sábado, 30 de outubro de 2021

4759) A mescalina de Jean-Paul Sartre (30.10.2021)



 

Um dos livros mais conhecidos sobre a questão das drogas alucinógenas e das chamadas viagens psicodélicas é As Portas da Percepção (“The Doors of Perception”, 1954) de Aldous Huxley. Este livro geralmente é publicado em conjunto com O Céu e o Inferno (“Heaven and Hell”, 1956), que é uma espécie de continuação; são dois textos curtos, complementares.
 
A experiência de Huxley ficou famosa, em grande parte, pelo respeito de que o escritor era cercado em vida. Huxley vinha de uma família ilustre de cientistas e literatos, e era considerado um dos grandes intelectuais de seu tempo. Um romancista de idéias, algo bem típico da literatura inglesa; muito respeitado e muito acompanhado pela imprensa.
 
Muitos livros seus já foram traduzidos no Brasil: Contraponto (edição original, 1928), Sem Olhos em Gaza (1936), O Macaco e a Essência (1948), O Gênio e a Deusa (1955), A Ilha (1962), Também o Cisne Morre (1939), A Arte de Ver (1942) e outros.
 
Ele havia abordado a questão das drogas em seu romance clássico Admirável Mundo Novo (“Brave New World”, 1932) em que sugeriu que as sociedades totalitárias do futuro não recorreriam à violência (muito desgastante), mas às drogas apaziguadoras. Em resumo, ele propunha substituir o chicote pelo chiclete. Basta olhar em volta e a gente percebe que funciona. (Huxley imaginava a droga sendo produzida e administrada pelo Estado, e não previu o modo bestial como ela de fato se instalou entre nós; mas não se pode prever tudo.)
 
Huxley voltou ao tema depois, com o romance utópico A Ilha (“Island”, 1962), em que as drogas eram usadas de forma igualmente utópica, ou seja, como um caminho para a transcendência. Talvez seja aqui que ele aplicou de movo mais organizado as suas observações e conclusões após sua experiência com a mescalina, feita em maio de 1953 na sua casa na Califórnia (ele era um inglês “transplantado” para os EUA), na companhia de sua esposa Maria e do psiquiatra Humphry Osmond.
 
Essa experiência mostra bem o lado apolíneo de Huxley, um intelectual sério, metódico, humanista, de cabeça aberta a novas idéias mas sempre com uma tendência britânica ao formalismo social e à necessidade de tornar cada experiência pessoal sua algo útil para a comunidade acadêmica e para a espécie humana como um todo.
 
A experiência de Huxley foi precedida por tentativas de muitos outros escritores. O poeta Antonin Artaud provou a mescalina (e não só ela) nos tempos em que andou pelo México.
 
O escritor Henri Michaux foi outro que experimentou as viagens lisérgicas, e seus escritos deram origem a um filme importante, Images du Monde Visionnaire (1964, 34 minutos), dirigido por Eric Duvivier.  O filme procura reproduzir certos efeitos visuais subjetivos, o que não é nada fácil. (Lembro de um amigo cineclubista que dizia: “Infelizmente, você não pode fazer uma câmera sentir o efeito do LSD.”)
 
Michaux se decepcionou um pouco e disse que mesmo num filme com enormes recursos técnicos e muito dinheiro isso seria impossível:
 
As imagens teriam que ser mais deslumbrantes, mais instáveis, mais sutis, mais mutantes, mais intangíveis, mais trêmulas, mais atormentadas, mais retorcidas,  infinitamente mais carregadas, mais intensamente belas, mais aterrorizantemente coloridas, mais agressivas, mais idiotas, mais estranhas.
 
O filme pode ser visto aqui na UbuWeb (“o YouTube da Vanguarda”):
 
https://www.ubu.com/film/michaux_images.html
 
Uma experiência que acho importante para a literatura, mas que não é tão comentada quanto a de Huxley, é a de Jean-Paul Sartre, que com menos de 30 anos e ainda escritor inédito fez-se administrar mescalina em 1935, no centro hospitalar universitário Saint-Anne, onde o próprio Antonin Artaud foi paciente durante algum tempo.
 
Sartre tomou a mescalina na companhia de seu colega, o Dr. Daniel Lagache. (É curioso que, tal como fez Huxley, nos momentos de maior solenidade conceitual, o pessoal da ficção gosta de se fazer acompanhar do pessoal científico.) Na época ele estava estudando “a fenomenologia da imaginação”, e os efeitos da droga fizeram-se sentir durante meses. Ele experimentou surtos da “sugesta” (paranóia de estar sendo seguido, de ver monstros, etc.).
 
O pequeno mas útil Sartre: Vida e Obra (José Álvaro Editor, 1967) de Luiz Carlos Maciel refere esse episódio. Acho que foi também nele que vi uma menção curiosa: Sartre tinha alucinações em que via a cabeça gigantesca de um gorila espreitando-o na janela do apartamento onde morava. A ser verdade, imagino que se tratasse de um eco do filme King Kong (1933), sucesso daquela época. 
 
Esta experiência psicodélica coincidiu com os anos de elaboração de A Náusea (1938), seu livro de estréia. O livro tem como protagonista e narrador o escritor Antoine Roquentin, que, passando por uma crise, começa a ter a percepção muito intensa de que as coisas que o cercam existem independentemente de estarem sendo percebidas pela sua consciência. (A maioria das pessoas admite isso como verdadeiro, mas muito poucas o sentem.)
 
Roquentin caminha pela cidade e contempla os passeios dominicais dos pequeno-burgueses de Bouville, a cidadezinha onde está morando. Vê seus rituais pomposos, suas roupas, suas conversas banais, e tem a sensação apavorante de que tudo aquilo é um mundo de mentira, de cenografia, de encenação, uma espécie de “matrix” ou de “truman-show” cuja irrealidade só ele percebe.
 
