Corpos (“Bodies”,
de Paul Tomalin) é uma série de ficção científica em streaming pelo Netflix, adaptação da graphic novel do mesmo nome escrita por Si Spencer.
É uma história policial de viagem no tempo, e transcorre
em Londres, em quatro épocas diferentes, mostrando o repetido aparecimento do
mesmo cadáver, no mesmo local (um homem nu, com marcas estranhas no corpo). O
mistério é investigado por quatro detetives: Alfred Hillingshead em 1890,
Charles Whiteman em 1941, Shahara Hasan em 2023 e Iris Maplewood em 2053.
Não assisto muitas séries de FC, e devo estar perdendo
muita coisa boa que há por aí. Em todo caso, esta aqui é muito bem escrita e
dirigida, e em seus 8 episódios chega a uma conclusão satisfatória. Espero que
não haja continuação (as continuações são quase sempre um trajeto ladeira
abaixo.)
Bodies tem o clima
de paranóia dos thrillers de perseguição-e-fuga de Philip K. Dick: cada pessoa,
por mais inocente que pareça, pode ser um agente plantado ali pela Conspiração
para intervir no momento adequado. Ninguém é casual. Todo mundo está ali com
“uma agenda secreta”, com segundas intenções. E da mesma forma todo mundo pode
ser o “agente salvador”: um transeunte aleatório, o porteiro do prédio, o
frentista do posto, qualquer um deles pode ser a pessoa que agarra o herói pelo
braço na hora do perigo e diz algo na linha do clássico “Vem comigo, explico
depois”.
(Amaka Okafor como "Shahara Hasan")
Esse clima de paranóia é aliás uma das características da
obra de P. K. Dick e é um sintoma neurótico da Guerra Fria, período em que Dick
surgiu como escritor. A paranóia absurda e alucinada em que ele viveu parte dos
seus últimos anos se deve a isso: ele tinha fantasias de que estava sendo
espionado pelo FBI, e chegou a delatar Stanislaw Lem (o polonês autor de Solaris,
e um dos seus grandes admiradores) como agente comunista. O medo do comunismo
durante a Guerra Fria gerou (na literatura inclusive) essa situação mental de
que “Ninguém é inocente, ninguém é o que parece ser, todo mundo está fingindo,
todo mundo é perigoso”. E os thrillers de FC recentes bebem dessa fonte, direta
ou indiretamente: O Homem do Castelo Alto, Severance, Black
Mirror, Dark, etc.
A série alemã Dark, com seu roteiro complexo e (em
geral) bem amarrado, ajudou a fixar certos marcos, pontos de referências,
recursos que irão servir a outros dramaturgos. Pessoas que transitam de um
século para outro, num desenho complexo de perseguições e assassinatos, acabam
se incorporando ao repertório do público e viram um instrumento dramatúrgico,
prático, rápido, fácil de usar.
Outro elemento presente em filmes/séries recentes é,
curiosamente, o fato de que a “máquina do tempo” está em desuso. A máquina
vitoriana do filme de George Pal, a Tardis usada pelo Dr. Who, o carro de De
Volta Para o Futuro... Agora, a viagem no tempo se dá através de
“singularidades” fixas; locais, portais não-portáteis. Podem estar no interior
de uma caverna (Dark), num subterrâneo artificial (Ministério do
Tempo, Bodies), mas em todo caso são lugares imóveis, a que o
personagem precisa ter acesso, para viajar.
Num certo sentido, isso me parece
mais cientificamente plausível do que o “automóvel do tempo”, que o passageiro
pode pilotar na direção que bem entender. E há precursores, é claro, desde a
velha série Túnel do Tempo.
Outro elemento que reaparece aqui é a multiplicação dos
corpos idênticos da mesma pessoa, reiteradamente morta: efeito semelhante ao de
The Prestige (livro de Christopher Priest, filme de Christopher Nolan).
Em muita dessas narrativas de viagens no Tempo,uma parte
crucial do enredo lida com um evento específico (o nascimento ou a morte de uma
pessoa; o deflagrar de uma guerra; uma descoberta científica fundamental, etc.)
que um grupo de pessoas tenta evitar que aconteça, e outro grupo se dedica a
garantir que aconteça. Mudar ou preservar o rumo da História.
