toques arruivados no verão, boca
grande e sã, e nessa boca o adorável e perigoso esplendor do sorriso. Eis o que
era Deruchette.
Algumas vezes, à
noite, após o pôr o sol, no momento em que a noite se mistura com o mar, à hora
em que o crepúsculo dá uma espécie de terror às vagas, via-se entrar na barra
de Saint-Sampson, ao tumulto sinistro das ondas uma certa massa informe, uma coisa
monstruosa que silvava e cuspia, que roncava como uma besta e fumegava como um
vulcão, uma espécie de hidra babando espuma e arrastando um nevoeiro,
atirando-se sobre a cidade com um horrível movimento de barbatanas e uma goela
donde as chamas irrompiam. Era Durande. (...)
Este trecho me marcou porque corresponde a uma certa
sensibilidade despertada nos leitores pela literatura fantástica.
(“La Durande”,
desenho de Victor Hugo)
A “Durande” que Victor Hugo descreve de maneira tão
brilhante (ainda mais pelo contraste entre as descrições dos dois parágrafos) é
o barco a vapor do Mestre Lethierry, seu ganha-pão. A descrição horrífica e
fantasiosa se justifica dramaturgicamente: trata-se de uma pequena ilha no
litoral da França, habitada por gente antiga e rude, e “Durande” é o primeiro
barco a vapor que eles conhecem, o que justifica o senso de estranheza e medo
diante dele.
Ao prosseguir na leitura, entendi aos poucos o que era
Durande. Por algumas horas, no entanto, ou minutos, acreditei piamente que se
tratava de um monstro real, um monstro misto de dragão e kraken, domesticado pelo Mestre Lethierry, uma criatura viva que
convivia com ele e a mocinha. Na minha cabeça de leitor enxerido, não havia
separação entre os gêneros literários. Não havia o realismo e o fantástico.
Todo livro era uma história, e em qualquer história podia acontecer qualquer
coisa.
Os Homens do Mar
pode servir, pelo menos nesse trecho, como precursor de um fantástico pré-steampunk, um registro do impacto das transformações
sociais e psicológicas produzidas pela chegada de uma nova tecnologia: a
máquina a vapor. Hoje, a descrição técnica de Victor Hugo ao longo do livro é
considerada pelos críticos como extremamente precisa, e reflete um bom
conhecimento de motores a vapor e de engenharia naval.
Durande me veio à mente (e com ela esse aspecto
semi-alegórico da máquina a vapor) ao ver uma referência a um livro que não li,
mas tem várias traduções brasileiras: La
Bête Humaine (“A Besta Humana”, 1889), de Émile Zola.
É um daqueles romances naturalistas em que um certo
determinismo biológico e social predispõe um indivíduo ao crime. Jacques
Lantier é um maquinista de trem, e no transcurso da narrativa comete alguns
assassinatos, pois é sujeito a acessos sádicos onde mistura o desejo sexual e a
vontade de matar (principalmente mulheres).
No clímax do romance, em suas últimas páginas, Lantier,
depois de mais uma vez escapar à identificação como assassino de outras
pessoas, vai pilotar um trem cheio de soldados bêbados rumo à fronteira, pois
acaba de ser declarada a guerra entre a França e a Prússia.
Já era noite, quando os soldados embarcaram, como carneiros, em vagões
de gado. Tábuas haviam sido pregadas às paredes para servir de bancos, e os
homens se amontoavam ali, superlotando os vagões; uns em pé, uns sentados sobre
os outros, apertados, sem poder mexer um braço. (trad. BT)
Depois que o trem parte, Lantier se envolve numa briga
com o foguista, Pecqueux, cuja namorada ele havia seduzido. Os dois brigam, se engalfinham
na cabine, caem do trem, são despedaçados... e o trem segue a toda velocidade,
sem ninguém no comando. (Este final catastrófico foi modificado por Jean Renoir
em sua adaptação cinematográfica de 1938.)
(Jean Renoir, La Bête Humaine, 1938)
A enorme massa, com dezoito vagões apinhados de homens como gado
humano, cruzava os campos desertos emitindo um rugido contínuo; e esses homens
que caminhavam para o massacre estavam cantando, cantando a plenos pulmões,
fazendo um tal clamor que podia ser ouvido por cima do barulho das rodas.
Chefes de estação e telegrafistas se desesperam, mandando
ordens para que todos os trens das próximas estações possam se refugiar em
algum desvio e permitir a passagem do trem enlouquecido.
Quem ligava para as vítimas que a máquina teria esmagado em seu
trajeto? Ela não ia rumo ao futuro, apesar de tudo, indiferente ao sangue
derramado? Sem guia, no meio da escuridão, como um animal cego e mudo que
alguém libertou por entre a morte, ela rodava e rodava, carregando sua carne de
canhão, cheia daqueles soldados que, embrutecidos pelo cansaço e pela bebida,
não paravam de cantar.
O livro termina assim, interrompendo-se antes do
desenlace inevitável. A “besta humana” do título, ao longo da novela, era
Jacques Lantier, o maquinista sádico e assassino; nestas cenas finais, esse
epíteto pode caber ao trem que ele pilotava, e que agora se transforma numa
máquina insensível, feroz, cheia de gente e matadora de gente, rumo à guerra
que se inicia. Homens que agem como máquinas assassinas, e máquinas que parecem
adquirir um espírito assassino próprio.
Na época de Zola, o trem a vapor era um símbolo recente
do poder e da ousadia do Homem, um ser de alta tecnologia que a essa altura já
adquirira dimensões mitológicas.
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