Enraivecido, ele tem vontade de agarrá-los, sacudi-los, fazer com que percebam a Existência crua, muda, indiferente à consciência humana, por baixo de tudo aquilo. O impulso do personagem se alimenta da bad trip do autor:
 
E se alguma coisa acontecesse? (...) Pode ocorrer a qualquer momento, talvez agora mesmo; os presságios são visíveis. Por exemplo, um pai de família pode sair para passear e avistar na calçada alguma coisa como um trapo vermelho, sendo arrastado pelo vento. E quando esse trapo estiver bem próximo, ele vai ver que é um pedaço de carne apodrecida, suja de poeira, que avança aos rastos, aos pequenos pulos, um pedaço de carne torturada que rola pela sarjeta expelindo jatos de sangue. Ou então uma mãe irá olhar a bochecha de uma criança e dirá: “Mas o que é isto... uma espinha?”, e verá como aquela carne incha, e se racha, e se abre, e de dentro daquela fenda brota um olho, um olho que parece estar rindo. Ou então as pessoas sentirão algo que parece uma carícia roçando seus corpos, como aqueles juncos que na água dos rios acariciam os corpos dos nadadores. E perceberão que suas roupas são criaturas vivas. E outro indivíduo vai perceber que dentro de sua boca há uma coisa que a arranha. E se aproximará do espelho, abrirá a boca: sua língua terá se transformado numa enorme centopéia viva, que agita as patas e arranha o seu céu-da-boca. Ele tenta cuspi-la para fora, mas a centopéia é uma parte do seu corpo, e ele terá que arrancá-la com as próprias mãos. E começarão a surgir coisas por toda parte, coisas para as quais será preciso inventar novos nomes: o olho de pedra, o grande braço tricorne, o artelho-muleta, a aranha-mandíbula.
(Capítulo “Mardi à Bouville”, trad. BT)
 
A Náusea é geralmente considerada como um ataque violento à pequena burguesia francesa do entre-guerras, ou como uma ilustração romanceada de algumas proposições filosóficas dos existencialistas. Acho que tem também um lugar dentro da literatura sobre os efeitos das drogas e a exploração literária dos estados alterados da consciência. Um romance que ajudou a desbravar uma trilha por onde avançariam, anos depois, autores como William Burroughs, Hunter Thompson e Philip K. Dick.
 

 








quarta-feira, 27 de outubro de 2021

4758) Videogames, o cinema do futuro (27.20.2021)



Dias atrás tive um excelente papo online, de mais de duas horas, com o jornalista e professor Rômulo Azevedo e a jornalista e pesquisadora de cinema Maria do Rosário Caetano. Os dois são meus amigos de longa data, e foi um papo descontraído (e desconstruído) sobre a “Sétima Arte”.
 
Para quem se interessar, o link está aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=-ngq81cUEEk
 
No final, Rômulo contou uma das muitas histórias impagáveis da família dele (e de seu irmão gêmeo Romero). Os dois viraram cinéfilos, porque o avô e o pai eram donos de cinema em Santana do Ipanema, em Alagoas.
 
Quando o avô inaugurou o Cine Ipanema, naquele próspero município sertanejo, a população compareceu em massa na primeira noite. E na segunda. Só que na segunda Seu Zé em vez de entrar e ver o filme que trouxera, ficou fumando na calçada. Aproximou-se um conhecido:
 
– Oxente, Seu Zé!  O cinema é seu, e o senhor não vai ver o filme?
 
– Já vi ontem.
 
– Mas hoje o filme é diferente. Ontem foi um faroeste, hoje não é um filme policial?
 
– E então? Não é a mesma coisa? Uns caba correndo, dando tiros uns nos outros...
 
A história está completa aqui, no blog de Romero: https://memoriacineipanema.blogspot.com/
 
(Ser gêmeo tem essa vantagem – enquanto um fala, o outro escreve.)
 
A visão simplista do avô dos gêmeos sempre me pareceu hilária. Porque corresponde à visão primitiva que os próprios irmãos Lumière, inventores do cinema, tinham sobre essa maquininha de imaginar. Para eles, a máquina em si era o mais interessante. O fato de ela poder mostrar as pessoas correndo e dando-tiro umas nas outras. O assunto em si não tinha interesse nenhum.
 
Quem eram aquelas pessoas? Por que se perseguiam umas às outras? Por que davam tiros? Quem matou? Quem morreu? Ora, tanto faz.
 
O tempo mostrou como os Lumière estavam enganados. Tão enganados quanto Thomas Edison, seu concorrente na América. (Edison tinha inventado um cinema onde as pessoas botavam o olho no visor de uma maquininha e o filme passava lá dentro.) 

Edison não inventou o cinema, mas inventou o disco de vitrola – e achava que aquela voz gravada serviria para ajudar no estudo de idiomas. Não lhe passou pela cabeça que dali surgiria a indústria trilionária da canção popular.
 
É a velha história – a gente semeia vento e colhe energia eólica.
 
Existe algo parecido, agora em 2021, com a indústria dos videogames. Porque eu acho que o videogame está para o século 21 assim como o cinema estava para o século 20. A mesma explosão tecnológica, a mesma rapidíssima evolução ao longo das primeiras décadas. E a mesma incompreensão – porque os adultos pensam que aquilo é diversão de adolescentes, e porque os intelectuais pensam que é diversão de gente burra. Pode ser. Mas é a arte do futuro.
 
O escritor Tom Bissell, um aficionado, diz que a linguagem e a técnica do videogame evoluíram, no decorrer de vinte anos, “das inscrições rupestres à Capela Sistina”. Nem mesmo o cinema evoluiu tão depressa (em vinte anos, foi de Méliès a Griffith, o que não deixa de ser também uma façanha). 

 
Qual é o problema com os videogames? Para mim é simplesmente desinformação. E o desdém, o menosprezo, que essa desinformação acarreta.
 
As pessoas pensam que videogame é “uns caba correndo e dando tiro uns nos outros”. A mesma idéia que Seu Zé Francisco tinha sobre os filmes que exibia em seu cinema. Isso é muito irônico, quando pensamos que o mundo dos games é tão variado quanto o do cinema. Como explicar a uma pessoa que na vida só viu meia dúzia de “filmes de carro explodindo” que existem, além desses, filmes contando histórias de amor?  E filmes engraçados? E histórias de dramas familiares? Ela não vai acreditar.
 
Os videogames criaram um conjunto formidável de técnicas narrativas, todas elas baseadas na alternância entre “material pronto” e “material interativo”. A interatividade é o seu pulo-do-gato. O videogame é um filme semi-pronto onde você penetra, e onde quem faz o filme andar é você.
 
Todo mundo tem obrigação de gostar disso? Não. Assim como ninguém tem obrigação de gostar de Stanley Kubrick ou de Oscarito. O que acontece é que sempre tem gente pra gostar de alguma coisa, e também o fato incontestável de que a cada geração que surge o interesse pelas “Artes Interativas” é maior.

 
Aqui no blog já publiquei uma série de “sinopses fictícias” para tentar mostrar que variados universos literários e cinematográficos, já existentes, podem servir de inspiração para a criação de videogames. Com histórias onde possam aparecer eventualmente cenas de luta ou de batalha, mas que isso não impede a criação de tipos humanos, a profundidade psicológica, o retrato de um meio social...
 
O cinema fez esse trajeto. Por que o game não poderia fazê-lo?
 
