sexta-feira, 15 de setembro de 2023

4982) Minhas Canções: "Meu Foguete Brasileiro" (15.9.2023)


Desde a adolescência eu vivo mergulhado em dois mundos aparentemente distantes, o da música popular brasileira e o da ficção científica. Primeiro como leitor e ouvinte, e depois como autor.

Muita gente me pergunta o que tem uma coisa a ver com a outra, e uma resposta que já forneci foi um artigo publicado na saudosa revista Isaac Asimov Magazine (Ed. Record), em que mostro como diferentes compositores da MPB (e do rock brasileiro, também) trataram os temas da FC. Temos Gilberto Gil (para mim o mais consistente e de cabeça mais “ficcientífica”), Raul Seixas, Caetano Veloso, Fausto Fawcett... Muita gente.

Temos a tendência a definir um gênero literário (cinematográfico, musical, etc.) a partir dos exemplos que conhecemos, e curiosamente às vezes tentamos atribuir ao gênero certas características das obras, que não são, em absoluto, típicas do gênero, e podem ser deixadas de lado.

Meu exemplo preferido é de quando me pediram um exemplo do ghost story brasileira e eu mencionei Dona Flor e Seus Dois Maridos de Jorge Amado, história de um morto que volta para fazer vadiagem com a própria viúva. Meu interlocutor queixou-se: “Mas isso não é uma ghost story... Não tem castelo em ruínas, não tem abadia gótica, não tem aparição noturna arrastando correntes...” 

Passei por experiência semelhante ao falar de músicas brasileiras de ficção científica e citar o clássico Eu Vou Pra Lua, gravado por Ari Lôbo: “Eu vou pra Lua, eu vou morar lá... Vou no meu Sputnik, do campo do Jiquiá”. O campo do Jiquiá ficava no Recife; era o lugar onde os zepelins ficavam atracados no auge da fama desses dirigíveis. A canção descreve uma ida para a Lua e lá o encontro com uma civilização que é uma versão satírica da nossa. Por que não pode ser ficção científica?

É o mesmo argumento que uso para defender esta minha simpática parceria com Antonio Nóbrega, “Meu Foguete Brasileiro” (no álbum Lunário Perpétuo, 2002). Na preparação do álbum, tínhamos feito um levantamento de temas e de estilos que podíamos abordar. Pensamos em fazer alguma coisa inspiradas nos cocos de embolada, e eu lembrei uma antiga canção de Manoel Serafim gravada por nossos amigos Cachimbinho e Geraldo Mousinho, “O Navio Brasileiro”, que tem o refrão:

Meu navio deu um tombo

que a proa abalou,

o mastro pendeu e tombou

lá no alto mar...



 

Confiram aqui a gravação:

https://www.youtube.com/watch?v=F1-yjP3hGiE&ab_channel=AcervoOrigens

 

É a descrição de um navio gigantesco, portentoso, que dentro de si contém máquinas fabulosas, edifícios, fazendas de gado, campos lavrados, residências, um despropósito de coisas de fazer inveja àquelas grandes embarcações dos EUA com não-sei-quantos andares, que fazem cruzeiro pelo Mar do Caribe.

O coco de Cachimbinho e Geraldo segue uma tradição, cujo antecessor mais provável é “O Avião Brasileiro” dos saudosos Antonio da Mulatinha e Dedé da Mulatinha, que vi cantar muitas vezes em Campina Grande. A professora Elizabeth Travassos (UFRJ) faz uma transcrição e análise do coco dos dois irmãos campinenses num artigo incluído em Ao Encontro da Palavra Cantada, org. Cláudia Neiva de Matos, Elizabeth Travassos e Fernanda Teixeira de Medeiros (Rio: 7Letras, 2006). 


Como os poetas já tinham lançado mão de avião e navio, só nos restou apelar para o foguete interplanetário, e acho que veio de Nóbrega a idéia de, em vez de usar o verso curto da embolada, usarmos o verso longo do “galope beira mar”. E logo veio o recurso de trocar o refrão final desse estilo (“cantando galope na beira do mar”) por “cantando galope e voando no ar”, visto que se tratava de uma espaçonave.

E fomos em frente, enfileirando situações utópicas e divertidas, na descrição desta super-espaçonave brasileira que sairia pelos arrabaldes do Sistema Solar, encontrando outros povos, fazendo trocas comerciais, desbravando novas paisagens.

É ficção científica? É, sim, mas em vez da ficção científica ufanista, desbravadora e colonialista (“a missão do Homem é civilizar o universo”) é uma ficção científica brincalhona, irônica, meio ingênua em suas imagens e meio madura ao lidar com essa própria ingenuidade.


 

MEU FOGUETE BRASILEIRO

(BT & Antonio Nóbrega – março-abril 2002)

 

https://www.youtube.com/watch?v=jHr3iojbb_s&ab_channel=AntonioN%C3%B3brega-Topic

 

1

Eu fiz um foguete de andar pelo espaço

igual um que eu vi pela televisão:

não sei se era coisa da França ou Japão

mas basta ver gringo fazer eu já faço!...

