terça-feira, 12 de outubro de 2021

4753) A invasão de Jorge Luís Borges (12.10.2021)



No final da década de 1960, Borges era considerado por muita gente “o homem mais famoso da Argentina”. Seus livros, já traduzidos e premiados na Europa, começavam a sair em inglês nos EUA, e sucediam-se as suas viagens para falar em universidades norte-americanas, como quando ministrou em Harvard a famosa série de “Conferências Norton” sobre literatura, entre outubro de 1967 e abril de 1968.   
 
Data desse período também uma curiosa contribuição sua para o cinema argentino, colaborando (junto com Alfredo Bioy Casares) no argumento e roteiro do filme Invasión (1969), dirigido e produzido por Hugo Santiago.

 
O filme tem cópia no YouTube, com áudio original em espanhol e legendas em inglês:
https://www.youtube.com/watch?v=TkZp39MEDGA&t=1139s
 
É uma alegoria política, ambientada na cidade fictícia de “Aquilea”, em 1957. Isso lhe dá um tom levemente fantástico, como ocorre com toda história onde um país imaginário serve como uma transparente metáfora do país onde o filme está sendo feito.
 
Esse recurso coloca Invasión no mesmo plano de Terra em Transe (1966) de Glauber Rocha, com suas locações imaginárias de “Eldorado” e “Alecrim”, ou mesmo o “Alphaville” (1965) de Godard, que cenograficamente e dramaturgicamente é uma mera alegoria da Paris onde foi rodado. Também tem algo de outro filme brasileiro, O Quinto Poder (1962), de Alberto Pieralisi e Carlos Pedregal, um thriller político futurista. 
 
No livro Do Cinema (Lisboa: Horizonte, 1983), em que Edgardo Cozarinsky compilou textos de Borges sobre cinema, aparece o resumo pouco esclarecedor:
 
INVASIÓN – Invasión é a lenda de uma cidade, imaginária ou real, sitiada por fortes inimigos e defendida por alguns homens que por acaso não são heróis. Lutam até o fim, sem suspeitar de que a sua batalha é infinita.
 
“Aquilea” é uma cidade cercada e a ponto de ser invadida; na trama, nem sempre muito clara, acompanhamos grupos antagônicos de conspiradores, tanto os que querem evitar a invasão quanto os que desejam favorecê-la. Ambos se comportam da mesma maneira sorrateira, com encontros clandestinos, mensagens secretas, atentados súbitos, sequestros... E tudo isto acontece no meio de uma população alheia, indiferente, opaca.

 
Vamos decifrando aos poucos quem é quem, e o que está pretendendo, porque os diálogos são lacônicos (e em muitos deles dá para sentir o dedo de Jorge Luís Borges, o eternos temas da valentia masculina que ele tanto cultivou). Um personagem, ao se oferecer para uma missão arriscada, diz: “Se alguém há de morrer, o mais indicado sou eu. Vocês podem oferecer sua valentia; eu só posso oferecer minha morte.” É o tema do medroso que se supera e se sacrifica, também tão caro a Guimarães Rosa.
 
O que envolve e segura o espectador é a narrativa visual, que é cheia de energia, bem montada, bem fotografada, com personagens sempre tensos e sempre na iminência de um desfecho trágico. O filme tem uma fotografia em preto-e-branco de Ricardo Aronovich, que trabalhou também no Cinema Novo brasileiro. É uma fotografia expressionista, com claro-escuro acentuado, que lembra clássicos como O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed ou O Processo (1962) de Orson Welles.   

 
Aos poucos os conspiradores anti-invasão vão tendo seus planos sabotados, são mortos de um em um pelos inimigos, e percebem que em breve Aquilea será invadida por terra, mar e ar. Seu líder, Don Porfírio (ao que se diz, inspirado em Macedonio Fernándes, mentor e amigo de Borges) vê seus recursos minguando cada vez mais. O final, contudo, abre a possibilidade de uma nova célula de resistência.
 