CyBorges:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/02/2477-cyborges-game-1122011.html
 
Macondo, The Game:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/11/2727-macondo-game-30112011.html
 
Grande Sertão: The Game:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/04/2541-grande-sertao-game-2742011.html
 
…e outros. As possibilidades, como sempre, são infinitas.
 








domingo, 24 de outubro de 2021

4757) A Fundação de Isaac Asimov - 1 (24.10.2021)




Uma nova série de ficção científica está indo ao ar, em episódios semanais: Foundation (Apple TV). A criação é de David S. Goyer, responsável principal pelo projeto, com mais uma equipe de roteiristas e diretores. Os capítulos iniciais têm como base a série de histórias que o jovem Isaac Asimov publicou com vinte e poucos anos, inspirado em suas leituras da Declínio e Queda do Império Romano (1776-1789), de Edward Gibbon.
 
Li os romances originais de Asimov com menos de trinta anos, na tradução da Editora Hemus. Uma década depois, traduzi uma “prequel” para a Editora Record, Prelúdio da Fundação (1988).
 
Aqui, há uma descrição básica de como nove histórias curtas acabaram se transformando nos três volumes da chamada “Trilogia da Fundação”:
 
http://www.pannis.com/SFDG/TheFoundationTrilogy/theFoundationStories.html
 
É um épico gigantesco sobre a Via Láctea, povoada por nossa humanidade, num império com milhares de planetas habitados. Um jovem cientista, Hari Seldon, começou a desenvolver uma ciência que ele chamou de “Psico-História”, que avalia os comportamentos coletivos dos seres humanos e de suas sociedades. Ele prevê a queda do império, devido às suas contradições internas, e um intervalo de barbárie que tem chances de durar trinta mil anos; mas Seldon defende a criação de uma “Fundação” com o objetivo de diminuir essa “era das trevas” para mil anos apenas.
 
Asimov não era um grande estilista literário. Seu conhecimento de psicologia, embora muitas vezes seja perceptivo, não é páreo para o de outros autores. Nem falo dos clássicos do romance mainstream. Basta comparar Asimov com contemporâneos seus na FC, como Theodore Sturgeon ou Fritz Leiber. É uma pena, mas ele compensa isso com um conhecimento científico sólido, muita imaginação, vivacidade narrativa. E afinal de contas, criou a psicologia robótica, o que já é uma contribuição.
 
E no que se refere a Fundação... É como dizia um amigo meu, fã asimoviano de carteirinha: “Só peço aos que o criticam que me mostrem o que foi que eles próprios escreveram aos 22 anos.” 


(A galáxia da Fundação, em 
desenho de Isaac Asimov ]
 
Não vou discutir aqui nem os livros de Asimov (que não releio há mais de 30 anos) nem a fidelidade da adaptação. Quero comentar alguns aspectos dos primeiros episódios.
 
Em primeiro lugar, tem rolado uma discussão ferrenha sobre a questão identitária e de representatividade étnica, de gênero, etc.  Eu até entendo, porque um personagem que me era muito familiar, o andróide Eto Demerzel, me assustou ao aparecer agora como uma mulher. Vários personagens masculinos aparecem como mulheres; e vários personagens que todo mundo visualizou como homens brancos aparecem agora como homens negros.
 
Asimov era um judeu russo-novaiorquino, tinha uma certa mistura genética e cultural no seu background; mas o editor dessas histórias era John W. Campbell, para quem todo personagem de história de FC deveria ser anglo-saxão.


(John Campbell, desenho de Frank Kelly Freas)
 
Campbell, para quem a série “Fundação” foi escrita, foi um importante formatador temático e ideológico da FC norte-americana das décadas de 1930 e 1940. Como diz Frederik Pohl, outro jovem autor encorajado e publicado por Campbell: “Ele ficava sempre meio constrangido ao lidar com pessoas que não tinham tido o bom senso de nascerem homens, brancos e protestantes.” (The Way the Future Was, cap. 5)
 
É ainda Pohl, quem explica:
 
Não creio que em toda sua vida ele tenha se recusado a qualquer obrigação ou cortesia por motivos de raça ou de religião. Mas ele não sabia se seus leitores (que ele presumia serem rapazes brancos, anglo-saxões e protestantes) seriam tão tolerantes quanto ele. Assim, ele sugeria aos escritores judeus que escondessem esse defeito. Quando eu vendi a ele, como agente, a primeira história de Milt Rothman, John pôs as cartas na mesa. “Os melhores nomes,” declarou, “são escoceses ou ingleses. Isso vale para os personagens, e também para a assinatura dos autores. Não tem nada a ver com preconceito. É que eles soam melhor.” (Idem, trad. BT)
 
O depoimento de Pohl mostra bem a corda-bamba de pressões culturais no ambiente onde a FC norte-americana se desenvolveu: alguns quilômetros quadrados em Manhattan, na década de 1930, onde ficavam as redações das centenas de milhares de pulp magazines que toda semana adornavam as bancas de revistas do país inteiro.
 
Asimov era judeu por ascendência, mas sempre se afirmou ateu e cientista. Só usou pseudônimo quando escreveu livros juvenis (“Paul French”). Mas uma característica do seu estilo, muito presente em Foundation é a criação de nomes não-étnicos, não-nacionais. Os nomes dos personagens desse ciclo têm sonoridades vagamente familiares, mas propositalmente distorcidas: Hari Seldon, Eto Demerzel, Gaal Dornick, Salvor Hardin, Dors Venabili, Chetter Hummin...
 
São nomes que sugerem ter sofrido mutações ao longo do tempo (estamos a milhares de anos no futuro), mas que por isso mesmo perdem o vínculo nacionalista sugerido por Campbell. (Se Asimov quisesse homenagear seu editor, poderia talvez ter criado um personagem chamado “Jun Kembol”.)
 
Essa impessoalidade dos nomes próprio se casa bem com o modo como Asimov concebia seus personagens, e neste sentido a série da Apple não violenta seu estilo. Na literatura de Asimov, um personagem é como uma incógnita algébrica. Está ali para assumir valores e encaminhar funções. Na grande maioria dos casos, tanto faz se o personagem tem origem ocidental ou oriental, branca ou negra, se é macho, fêmea ou robô – e afinal, que significado terão estes conceitos daqui a 50 mil anos (época em que acontecem estas histórias)?
 
(continua em breve)
 

 
 






quinta-feira, 21 de outubro de 2021

4756) Borges e a erudição por brincadeira (21.10.2021)



(Borges, por Charles Burns)


Uma coisa que nem sempre se fala sobre a literatura de Jorge Luís Borges é o fato de que grande parte dela consiste numa espécie de jogo, de brincadeira, ou de diversão do autor com o tema que está tratando.
 
