Acabei de ver as duas adaptações, para série de TV, deste
romance de Cixin Liu, muito elogiado e premiado por aí, certamente o primeiro
livro de ficção científica chinesa a produzir um impacto tão grande no
Ocidente.
A tradução em inglês, feita por Ken Liu, ganhou o Prêmio
Hugo de Melhor Romance, em 2015, e também foi indicada para o Prêmio Nebula
(que acabaria sendo concedido nesse ano a Aniquilação,
de Jeff Vandermeer).
A série chinesa foi lançada em 2023, com 30 capítulos
(pode ser vista no YouTube, com legendas em inglês). A série norte-americana
foi lançada este ano, com 8 capítulos na primeira temporada. Ambas as
adaptações são competentes, com grandes momentos, e ambas têm coisas que não
estão muito bem resolvidas, como qualquer série de TV.
Vale a pena vê-las? Sem dúvida. Qual das duas? Difícil
responder, porque são dois resultados “fílmicos” muito diferentes.
A série chinesa (dirigida por Lei Yang) tem um
desenvolvimento mais arrastado. Alguns temas (como o das “contagens
regressivas” implantadas nos olhos dos personagens) são esticados longamente,
enquanto na série norte-americana isto é resolvido num vapt-vupt.
Do mesmo modo, a série chinesa explora com muitas
ramificações as atividades dos os grupos de “devotos” dos alienígenas (“Fronteiras
da Ciência”, os Adventistas, os Redencionistas, os Sobreviventes...) e suas
brigas internas, o que produz vários subplots de espionagem, assassinatos, etc.
(Yu Hewei)
O elenco chinês é em geral muito bom: o detetive meio
fanfarrão mas esperto (Yu Hewei) é um dos melhores. A exceção é a “Sala de
Guerra” cheia de canastrões ocidentais usando farda e condecorações; nenhum
presta. As expressões são forçadas, os diálogos ocos.
(Liam Cunningham e Benedict Wong)
O elenco norte-americano oscila bastante, porque tem
momentos um tanto novela-das-sete, mas eu gosto do detetive de Benedict Wong,
da cientista Jess Hong (“Jin”) e do cientista Jovan Adepo (“Saul Durand”).
Encontrei velhos conhecidos de Game of
Thrones (outro projeto de Benioff & Weiss): Liam Cunningham (o “Mestre
Davos”, voltando agora como o implacável comandante Wade) e John Bradley (“Samwell
Tarly”, aqui como o milionário Jack Rooney).
O ponto em que a série chinesa dá de goleada na
norte-americana, contudo, é justamente na criação da personagem Ye Wanjie
(interpretada por Ziwen Wang, na juventude, e Jin Chen, idosa) a cientista cujo
pai é morto pela Guarda Vermelha maoísta, mas depois é aproveitada, pelo seu
talento, na Base da Costa Vermelha. Ali ela irá trabalhar na antena emissora e,
mais tarde, lançar o chamado para os alienígenas. Existe nesta versão da
história uma sensação real de tempo passado por ela na Red Coast Base.
Acompanhamos sua subida na carreira profissional, sua relação com os chefes
imediatos, o acesso aos aparelhos, a mensagem, a decisão final de deixar oculta
a resposta dos extraterrestres.
(Jin Chen, como “Ye Wanjie”)
Ye Wanjie é o personagem central dessa narrativa, um
personagem complexo que me deu vontade de ler o livro. (Não que o livro não
tenha, certamente, outras qualidades.) Não é uma vilã convencional; suas
motivações são complexas, e a imensa tensão emocional e intelectual da
personagem é bem explorada com muitos pequenos episódios esclarecedores. Isto
fica faltando na série norte-americana, onde ela não passa de uma personagem
secundária, mesmo sendo a deflagradora da trama.
Em geral, ambas as séries fazem escolhas com o pensamento
no público que pretendem atingir. Os jovens cientistas chineses são contidos,
travados, e quando destravam endoidecem.
(Ambas as séries, aliás, recorrem ao batido clichê do
“cientista pirado” que se dá o trabalho de cobrir todas as paredes e o chão com
rabiscos matemáticos; isto virou no cinema de hoje um equivalente ao
“laboratório gótico” dos velhos filmes de terror, com tubos de ensaio espumando
e retortas soltando vapor.)
Os jovens cientistas ocidentais têm todos os cacoetes dos
personagens jovens da TV. Os namoros instáveis, as amizades à base de
rompimentos e reaproximações, as piscadelas humorísticas na direção da platéia.
Esse tipo de personagem compõe o que a gente poderia chamar de “realismo
estatístico”. Cacoete de Hollywood? Nem tanto; tem até alguma herança do
“realismo socialista”, com sua busca de personagens típicos vivendo situações
típicas e tomando decisões típicas.
As duas séries tratam de modo parecido e diferente um dos
episódios mas vigorosos, em termos de dramaticidade e de efeitos especiais: a
emboscada no Canal do Panamá.