Para mim é muito claro que o filme serve, entre outras coisas, como uma celebração da resistência armada dos jovens esquerdistas, tal como ocorria com Terra em Transe. É curioso que um autor politicamente conservador como Borges tenha participado (em alguns momentos, até com entusiasmo) de um projeto como este, mas dá para entender. Em momento algum se fala da Argentina; o espaço geográfico e político do filme se situa num limbo alegórico, e posso perfeitamente imaginar Borges vendo ali apenas a aventura de um grupo de homens valentes, de revólver em punho, enfrentando forças muito mais numerosas e mais bem aparelhadas.
 
Há outros toques autobiográficos. Um personagem, Moon, se envolve em pequenos acidentes ou episódios desajeitados, e percebe-se que não enxerga muito bem. No fim, caminha sem medo de encontro ao pistoleiro que o procura para matá-lo. Ao levar o tiro, cai, o pistoleiro lhe pergunta: “Não viu que eu estava armado?”, e Moon responde: “Eu era cego.”
 
Bioy Casares, no volumoso diário em que registrou ao longo de décadas suas conversas com Borges (Borges, Buenos Aires, Ediciones Destino, 2006) registra alguns momentos dessa colaboração.


Em junho de 1967, anota pela primeira vez: “Fiquei retido em Buenos Aires pelo compromisso, com Borges, de escrever um argumento para Hugo Santiago Muchnik. Borges me comunicou, jubiloso, seu casamento em setembro próximo.” Seria o breve e mal-sucedido casamento do escritor com Elsa Astete Morán; Invasión foi criado pelos dois durante esse período. Trabalhavam na sua rotina habitual, em que duas ou três vezes por semana Borges ia jantar na casa de Bioy e sua esposa Silvina Ocampo, e depois os dois escreviam e conversavam até altas horas da noite.
 
O trabalho não avançava bem. Borges comenta em 13 de junho (trad. BT):
 
“Não é fácil pensar por encomenda. Quando alguém tem uma idéia, ela já lhe ocorre com sua própria expressão. Aqui, temos a idéia, mas não sabemos com que situação expressá-la. Era melhor que chamasse Ulisses Petit de Murat, que com duas patadas resolvia o assunto. Outro argumento possível seria a história de um escritor que recebe um cheque para escrever algo e depois vende a própria casa, para reembolsar o contratante; qualquer coisa, menos fazer esse trabalho.
 
Depois, diz:
 
Este é o trabalho mais subalterno que já fizemos. Episódios de Rocambole, embora eu não saiba muito bem como era o Rocambole
 
Depois comenta um telefonema que teve com o diretor, que lhe disse: “Ora, vocês já têm a espinha dorsal da narrativa.” E diz: “Está vendo como as pessoas são naturalmente metafóricas?”
 
Resolvem desistir, em 3 de julho:
 
Borges janta aqui em casa. Tomamos uma resolução heróica: não vamos escrever o argumento cinematográfico. O contrato a que renunciaremos, que não vamos mais assinar, é de trezentos mil pesos de adiantamento, antes da entrega; e mais setecentos mil em cotas posteriores, até a estréia do filme. Entregaremos o resumo do filme, em versão revisada, e nos veremos livres desse jugo.
 
Na noite de 8 de julho, Borges e o diretor vão jantar na casa de Bioy que depois registra:
 
Falei para Muchnik: “Tenho uma boa e uma má notícia. A boa é que terminamos o resumo do filme, e vamos entregá-lo para você usar como quiser. A má é que não vamos escrever o roteiro [“el libreto”]. Como um cavalheiro, como bom perdedor, Muchnik aceita minhas palavras.  Diz que estas dez páginas que já fizemos são o essencial e que graças a elas poderão seguir adiante com o filme. Depois do jantar nos reunimos no escritório e leio o resumo do argumento meu e de Borges. Muchnik se declara satisfeito, feliz, conversa um pouco sobre o filme, sugere detalhes e modificações lúcidas, e até um possível título: Invasión.
 
Mais tarde, Borges comenta: “É um cavalheiro. Não fraquejou em nenhum momento. Quando se vir sozinho no quarto, vai começar a chorar. Nós lhe entregamos um argumento que parece de Nick Carter ou de Nick Winter, e ele por outro lado nos presenteou uma cena digna de Henry James: o fervoroso admirador que descobre que seus ídolos têm pés de barro, que os seus colossos são chiquititos. Eu também acredito que um homem que sabe pintar é capaz de pintar um gato, se o encomendarem.