Borges consegue reunir em sua literatura dois aspectos que em geral se cancelam mutuamente: leituras amplas, e precisão de detalhe. Sempre leu, e sempre leu atentamente (é o que fica visível no que escreve). Sua erudição não foi adquirida a contragosto, como a de tantos diplomados. (Borges não tinha curso superior; tinha mais ou menos o equivalente ao nosso “2º. Grau completo”.)
 
Muitos leitores se tornam eruditos devido ao prazer de ler. Começam a curiosar pelo prazer de curiosar. Entram nos dicionários, nas enciclopédias e nos almanaques com o mesmo espírito distraído e atento de quem passeia, com as mãos nos bolsos, sem pressa, numa cidade desconhecida: “Onde será que vai dar aquele beco tão interessante?...”
 
Malba Tahan, um dos autores clássicos da juventude brasileira, tem um conto chamado “O Sábio da Efelogia” (em Maktub, 1935). Entre os hóspedes de um hotel, destaca-se um homem de origem russa, que foi prisioneiro político, e que apesar de muito reservado participa da conversa, muitas vezes dando mostras de uma vasta cultura, pois discorre com fluência sobre geografia, literatura, cultura oriental, astronomia...
 
O narrador se espanta com aquilo, e o homem responde com uma risada:
 
— Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro. — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei, ou melhor, nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra F. Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra F.

Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?

— Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela em que me puseram, deixou-me como herança os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia um pouco esse idioma, e como não tivesse em que me ocupar, li e reli centenas de vezes as páginas que possuía. Eram todas da letra F. Ao final, fiquei sabendo muita coisa; tudo, porém sem sair da letra F: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.

Há sem dúvida uma sincera ironia por parte do prof. Julio César Mello e Souza (o nome verdadeiro de “Malba Tahan”), que encerra o conto dizendo:
 
Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra F de uma velha enciclopédia.
 
Curiosamente, Borges recorre a atalhos semelhantes, o que em nada diminui a eficácia do seu processo criativo. (Se bem que não a originalidade – o que ele faz, muitos fazem também.) A coisa mais difícil que existe é ir a um dicionário ou uma enciclopédia para consultar um verbete e não dar uma olhada rápida nos verbetes que estão em volta. É claro!  Tudo é lucro. Tudo é estudo, e se for um estudo pelo mero prazer de “ficar sabendo”, melhor ainda.
 
John T. Irwin, no seu excelente estudo sobre Borges (The Mystery to a Solution: Poe, Borges and the Analytic Detective Story, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1994) bota seu chapéu de detetive e rastreia algumas leituras de Borges durante a composição de um dos seus melhores contos policiais, “A Morte e a Bússola” (1942).
 
No início deste conto ocorre o assassinato de um sábio judeu, o Dr. Yarmolinski, encontrado morto em seu quarto de hotel, em frente à suite ocupada pelo Tetrarca da Galiléia, que, como a polícia já sabia, portava consigo uma verdadeira fortuna em safiras. Yarmolinski é encontrado morto pelos criados, e na sua máquina de escrever portátil há uma folha com uma frase datilografada: A primeira letra do Nome foi articulada.
 
O “nome” (logo fica claro, por se tratar de estudioso do Talmude) é o nome sagrado de Deus entre os hebreus, o Tetragrammaton.
 
A investigação progride, por caminhos que não interessa espoliar aqui, por meio do inspetor Treviranus (representando a polícia oficial, de métodos rotineiros) e de Erik Lonnrot, o sherlock local. Eles chegam à conclusão de que três homens deverão ser assassinados pelo que parece ser uma conspiração antissemita. É um detalhe essencial do enredo, detalhe que se baseia numa dúvida: serão três homens assassinados, ou quatro?...
 
John T. Irwin não deixa passar despercebido o fato de que o nome do Inspetor Treviranus lembra a expressão latina tresviri capitales, trio de magistrados romanos cujo número César aumentou para quatro e depois reverteu para três.
 
Ele lembra que em 1929 Borges (aos 30 anos de idade) ganhou um prêmio literário e usou parte do dinheiro para comprar a coleção completa (em 2ª. mão) da Enciclopédia Britânica, 11ª. edição, a qual o acompanharia daí em diante.
 
Irwin observa, então, que nessa edição da Britannica estão praticamente lado a lado os verbetes “tresviri” e “Treviranus” (um naturalista alemão do século 18), bem pertinho dos verbetes “Tetrarca” e “Tetragrammaton” (The Mystery..., págs. 32-33).
 
Ou seja: Borges, ao consultar um verbete para confirmar algum detalhe, pegava em volta dele algumas dicas de tema, de inspiração, de nome próprio...
 
Surpreendente? Nem tanto, para quem é um “prestador de atenção”, que é como Jessier Quirino define um poeta. E para quem aprendeu a amar desde cedo as enciclopédias e a cornucópia de inspirações que elas nos fornecem, como Borges recorda, num dos seus diálogos com Osvaldo Ferrari:
 
Sem dúvida já lhe contei que eu costumava ir com meu pai à Biblioteca Nacional; eu era muito tímido – continuo sendo muito tímido -, não me atrevia a pedir livros, mas, nas prateleiras, havia obras de consulta, de onde eu pegava aleatoriamente, por exemplo, um volume da Enciclopédia Britânica. Um dia, tive muita sorte, porque peguei o volume DR, então pude ler uma excelente biografia de Dryden, sobre quem Eliot escreveu um livro. Depois, um extenso artigo sobre os drúidas, e outro sobre os drusos do Líbano.
 
Erudição? Talvez, mas uma erudição lúdica, movida pela curiosidade, e preservada pela memória afetiva, para vir ao socorro da imaginação no momento em que ela precisa. E com o auxílio da ordem alfabética – ou da “desordem alfabética”, como o próprio Borges a chamava, por ser um critério de organização que depois de aplicado embaralha tempos e espaços.
 









segunda-feira, 18 de outubro de 2021

4755) O feitiço mortal de Lovecraft (18.10.2021)


 

Feitiço Mortal (“Cast a Deadly Spell”, 1991) de Martin Campbell, com roteiro de Joseph Dougherty, é uma mistura excêntrica (e em muitos momentos bem sucedida) entre o filme policial hardboiled, o horror lovecraftiano e a comédia.
 
Dougherty concebeu de forma plausível (pelo menos no tom de gracejo que o filme mantém boa parte do tempo) uma Califórnia de 1948 em que os poderes maléficos das criaturas lovecraftianas existem e fazem parte do cotidiano das pessoas, como se Os Antigos, os deuses poderosos inventados por H. P. Lovecraft, estivessem à solta no mundo.
 
