Volta e meia eu me deparo, na imprensa, com essa
expressão. Que eu entendo, e posso até usar; mas acho que tem gente usando sem
necessidade.
Vi uma matéria sobre o lançamento do novo livro de Bob
Dylan, um ensaio onde ele comenta canções clássicas (e algumas obscuras) da
música norte-americana. Às folhas tantas, a matéria diz:
Tudo aconteceu quando Bob Dylan mencionou Joe Satriani em uma fala de
seu novo livro, "Philosophy of the Modern Song" ("Filosofia da Canção
Moderna", em tradução livre).
Sinceramente, não me ocorre nenhuma outra tradução
possível, livre ou não-livre, para esse título. E olha que eu sempre defendo a
teoria de que “toda” frase pode ser traduzida de muitas maneiras diferentes.
Quando a pessoa usa esse álibi, está se precavendo contra
uma possível crítica dos leitores. Está avisando: “Olha, eu não sou tradutor
profissional, não sou especialista em tradução. Estou só dando essa versão
livre, em português, para dar uma idéia ao leitor que não conhece inglês. Desculpe
qualquer coisa.”
Uma escusa perfeitamente legítima.
Me acontece muitas vezes, principalmente ao escrever aqui
no blog, que preciso citar e traduzir uma frase, um título, uma expressão
qualquer. É uma frase complicadinha e eu fico hesitando entre duas ou três
soluções possíveis. Mas... ora que diabos, estou só dando um exemplo, isto aqui
é uma conversa. (Eu vejo blog como uma conversa, que pode ser mais formal ou
menos, conforme o dia e a veneta.) O que faço? Mando a versão que no momento me
parece mais passável, e sigo adiante.
Esse tipo de tradução é provisório, não-definitivo, não é
preso a um atestado de legitimidade absoluta. Quem usa essa expressão o faz de
maneira modesta, discreta, quase que pedindo desculpas por se meter a traduzir
sem ser tradutor. Uma posição até elogiável, numa época de muita gente
cheia-de-razão, como se diz na Paraíba.
Pouco tempo atrás estava rolando uma discussão sobre a
série de TV Sandman, baseada na série
de quadrinhos de Neil Gaiman. É um título que já havia sido usado por E. T. A.
Hoffmann num conto famoso (“Der Sandmann”, 1817), sobre uma figura de pesadelo
do folclore europeu.
Quando incluí o conto de Hoffmann numa antologia (Freud e o Estranho, Casa da Palavra, 2007),
ele foi traduzido como “O Homem de Areia”. Tempos depois me ocorreu que uma
tradução igualmente válida seria “O Homem da Areia” – porque esse personagem
derrama areia nos olhos das crianças que não dormem, fazendo-os arder.
“O Homem de Areia”, título geralmente usado no Brasil,
sugere um homem feito de areia; “O Homem da Areia” pode sugerir um homem que
usa a areia para um fim específico, e a traz consigo num saquinho (como faz o
personagem Morpheus, de Gaiman).
Sempre é possível encontrar uma tradução melhor que
outra. Por isso os livros importantes são periodicamente traduzidos, para
adequá-los à linguagem de cada época, à dicção de cada época, às nuances de
vocabulário – que mudam o tempo todo.
O epíteto se aplica quando o livre-tradutor admite a
probabilidade de outras soluções tradutórias
para aquela frase mas, por variadas razões, não quer se deter no exame
dessas alternativas, até mesmo para não se desviar do assunto principal.
Muitas coisas que eu traduzo “en passant” (“de passagem”,
em tradução livre) têm esta justificativa: “Olha, pessoal, esta frase aqui
mereceria um exame mais aprofundado, mas vou botar esta versão quebra-galho, só
pra dar uma idéia do que se trata”.
Se eu fosse me referir à canção mais famosa de Bob Dylan,
“Blowin’ in the Wind”, diria: “Soprando no vento”. É a tradução mais imediata, mais
ao pé da letra. Porque o sentido mesmo do verbo pediria algo como “Sendo
soprada no vento”, ou “pelo vento”. The
answer is blowin’ in the wind. A resposta está flutuando no vento, está
pairando no vento, está sendo levada pelo vento...
Enfim: em diferentes momentos, eu optaria por diferentes
soluções. Qualquer escolha deixaria uma inquietude de coisa-faltando. E eu
acabaria apelando para a fórmula: “em tradução livre”.
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