A narrativa de Bodies
tem quatro linhas de enredo (1890, 1941, 2023 e 2053) e consegue não
misturá-las. É uma verdadeira proeza de malabarismo, mas a série consegue isto,
mediante quatro direções-de-arte reproduzindo épocas diferentes, com diferentes
paletas de cores, vestuário, ruídos e música de fundo, etc.) de tal modo que o
espectador nunca se perde. (Eu pelo menos, que sou danado para confundir essas
narrativas intercaladas, não me perdi.)
Há momento inclusive em que a câmera, com enquadramentos
sutis, parece sugerir que personagens de dois tempos diferentes estão olhando
interrogativamente um para o outro, como se se avistassem por cima do “abismo
do tempo”. E os detetives (Hillinghead, Whiteman, Shahara Hasan, Iris
Maplewood) vão descobrindo e revelando peças do quebra-cabeças, de modo que o
mistério vai sendo atacado e elucidado em quatro flancos, ao mesmo tempo.
(Jacob Fortune-Lloyd como "Charles Whiteman")
Na novela gráfica original, o autor Si Spencer obteve
esse efeito fazendo com que cada uma das linhas temporais fosse desenhada por
um artista diferente: Dean Ormston, Phil Winslade, Meghan Hetrick e Tula Lotay.
Há uma certa repetição de temas na prefiguração de uma
Inglaterra sob regime autoritário. Todas essas narrativas de elites despóticas
regendo Londres com mão de ferro (e aqui incluo até V de Vingança, Children
of Men, etc. ) devem muito ao 1984 de George Orwell. Mesmo quando tecem variantes demonstram estar
partindo dessa premissa tão culturalmente próxima aos ingleses. Daí que as
distopias britânicas de J. G. Ballard (High Rise, Crash, etc.)
dão um salto de originalidade, porque a brutalidade não emerge de um governo
totalitário, mas vem de baixo para cima, da população mais abastada.
A série (a maioria das séries atuais) recoloca, em seus
termos, a questão das influências, referências, citações explícitas, homenagens.
Todo mundo está se queixando, atualmente, de que as “Inteligências Artificiais
(IAs)” reciclam obras alheias o tempo inteiro sem citar a fonte. Bem – nossas
inteligências biológicas fazem a mesma coisa há séculos. A única diferença é
que as IAs têm a seu serviço todo o sistema de acesso a “Big Data” (quantidade massacrante de
informações), rapidez de processamento e de compartilhamento.
Em Bodies vi
referências a O Exterminador do Futuro (James
Cameron, 1980), O Vingador do Futuro (Paul
Verhoeven, 1990), O Bebê de Rosemary (Roman
Polanski, 1968), Fundação (Isaac
Asimov, 1940+), O Homem do Castelo Alto (Frank
Spotnitz, 2015-2019) e por aí vai. A dramaturgia de gênero (livros, filmes,
séries, quadrinhos, etc.) canibaliza-se a si mesmo o tempo inteiro, sem muita
cerimônia. Ressalvados os casos de plágio com visível má fé e sem qualquer
contribuição criativa, os autores sabem, implicitamente, estar contribuindo para
um gigantesco banco-de-dados onde outros autores, iguais a eles próprios, irão
um dia recolher velhas idéias para novas histórias. A não ser que isso seja
feito por um “robô” cibernético capaz de processar terabytes de narrativa por
segundo. Aí... já é outra história.
Como dizia Umberto Eco:
Os mass‑media são genealógicos e não
têm memória, mesmo que as duas características pareçam incompatíveis uma com a
outra. São genealógicos porque neles toda invenção nova produz imitações em
cadeia, produz uma espécie de linguagem comum. Não têm memória porque, depois
que se produziu a cadeia de imitações, ninguém mais pode lembrar quem a
iniciou, e se confunde facilmente o iniciador da estirpe com o último dos
netos.
(Viagem na Irrealidade Cotidiana, Nova Fronteira, 1984, trad.
Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, pag. 176)
Um comentário:
Raramente assisto séries. Vou cair dentro desta. Você assistiu Vórtex? É uma série francesa que também envolve investigação de crime e trânsito no tempo. Ela se passa num universo bem mais restrito: um crime, uma família e uma cidade. Achei bem original.
Postar um comentário