A premissa tem que ser implícita, porque nessa Los Angeles o detetive particular cínico e mambembe que circula resolvendo crimes chama-se Phil Lovecraft, e numa cidade onde todo mundo (inclusive a polícia e os gangsters) usa feitiços, encantamentos e invocações demoníacas como parte do cotidiano, ele é o único que não se interessa por isso.
 
É uma premissa curiosa e Feitiço Mortal extrai bons momentos de comicidade e surpresa dessa situação.


Fred Ward, que interpretou Henry Miller em Henry and June, é o detective Lovecraft, que, de acordo com o clichê básico do filme de detetive hardboiled, é contratado por um milionário para descobrir um livro raro que foi roubado de sua biblioteca, o Necronomicon.
 
Como o Necronomicon, aqui em nosso mundo, é uma invenção do escritor Lovecraft, cria-se aí uma situação próxima da sátira ou da paródia, e o filme adota essa cadência em muitos momentos, principalmente quando aparecem monstrinhos que, longe de evocarem o horror lovecraftiano, adotam o visual sessão-da-tarde dos Gremlins (1984) de Joe Dante.

 
A história vai se desenrolando de clichê em clichê: David Warner no papel do milionário ansioso para fazer um pacto com as criaturas das trevas, Clancy Brown como o ex-policial que virou gangster bem sucedido e dono de nightclub, Julianne Moore como a mulher-com-um-passado que oscila entre o detetive e o gangster, Alexandra Powers como a filha donzela mas sapeca do milionário.
 
O filme está aqui, em versão dublada:
 
https://www.youtube.com/watch?v=jLj6txDulCU


Há um trecho em que a dublagem brasileira some e surge uma dublagem em russo, mas isso passa logo e o filme volta ao normal. Ademais, os diálogos são irrelevantes, porque o problema acontece em cenas que são auto-explicativas. A primeira é a cena em que o detetive vai visitar o milionário e a filha adolescente deste tenta seduzi-lo (todo filme pós-Philip Marlowe se sente na obrigação de parodiar a cena inicial de
The Big Sleep), e a segunda é uma investigação de rotina no quarto do cara desaparecido.
 
Misturas de gêneros como neste caso têm mais importância quando as convenções de um gênero ajudam a ter uma visão diferente (e às vezes críticas) sobre as limitações, os clichês e as “facilidades” do outro gênero.
 
Quando a gente assiste, por exemplo, O Jovem Frankenstein de Mel Brooks, a comédia aparece para satirizar uma infinidade de clichês que a gente via nos filmes de terror sendo praticados com a maior solenidade, como se o diretor fosse um John Ford dirigindo um épico.
 
A comédia desmontava isso tudo: quando a corcunda do ajudante mudava de lugar, quando o cavalo relinchava toda vez que alguém dizia o nome da megera, quando o conceito de “monstro feito de partes anatômicas selecionadas” sugeria um detalhe fescenino.
 
Em Cast a Deadly Spell, numa cena típica de romance policial, o detetive entra às pressas numa delegacia, de madrugada, durante o famoso plantão noturno onde aparece “de-um-tudo”, mas em vez de travestis bêbadas e traficantes violentos ele encontra vampiras e lobisomens sendo levados para a cela por policiais entediados resmungando “que saco, noite de lua cheia é foda.” 



Todo clichê cinematográfico é um velho amigo, e é bom quanto podemos sorrir ao reencontrá-los. 
 
O fato de nesse universo os zumbis estarem sendo usados para trabalhar na construção covil também é um detalhe mostrado en passant, mas com um efeito legal.
 
E há um aspecto com uma sutileza adicional, que mereceria estar num filme com perfil semelhante mas menos brincalhão, porque toca numa questão ampla do gênero policial, do gênero fantástico. É a presença pervasiva da magia nesse mundo. Quando o milionário recebe o detetive em sua biblioteca, faz um exame rápido, e se maravilha:
 
– É verdade!... Sem símbolos, sem talismãs e sem fetiches, nada! Você realmente não usa nada, nenhuma mágica, quero dizer.
 
– Como falei ao telefone.
 
– Não acredita em magia?
 
– Acredito. Só que não uso.
 
– Por que?
 
– Razões pessoais.
 
– E elas são...?
 
– Pessoais.
 
É uma cena curta que parece tirada diretamente de uma aventura de Philip Marlowe. O detetive criado por Chandler é um homem pobre (40 dólares por dia, mais despesas), mas honesto. Todo mundo na Califórnia usa a corrupção e o roubo, e Marlowe não. Por que? Ele é santo, é religioso, é um cara moralmente superior? Nem tanto, porque Marlowe mente, engana, suborna, ameaça... Mas é honesto. Por que? Razões pessoais.
 
Usar a magia é um pouco como usar a desonestidade, é um pouco como trapacear, violar as leis (no caso, as leis da Natureza) em benefício próprio. Os detetives do mundo hardboiled, de um modo geral, mantêm-se honestos, ou pelo menos mais honestos do que os políticos, os banqueiros, os industriais e os policiais com quem convivem (para não falar nas cantoras de cabaré que casam com milionários). Existe uma “mágica” especial no seu mundo, mas eles não usam.
 
Feitiço Mortal tem momentos sérios, momentos divertidos onde existe essa superposição de clichês vistos com “lentes de diferentes cores”, momentos meio bobinhos quando alguém vai enfrentar a Besta do Apocalipse e quem aparece é um Gremlin do Projac. O elenco se sai bastante bem da brincadeira, sem a levar muito a sério mas todos dando a impressão de que estão se divertindo e não apenas cumprindo cronograma.
 
 
 







sexta-feira, 15 de outubro de 2021

4754) O poeta que não conhece o mar (15.10.2021)



Preparando uma palestra sobre Jorge Luís Borges, fui bater numa das ótimas coletâneas de diálogos que ele manteve com Osvaldo Ferrari (Sobre os Sonhos e outros diálogos, São Paulo, Ed. Hedra, 2009; são três volumes, sendo os outros dois intitulados Sobre a Amizade... e Sobre a Filosofia...).
 
Falei sobre essa série aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/06/2184-conversacoes-de-borges-932010.html
 
Na página 77 desse livro, os interlocutores estão falando sobre o mar na literatura.
 
OF – O mar.
 
JLB – O mar, sim, que está presente na literatura portuguesa e ausente na literatura espanhola. Por exemplo, o Quixote é um livro...
 
OF – De planície.
 