Na adaptação chinesa, o procedimento de ataque ao navio é
antes longamente discutido, explicado, exemplificado, e o suspense que
experimentamos resulta da expectativa em ver se um plano tão mirabolante vai
dar certo.
Na adaptação Netflix, sabemos que o navio vai ser
atacado, mas o roteiro não revela como vai ser exatamente. Cada detalhe que
surge é uma surpresa, e aos poucos entendemos a tecnologia usada pelos atacantes.
Uma solução é certa, a outra é errada? Acho que não. Como
tantas vezes acontece, tanto o suspense quanto a surpresa têm seu valor
dramático, mas dependem acima de tudo da eficiência narrativa de quem dirige. E
nos dois casos, são cenas bem sucedidas.
Outro aspecto cientificamente simpático do enredo é a
larguíssima janela de espera pela chegada de uma frota estelar alienígena. Soa
mais realista do que aquelas histórias em que tudo acontece num piscar de
olhos. “Naves foram construídas, e anos
depois os humanos desembarcavam no planeta Zargon-14...”
A longa viagem da frota bélica dos Tri-Solarianos (ou
“Santi”) na direção da Terra me trouxe à lembrança a Guerra das Malvinas nos
anos 1980, quando após a invasão argentina às ilhas a Primeira-Ministra Margareth
Thatcher despachou uma “força tarefa” que viajou pelo Atlântico durante
semanas, com o mundo na maior expectativa, até entrar em choque com as tropas
argentinas. Uma guerra não acontece de repente; precisa de um vasto
deslocamento de forças, tropas, veículos... Antes do primeiro tiro, a guerra já
começou.
É imensa a estante de obras de FC em que alienígenas
ultra-poderosos são vistos como deuses. Arthur C. Clarke dizia que toda
tecnologia suficientemente avançada fica indistinguível da mágica. De certo
modo, o que adoramos religiosamente se confunde com o que não somos capazes de
explicar de maneira racional.
("Tatiana Haas")
Um dos melhores personagens da série Netflix é “Tatiana
Haas” (Marlo Kelly), a jovem seguidora da seita dos “adoradores dos
alienígenas”, uma matadora que tem o olhar vidrado e o sorriso fixo dos
verdadeiros fanáticos. Sua equivalente, na série chinesa, é a mocinha de boné
branco (cujo nome não consegui localizar) que destronca o pescoço de um
assassino profissional com a facilidade de quem abre uma cerveja long-neck.
Fanatismo político, fanatismo religioso, e fanatismo
científico são colorações diferentes de uma mesma psicose. (Eu ia incluir
também o fanatismo futebolístico, o fanatismo literário, etc., etc., mas por enquanto
não é preciso.) Durante milênios a Humanidade olhou para o céu, fazendo
perguntas e esperando respostas. Acho que foi Blaise Pascal quem disse: “O
silêncio eterno desses espaços infinitos me dá medo.” As religiões são um
conjunto de possíveis respostas. A busca por alienígenas, também. Ninguém quer
aceitar a responsabilidade de ser a única inteligência do Universo.
A obra de Cixin Liu é uma trilogia. O título em inglês, Remembrance of Earth’s Past, alude a
Marcel Proust, e pode ser traduzido como Em
Busca da Terra Perdida. Os
três volumes são The Three Body Problem (2006),
The Dark Forest (2008) e Death’s End (2010). Enquanto a
série chinesa se detém no primeiro volume, trechos importantes do segundo e do
terceiro foram transpostos para a série Netflix, que pode ser considerada mais
representativa da trilogia como um todo.
Pelo que as duas séries apresentaram, creio que vale a
leitura dos livros, até por exprimir uma visão “chinesa” dos grandes problemas
do gênero. A literatura é sempre uma expressão individual, mas também-sempre
contaminada por ambiente social, leituras, interações, nosso inevitável
mergulho no coletivo. Assim como existe em toda sociedade um “espírito do Tempo”
(Zeitgeist) existe também um
“espírito do Espaço” (Raumgeist?...)
– que deve ser o que se chama por aí de nacionalismo.
Às vezes me perguntam como escrever ficção científica
“brasileira”. Respondo que a melhor maneira é ser pessoal como escritor. Não é
ser “narcisista”, nem “autobiográfico”; é projetar-se por inteiro em tudo que lhe
interessa: como escritor, como leitor, como pessoa. O resultado, mesmo que a
ação transcorra em Betelgueuse ou no Século 2222, terá algo de brasileiro, que
nem o próprio escritor estava percebendo.
4 comentários:
Bah, munto bão, Braulio.
Não vi nem li nada disso.
Mas vc implantou a vontade de ler e ver. Gracias!
Li os 3 volumes. O primeiro é muito bom, o segundo é sofrível, o terceiro é muito ruim.
Concordo que o volume 3 é ruim, vou até dar um spoiler:
No final, a invasão dos trissolarianos é evitada transformando-se todo o Universo em um plano bidimensional!!!
Brauli, encontrei em um dicionário uma definição que fez lembrar do seu dicionário Aldebarã. Segue:
bambolim: sanefa que pende da galeria das bambinelas.
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