A verdade é que essa noite de diálogo franco fez bem ao projeto, porque nos dias seguintes Bioy registra vários momentos em que, livres da obrigação, eles voltam a trabalhar no argumento, melhorando-o aqui e ali. O momento é conturbado, porque Bioy teve que cancelar uma viagem à Europa, e Borges está sendo arrastado a um casamento onde as únicas pessoas otimistas quanto ao resultado são sua mãe e sua noiva.
 
As coisas fluem, no entanto, tanto que em 18 de julho Hugo Santiago Muchnik envia à dupla um novo contrato, e Borges comenta: “Que extraordinário é esse rapaz. Sua bondade é admirável.” E em 21 de julho Bioy registra: “Mandaram o cheque do adiantamento pelas onze páginas de Invasión”.
 
Não fica muito claro como o trabalho avançou daí em diante. Borges se casa com Elsa Estete em 5 de agosto (1967), e Bioy só volta a tocar no assunto em 17 de maio de 1968: “Hugo Santiago Muchnik vem tomar chá conosco. Começará a rodar Invasión no dia 27.” Em 14 de julho, leva aos dois amigos uma fita com a gravação da “Milonga de Manuel Flores”, cantada no filme:
 
MILONGA DE MANUEL FLORES
(J. L. Borges  / Anibal Troilo)
 
Para los otros, la fiebre
y el suor de la agonía,
y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
 
Manuel Flores va a morir
eso es moneda coriente
morir es una costumbre
que sabe tener la gente.
 
Mañana vendrá la bala
y con la bala, el olvido;
lo dijo el sabio Merlín:
“Morir es haber nascido.”
 
Y, sin embargo, mi cuesta
decir adiós a la vida
esa cosa tan de siempre
tan dulce y tan conocida.
 
Miro en el alba mi mano
miro en la mano las venas
con estrañeza las miro
como si fueran ajenas.
 
Cuantas cosas estos ojos
en su camiño habrán visto
quén sabe lo que verán
después que me juzgue Cristo.
 
Para los otros, la fiebre
y el suor de la agonía,
y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
 

O filme está em processo de conclusão, e os três começam a pensar num segundo filme (que depois resultará em Los Otros). Em novembro, já estão trabalhando no novo argumento, e Bioy registra o conselho dado por Muchnik: “Não se deve contar o filme através das conversas. É para escrevê-lo como se fosse um filme mudo, para que as legendas resumidas das cópias estrangeiras não deixem de fora nada importante”. Nesse mesmo mês dão por terminada a primeira versão do argumento de Los Otros.
 
O filme estréia apenas em 1969, e Bioy registra comentários seus e dos amigos: o som está muito alto, a fotografia está muito escura, os diálogos são meio recitados (pouco espontâneos), o final é inconclusivo... O apanhado habitual das opiniões pós-estréia.
 
Bioy vê o filme, com Muchnik, em 24 de junho de 1969, e explica a Borges sua avaliação com estas palavras, em 28 de junho:
 
Um dos principais defeitos do filme são os diálogos, demasiado concluídos, corretos e sentenciosos. No próximo filme, vais precisar te conter um pouco. Se não puderes, escreveremos do teu jeito e depois corrigimos, mas o corrigiremos de um modo contrário ao habitual: cortando e estropiando as frases que tenham saído muito perfeitas. Borges: Shaw demonstrou que o teatro tolera perfeitamente os longos monólogos... Bioy: Em primeiro lugar, cinema não é teatro; depois, boa parte dos monólogos de Shaw têm um tom redigido de modo menos impecável do que os teus. Borges: Parece que Shakespeare escrevia dois textos para cada peça: um para seu prazer de escritor, e outro para a representação, o acting text. Acredita-se que de "Macbeth" sobreviveu apenas o “acting text” e das demais peças o primeiro, o literário. Por isso "Macbeth" é a melhor das suas peças.




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