JLB – Sim, por outro lado os portugueses, os escandinavos, os franceses – por que não? – depois de Hugo, sentem o mar. E Baudelaire também sentiu e, evidentemente, o autor de O barco bêbado, Rimbaud, sentiu o mar, que nunca havia visto. Mas talvez não seja necessário ver o mar: Coleridge escreveu sua Balada do velho marinheiro sem ter visto o mar, e quando o viu sentiu-se defraudado.
 
Ora, alguns dias atrás eu publiquei aqui no blog um depoimento bem humorado de Ursula LeGuin, onde ela afirmava não conhecer nada sobre barcos, nunca ter navegado, e mesmo assim ter escrito viagens marítimas extremamente vívidas em seus livros da série “Earthsea” (“Terramar”), principalmente no terceiro volume, A Praia Mais Distante (“The Farthest Shore”). 

Ou seja: LeGuin reafirma que boas leituras e boa imaginação são o bastante para que um escritor possa falar sobre uma atividade complexa que nunca experimentou.
 
No caso de Rimbaud e de Coleridge, fiquei com a pulga atrás da orelha. Acreditei em Borges quando ele disse que Rimbaud nunca havia visto o mar (viu depois de abandonar a poesia, quando cruzou algumas vezes o Mediterrâneo, fazendo o trajeto Marselha/África). De onde teria tirado as imagens e a inspiração para o poema em que o Barco conta, na primeira pessoa, suas aventuras e suas visões delirantes pelos oceanos afora?
 
Borges não citaria em vão esses dois poetas. Em “Pierre Menard, autor do Quixote” (em Ficções, 1944), ele faz Menard comparar justamente esses dois poemas com o livro que assume como projeto:
 
Não posso imaginar [diz Menard] o universo sem a interjeição de Edgar Allan Poe: “Ah, bear in mind this garden was enchanted!” ou sem o “Bateau Ivre” ou o “Ancient Mariner”; sei-me contudo capaz de imaginá-lo sem o “Quixote”.




Fui me socorrer de um dos meus livrinhos preferidos, Le Bateu Ivre – Análise e Interpretação de Augusto Meyer (Rio: Livraria São José, 1955, 96 págs.).
 
Nele, o poeta traduz e analisa “O barco bêbado”, indica suas fontes de inspiração, examina suas inovações vocabulares, cita precursores e influências... Enfim, é um livrinho que me acompanha desde os vinte anos.
 
Rimbaud nasceu em outubro de 1854, e escreveu “Le Bateau Ivre” aos dezesseis anos, influenciado pela leitura dos romances marítimos de Julio Verne. Augusto Meyer rastreia outras influências, como a do Magasin Pittoresque, cuja coleção o poeta provavelmente consultou quando ficou hospedado na casa do seu professor e amigo Georges Izambard.
 
Para conhecer melhor a vida do poeta, há no YouTube um excelente documentário de duas horas, dirigido por Richard Dindo, com legendas em português, com atores e atrizes recitando trechos das cartas e depoimentos dos parentes e amigos de Rimbaud, além dos próprios versos dele:

https://www.youtube.com/watch?v=8X4-9pepY_A&t=360s
 
À página 20 de seu livro, Augusto Meyer comenta:
 
O tema aparente de Le Bateau Ivre é o maior lugar-comum deste mundo, é o “infecundo, o amargo mar”; tema retórico-poético, sem dúvida, para um adolescente que nunca arredara pé da terra firme e até então, setembro de 1871, conhecia quando muito o mar de Homero e Virgílio, de Hugo e Baudelaire; navegara também decerto nas coleções de viagens e aventuras, em Fenimore Cooper e no Robinson Français.
 
Não chega a ser uma prova conclusiva, mas tudo indica de fato que Rimbaud, ao produzir seu poema, nunca tinha ido muito além de sua cidadezinha natal de Charleville (que é mostrada de maneira vívida no documentário citado acima).
 
E quanto a Coleridge?
 
Samuel Taylor Coleridge, um dos grandes poetas românticos ingleses, nasceu em outubro de 1772 e escreveu The Rime of the Ancient Mariner, um dos seus poemas mais visionários, entre 1797 e 1798. A primeira publicação dele foi em 1798, como parte do volume das Lyrical Ballads


É a história das desventuras por que passou um marinheiro com seu barco, atravessando cenários aterrorizantes e fantasmagóricos pelo mar afora. Já escrevi a respeito desse poema e de sua excelente edição brasileira, pela Ateliê Editorial, com tradução de Alípio Correia de Franca Neto, aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/02/0831-balada-do-velho-marinheiro.html
 
Coleridge teria, portanto, cerca de 25-26 anos quando compôs este poema, um dos seus textos mais famosos. Que experiência de mar teria ele, então?
 
A “Balada do Velho Marinheiro” é, bem na linha dos românticos ingleses de então, uma obra de imaginação, em que as visões íntimas do poeta se sobrepõem às coisas que ele vê com os próprios olhos.
 
Sim, mas Coleridge já tinha feito uma viagem marítima, ou não? Afinal, ele nasceu e passou a infância da região de Devon, no sudoeste da Inglaterra, não muito distante do litoral. Havia muito mais chances de que ele conhecesse o mar do que no caso de Rimbaud.
 
Ao que parece ele o conhecia como eu conheço: de olhar a uma prudente distância. Acabei recorrendo a um livro cheio de informações preciosas e comentários oportunos sobre Coleridge e sua poesia: The Road to Xanadu – A Study in the Ways of the Imagination, de John Livingston Lowes (Londres: Picador, 1978 – edição original, 1927).


À página 61, Lowes comenta (trad. BT):
 
Há duas coisas que não devemos perder de vista à medida que avançamos. Foi somente seis meses após ter escrito “A Balada do Velho Marinheiro” que Coleridge, pela primeira vez, embarcou num navio para uma viagem marítima, e mesmo assim apenas para percorrer o trajeto entre Yarmouth e Cuxhaven. Ele está descrevendo [no poema] coisas que poderia conhecer apenas através de livros ou de histórias contadas sobre o mar. Ele nunca tinha visto nada daquilo. [ênfase no original] Este é o primeiro fato que devemos ter em mente. O segundo é que ele tinha visto aquilo tudo. [idem] E neste paradoxo encontra-se a pista para mais de um dos nossos enigmas.
 
A literatura imaginativa repousa nessa dualidade, nessa capacidade de ver o que não foi visto, de ver com a imaginação e não com os olhos, de ser capaz de construir mentalmente uma sucessão aparentemente inesgotável de imagens complexas que são produto apenas da imaginação, e não têm correspondente no mundo real.
 