Mandei buscar logo cem chapas de aço,

latão, alumínio, ferro de soldar;

dez mil arrebites para reforçar

a parte de fora da infra-estrutura:

cem metros de longo, trinta de largura,

e dez de galope voando no ar.

 

2

Por dentro o foguete tem compartimentos:

setor de serviço, cabine da frente,

motor titular e o sobressalente

e pra equipagem mil apartamentos.

Canhões telescópicos mais de duzentos,

castelo de proa, sensor e sonar;

torre de comando, luneta, radar,

produto avançado da tecnologia:

pretendo acabá-lo e sair qualquer dia

cantando galope e voando no ar!...

 

3

Botei no foguete diversas antenas

para captar raios infra-vermelhos.

Na parte de cima um sistema de espelhos

que amplia as imagens de estrelas pequenas.

Motores na popa que servem apenas

pra tudo aquecer, e pra refrigerar.

Movidos a pura energia solar

tem computadores, TVs virtuais:

mil inteligências artificiais

que cantam galope, voando no ar!

 

4

Maior do que tudo é a parte cargueira

que leva produtos de exportação:

tem saca de açúcar, tonel de carvão,

baú de café, tora de madeira.

Tem pano de lenço, tem palha de esteira,

xampu, querosene, bebida de bar,

rede de dormir, colchão de deitar,

cueca de seda, calcinha de renda...

Achando quem compre, não tem quem não venda,

cantando galope e voando no ar!

 

5

Na parte de cima da carga pesada

tem carro, trator, “caterpilha”, caçamba,

tem alegoria de Escola de Samba,

carro de bombeiro, mangueira e escada.

Tem locomotiva recém-fabricada

e tem ponte pênsil pronta pra instalar;

tem ônibus-leito, tanque militar,

caixão de defunto, navio de guerra...

Um pouco de tudo que existe na Terra,

cantando galope e voando no ar!

 

6

Merece destaque o setor do varejo,

com mercadorias de boa saída:

barraca de praia, caixa de bebida,

ganzá, cavaquinho, tantã, realejo...

Lagosta, siri, corda de caranguejo,

tem carne de sol e tem frutos do mar;

cordão de ceroula, produtos do lar,

catálogo novo, preço de primeira:

daqui do país, só não vendo a bandeira

que vai hasteada, voando no ar...

 

7

Depois que enchi os porões do foguete

com mil toneladas de mercadoria

pensei que de nada adiantaria

trancar-me sozinho nesse palacete.

Não sou sacerdote, nem sou um cadete,

não sou da igreja nem sou militar...

Sou só um poeta doidim pra casar

ganhar cafuné, um cheiro, um carinho...

O diabo é quem sai viajando sozinho

cantando galope, e voando no ar!

 

8

Olhei sem demora os mapas solares

dos meus alfarrábios de Astrologia

e vi que de fato eu precisaria

de ter companhia nos céus estelares.

Eu que planejava sair pelos ares

buscando planetas pra colonizar,

somente podia vir a povoar

os mundos distantes, sem ter empecilhos,

com muitas mulheres me enchendo de filhos,

cantando galope, e voando no ar...

 

9

Ainda por cima, era necessário

por uma bem simples questão de harmonia

que as raças humanas que eu espalharia

surgissem de modo bem igualitário.

Fiz logo um harém multi-milionário

nos seis continentes mandei contratar

as deusas mais belas que pude encontrar

e fiz delas todas as minhas mulheres:

café da manhã com seiscentos talheres,

cantando galope e voando no ar!

 

10

Criei no foguete diversos setores:

indústria, comércio, serviços, lazer.

Fazendas de soja pra dar de comer

aos meus tripulantes e navegadores.

Conjuntos de vilas pros trabalhadores,

e até “piscinão” com água do mar;

meu grande foguete é obra sem par

maior do que a China, melhor que o Japão;

tão belo de ver que parece o Sertão,

cantando galope e voando no ar!

 

11

Depois eu sentei no meu tamborete

puxei a lavanca, pisei no pedal,

subi pro espaço com força total

fazendo tremer o motor do foguete.

Passei bem por cima do Empire State,

da Torre Eiffel, Monte Palomar;

e vi pela tela se distanciar

a mancha azulada do nosso planeta...

Pensei: “Minha Nossa!  Aqui vai Tonheta,

cantando galope e voando no ar!...”

 

12

Fiz logo uma escala no chão marciano

vendi rapadura, comprei tungstênio,

enchi os meus tanques de oxigênio,

parti outra vez no começo do ano.

Passei por Saturno, passei por Urano,

cheguei lá no fim do Sistema Solar;

desci em Plutão, tomei banho de mar,

botei gasolina comum e azul,

segui com destino ao Cruzeiro do Sul

cantando galope e voando no ar!

 

13

Foi tanta viagem, foi tanta aventura,

foi tanta Demanda, foi tanta Odisséia...

Eu posso jurar à distinta platéia

que tudo isso foi a verdade mais pura.

Também teve um pouco de literatura,

história inventada para relaxar;

mas eu que não minto não quero falar

e o resto eu só conto aqui pra você

no próximo show, ou em outro CD,

cantando galope e voando no ar!

 

 

 

 

 




Um comentário:

Fraga disse...

CLAP, CLAP, CLAP!