Os poetas românticos ingleses (Coleridge, Wordsworth, Byron, Shelley) cultivavam essa capacidade de visualizar o inexistente, que não é diferente do que é feito por Ursula LeGuin ou J. R. R. Tolkien ou George R. R. Martin ou qualquer escritor de fantasia contemporânea.
 
Coleridge era, a julgar por suas cartas e seus diálogos, um indivíduo de memória visual extremamente aguda, e podemos dizer também que de extrema imaginação visual. O volume onde o poema do “Marinheiro” apareceu, Lyrical Ballads, é o mesmo onde o poeta usou pela primeira vez a expressão, hoje corrente, de “voluntária suspensão da descrença” (“willing suspension of disbelief”), como uma atitude necessária a quem lê uma obra de literatura imaginativa.
 
O fato de Rimbaud ou Coleridge escreverem sobre viagens marítimas sem ter tomado parte nelas não é mais surpreendente do que o fato de Gastão Cruls ter escrito A Amazônia Misteriosa (1925) antes de conhecer a floresta, ou de Ray Bradbury conceber suas Crônicas Marcianas (1950) sem ter pisado no planeta Marte.
 
 
 
 




terça-feira, 12 de outubro de 2021

4753) A invasão de Jorge Luís Borges (12.10.2021)



No final da década de 1960, Borges era considerado por muita gente “o homem mais famoso da Argentina”. Seus livros, já traduzidos e premiados na Europa, começavam a sair em inglês nos EUA, e sucediam-se as suas viagens para falar em universidades norte-americanas, como quando ministrou em Harvard a famosa série de “Conferências Norton” sobre literatura, entre outubro de 1967 e abril de 1968.   
 
Data desse período também uma curiosa contribuição sua para o cinema argentino, colaborando (junto com Alfredo Bioy Casares) no argumento e roteiro do filme Invasión (1969), dirigido e produzido por Hugo Santiago.

 
O filme tem cópia no YouTube, com áudio original em espanhol e legendas em inglês:
https://www.youtube.com/watch?v=TkZp39MEDGA&t=1139s
 
É uma alegoria política, ambientada na cidade fictícia de “Aquilea”, em 1957. Isso lhe dá um tom levemente fantástico, como ocorre com toda história onde um país imaginário serve como uma transparente metáfora do país onde o filme está sendo feito.
 
Esse recurso coloca Invasión no mesmo plano de Terra em Transe (1966) de Glauber Rocha, com suas locações imaginárias de “Eldorado” e “Alecrim”, ou mesmo o “Alphaville” (1965) de Godard, que cenograficamente e dramaturgicamente é uma mera alegoria da Paris onde foi rodado. Também tem algo de outro filme brasileiro, O Quinto Poder (1962), de Alberto Pieralisi e Carlos Pedregal, um thriller político futurista. 
 
No livro Do Cinema (Lisboa: Horizonte, 1983), em que Edgardo Cozarinsky compilou textos de Borges sobre cinema, aparece o resumo pouco esclarecedor:
 
INVASIÓN – Invasión é a lenda de uma cidade, imaginária ou real, sitiada por fortes inimigos e defendida por alguns homens que por acaso não são heróis. Lutam até o fim, sem suspeitar de que a sua batalha é infinita.
 
“Aquilea” é uma cidade cercada e a ponto de ser invadida; na trama, nem sempre muito clara, acompanhamos grupos antagônicos de conspiradores, tanto os que querem evitar a invasão quanto os que desejam favorecê-la. Ambos se comportam da mesma maneira sorrateira, com encontros clandestinos, mensagens secretas, atentados súbitos, sequestros... E tudo isto acontece no meio de uma população alheia, indiferente, opaca.

 
Vamos decifrando aos poucos quem é quem, e o que está pretendendo, porque os diálogos são lacônicos (e em muitos deles dá para sentir o dedo de Jorge Luís Borges, o eternos temas da valentia masculina que ele tanto cultivou). Um personagem, ao se oferecer para uma missão arriscada, diz: “Se alguém há de morrer, o mais indicado sou eu. Vocês podem oferecer sua valentia; eu só posso oferecer minha morte.” É o tema do medroso que se supera e se sacrifica, também tão caro a Guimarães Rosa.
 
O que envolve e segura o espectador é a narrativa visual, que é cheia de energia, bem montada, bem fotografada, com personagens sempre tensos e sempre na iminência de um desfecho trágico. O filme tem uma fotografia em preto-e-branco de Ricardo Aronovich, que trabalhou também no Cinema Novo brasileiro. É uma fotografia expressionista, com claro-escuro acentuado, que lembra clássicos como O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed ou O Processo (1962) de Orson Welles.   

 
Aos poucos os conspiradores anti-invasão vão tendo seus planos sabotados, são mortos de um em um pelos inimigos, e percebem que em breve Aquilea será invadida por terra, mar e ar. Seu líder, Don Porfírio (ao que se diz, inspirado em Macedonio Fernándes, mentor e amigo de Borges) vê seus recursos minguando cada vez mais. O final, contudo, abre a possibilidade de uma nova célula de resistência.
 
Para mim é muito claro que o filme serve, entre outras coisas, como uma celebração da resistência armada dos jovens esquerdistas, tal como ocorria com Terra em Transe. É curioso que um autor politicamente conservador como Borges tenha participado (em alguns momentos, até com entusiasmo) de um projeto como este, mas dá para entender. Em momento algum se fala da Argentina; o espaço geográfico e político do filme se situa num limbo alegórico, e posso perfeitamente imaginar Borges vendo ali apenas a aventura de um grupo de homens valentes, de revólver em punho, enfrentando forças muito mais numerosas e mais bem aparelhadas.
 
Há outros toques autobiográficos. Um personagem, Moon, se envolve em pequenos acidentes ou episódios desajeitados, e percebe-se que não enxerga muito bem. No fim, caminha sem medo de encontro ao pistoleiro que o procura para matá-lo. Ao levar o tiro, cai, o pistoleiro lhe pergunta: “Não viu que eu estava armado?”, e Moon responde: “Eu era cego.”
 
Bioy Casares, no volumoso diário em que registrou ao longo de décadas suas conversas com Borges (Borges, Buenos Aires, Ediciones Destino, 2006) registra alguns momentos dessa colaboração.


Em junho de 1967, anota pela primeira vez: “Fiquei retido em Buenos Aires pelo compromisso, com Borges, de escrever um argumento para Hugo Santiago Muchnik. Borges me comunicou, jubiloso, seu casamento em setembro próximo.” Seria o breve e mal-sucedido casamento do escritor com Elsa Astete Morán; Invasión foi criado pelos dois durante esse período. Trabalhavam na sua rotina habitual, em que duas ou três vezes por semana Borges ia jantar na casa de Bioy e sua esposa Silvina Ocampo, e depois os dois escreviam e conversavam até altas horas da noite.
 
O trabalho não avançava bem. Borges comenta em 13 de junho (trad. BT):
 
“Não é fácil pensar por encomenda. Quando alguém tem uma idéia, ela já lhe ocorre com sua própria expressão. Aqui, temos a idéia, mas não sabemos com que situação expressá-la. Era melhor que chamasse Ulisses Petit de Murat, que com duas patadas resolvia o assunto. Outro argumento possível seria a história de um escritor que recebe um cheque para escrever algo e depois vende a própria casa, para reembolsar o contratante; qualquer coisa, menos fazer esse trabalho.
 
Depois, diz:
 
Este é o trabalho mais subalterno que já fizemos. Episódios de Rocambole, embora eu não saiba muito bem como era o Rocambole
 
Depois comenta um telefonema que teve com o diretor, que lhe disse: “Ora, vocês já têm a espinha dorsal da narrativa.” E diz: “Está vendo como as pessoas são naturalmente metafóricas?”
 
Resolvem desistir, em 3 de julho:
 
Borges janta aqui em casa. Tomamos uma resolução heróica: não vamos escrever o argumento cinematográfico. O contrato a que renunciaremos, que não vamos mais assinar, é de trezentos mil pesos de adiantamento, antes da entrega; e mais setecentos mil em cotas posteriores, até a estréia do filme. Entregaremos o resumo do filme, em versão revisada, e nos veremos livres desse jugo.
 
Na noite de 8 de julho, Borges e o diretor vão jantar na casa de Bioy que depois registra:
 
Falei para Muchnik: “Tenho uma boa e uma má notícia. A boa é que terminamos o resumo do filme, e vamos entregá-lo para você usar como quiser. A má é que não vamos escrever o roteiro [“el libreto”]. Como um cavalheiro, como bom perdedor, Muchnik aceita minhas palavras.  Diz que estas dez páginas que já fizemos são o essencial e que graças a elas poderão seguir adiante com o filme. Depois do jantar nos reunimos no escritório e leio o resumo do argumento meu e de Borges. Muchnik se declara satisfeito, feliz, conversa um pouco sobre o filme, sugere detalhes e modificações lúcidas, e até um possível título: Invasión.
 
Mais tarde, Borges comenta: “É um cavalheiro. Não fraquejou em nenhum momento. Quando se vir sozinho no quarto, vai começar a chorar. Nós lhe entregamos um argumento que parece de Nick Carter ou de Nick Winter, e ele por outro lado nos presenteou uma cena digna de Henry James: o fervoroso admirador que descobre que seus ídolos têm pés de barro, que os seus colossos são chiquititos. Eu também acredito que um homem que sabe pintar é capaz de pintar um gato, se o encomendarem.


A verdade é que essa noite de diálogo franco fez bem ao projeto, porque nos dias seguintes Bioy registra vários momentos em que, livres da obrigação, eles voltam a trabalhar no argumento, melhorando-o aqui e ali. O momento é conturbado, porque Bioy teve que cancelar uma viagem à Europa, e Borges está sendo arrastado a um casamento onde as únicas pessoas otimistas quanto ao resultado são sua mãe e sua noiva.
 
As coisas fluem, no entanto, tanto que em 18 de julho Hugo Santiago Muchnik envia à dupla um novo contrato, e Borges comenta: “Que extraordinário é esse rapaz. Sua bondade é admirável.” E em 21 de julho Bioy registra: “Mandaram o cheque do adiantamento pelas onze páginas de Invasión”.
 
Não fica muito claro como o trabalho avançou daí em diante. Borges se casa com Elsa Estete em 5 de agosto (1967), e Bioy só volta a tocar no assunto em 17 de maio de 1968: “Hugo Santiago Muchnik vem tomar chá conosco. Começará a rodar Invasión no dia 27.” Em 14 de julho, leva aos dois amigos uma fita com a gravação da “Milonga de Manuel Flores”, cantada no filme:
 
MILONGA DE MANUEL FLORES
(J. L. Borges  / Anibal Troilo)
 
Para los otros, la fiebre
y el suor de la agonía,
y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
 
Manuel Flores va a morir
eso es moneda coriente
morir es una costumbre
que sabe tener la gente.
 
Mañana vendrá la bala
y con la bala, el olvido;
lo dijo el sabio Merlín:
“Morir es haber nascido.”
 
Y, sin embargo, mi cuesta
decir adiós a la vida
esa cosa tan de siempre
tan dulce y tan conocida.
 
Miro en el alba mi mano
miro en la mano las venas
con estrañeza las miro
como si fueran ajenas.
 
Cuantas cosas estos ojos
en su camiño habrán visto
quén sabe lo que verán
después que me juzgue Cristo.
 
Para los otros, la fiebre
y el suor de la agonía,
y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
 

O filme está em processo de conclusão, e os três começam a pensar num segundo filme (que depois resultará em Los Otros). Em novembro, já estão trabalhando no novo argumento, e Bioy registra o conselho dado por Muchnik: “Não se deve contar o filme através das conversas. É para escrevê-lo como se fosse um filme mudo, para que as legendas resumidas das cópias estrangeiras não deixem de fora nada importante”. Nesse mesmo mês dão por terminada a primeira versão do argumento de Los Otros.
 
O filme estréia apenas em 1969, e Bioy registra comentários seus e dos amigos: o som está muito alto, a fotografia está muito escura, os diálogos são meio recitados (pouco espontâneos), o final é inconclusivo... O apanhado habitual das opiniões pós-estréia.
 
Bioy vê o filme, com Muchnik, em 24 de junho de 1969, e explica a Borges sua avaliação com estas palavras, em 28 de junho:
 
Um dos principais defeitos do filme são os diálogos, demasiado concluídos, corretos e sentenciosos. No próximo filme, vais precisar te conter um pouco. Se não puderes, escreveremos do teu jeito e depois corrigimos, mas o corrigiremos de um modo contrário ao habitual: cortando e estropiando as frases que tenham saído muito perfeitas. Borges: Shaw demonstrou que o teatro tolera perfeitamente os longos monólogos... Bioy: Em primeiro lugar, cinema não é teatro; depois, boa parte dos monólogos de Shaw têm um tom redigido de modo menos impecável do que os teus. Borges: Parece que Shakespeare escrevia dois textos para cada peça: um para seu prazer de escritor, e outro para a representação, o acting text. Acredita-se que de "Macbeth" sobreviveu apenas o “acting text” e das demais peças o primeiro, o literário. Por isso "Macbeth" é a melhor das suas peças.