No final da década de 1960, Borges era considerado por
muita gente “o homem mais famoso da Argentina”. Seus livros, já traduzidos e
premiados na Europa, começavam a sair em inglês nos EUA, e sucediam-se as suas
viagens para falar em universidades norte-americanas, como quando ministrou em
Harvard a famosa série de “Conferências Norton” sobre literatura, entre outubro
de 1967 e abril de 1968.
Data desse período também uma curiosa contribuição sua
para o cinema argentino, colaborando (junto com Alfredo Bioy Casares) no
argumento e roteiro do filme Invasión
(1969), dirigido e produzido por Hugo Santiago.
O filme tem cópia no YouTube, com áudio original em
espanhol e legendas em inglês:
https://www.youtube.com/watch?v=TkZp39MEDGA&t=1139s
É uma alegoria política, ambientada na cidade fictícia de
“Aquilea”, em 1957. Isso lhe dá um tom levemente fantástico, como ocorre com
toda história onde um país imaginário serve como uma transparente metáfora do
país onde o filme está sendo feito.
Esse recurso coloca Invasión
no mesmo plano de Terra em Transe
(1966) de Glauber Rocha, com suas locações imaginárias de “Eldorado” e
“Alecrim”, ou mesmo o “Alphaville” (1965) de Godard, que cenograficamente e
dramaturgicamente é uma mera alegoria da Paris onde foi rodado. Também tem algo de outro filme brasileiro, O Quinto Poder (1962), de Alberto Pieralisi e Carlos Pedregal, um thriller político futurista.
No livro Do Cinema (Lisboa:
Horizonte, 1983), em que Edgardo Cozarinsky compilou textos de Borges sobre
cinema, aparece o resumo pouco esclarecedor:
INVASIÓN – Invasión é a lenda de uma cidade, imaginária ou real,
sitiada por fortes inimigos e defendida por alguns homens que por acaso não são
heróis. Lutam até o fim, sem suspeitar de que a sua batalha é infinita.
“Aquilea” é uma cidade cercada e a ponto de ser invadida;
na trama, nem sempre muito clara, acompanhamos grupos antagônicos de
conspiradores, tanto os que querem evitar a invasão quanto os que desejam
favorecê-la. Ambos se comportam da mesma maneira sorrateira, com encontros
clandestinos, mensagens secretas, atentados súbitos, sequestros... E tudo isto
acontece no meio de uma população alheia, indiferente, opaca.
Vamos decifrando aos poucos quem é quem, e o que está
pretendendo, porque os diálogos são lacônicos (e em muitos deles dá para sentir
o dedo de Jorge Luís Borges, o eternos temas da valentia masculina que ele
tanto cultivou). Um personagem, ao se oferecer para uma missão arriscada, diz:
“Se alguém há de morrer, o mais indicado sou eu. Vocês podem oferecer sua valentia;
eu só posso oferecer minha morte.” É o tema do medroso que se supera e se
sacrifica, também tão caro a Guimarães Rosa.
O que envolve e segura o espectador é a narrativa visual,
que é cheia de energia, bem montada, bem fotografada, com personagens sempre
tensos e sempre na iminência de um desfecho trágico. O filme tem uma fotografia
em preto-e-branco de Ricardo Aronovich, que trabalhou também no Cinema Novo
brasileiro. É uma fotografia expressionista, com claro-escuro acentuado, que
lembra clássicos como O Terceiro Homem (1949)
de Carol Reed ou O Processo (1962) de
Orson Welles.
Aos poucos os conspiradores anti-invasão vão tendo seus
planos sabotados, são mortos de um em um pelos inimigos, e percebem que em breve Aquilea será
invadida por terra, mar e ar. Seu líder, Don Porfírio (ao que se diz, inspirado
em Macedonio Fernándes, mentor e amigo de Borges) vê seus recursos minguando
cada vez mais. O final, contudo, abre a possibilidade de uma nova célula de
resistência.
Para mim é muito claro que o filme serve, entre outras
coisas, como uma celebração da resistência armada dos jovens esquerdistas, tal
como ocorria com Terra em Transe. É
curioso que um autor politicamente conservador como Borges tenha participado
(em alguns momentos, até com entusiasmo) de um projeto como este, mas dá para
entender. Em momento algum se fala da Argentina; o espaço geográfico e político
do filme se situa num limbo alegórico, e posso perfeitamente imaginar Borges
vendo ali apenas a aventura de um grupo de homens valentes, de revólver em
punho, enfrentando forças muito mais numerosas e mais bem aparelhadas.
Há outros toques autobiográficos. Um personagem, Moon, se
envolve em pequenos acidentes ou episódios desajeitados, e percebe-se que não
enxerga muito bem. No fim, caminha sem medo de encontro ao pistoleiro que o
procura para matá-lo. Ao levar o tiro, cai, o pistoleiro lhe pergunta: “Não viu
que eu estava armado?”, e Moon responde: “Eu era cego.”
Bioy Casares, no volumoso diário em que registrou ao
longo de décadas suas conversas com Borges (Borges,
Buenos Aires, Ediciones Destino, 2006) registra alguns momentos dessa
colaboração.
Em junho de 1967, anota pela primeira vez: “Fiquei retido em Buenos Aires pelo
compromisso, com Borges, de escrever um argumento para Hugo Santiago Muchnik.
Borges me comunicou, jubiloso, seu casamento em setembro próximo.” Seria o
breve e mal-sucedido casamento do escritor com Elsa Astete Morán; Invasión foi criado pelos dois durante
esse período. Trabalhavam na sua rotina habitual, em que duas ou três vezes por
semana Borges ia jantar na casa de Bioy e sua esposa Silvina Ocampo, e depois
os dois escreviam e conversavam até altas horas da noite.
O trabalho não avançava bem. Borges comenta em 13 de junho
(trad. BT):
“Não é fácil pensar por encomenda. Quando alguém tem uma idéia, ela já
lhe ocorre com sua própria expressão. Aqui, temos a idéia, mas não sabemos com
que situação expressá-la. Era melhor que chamasse Ulisses Petit de Murat, que
com duas patadas resolvia o assunto. Outro argumento possível seria a história
de um escritor que recebe um cheque para escrever algo e depois vende a própria
casa, para reembolsar o contratante; qualquer coisa, menos fazer esse trabalho.
Depois, diz:
Este é o trabalho mais subalterno que já fizemos. Episódios de
Rocambole, embora eu não saiba muito bem como era o Rocambole
Depois comenta um telefonema que teve com o diretor, que
lhe disse: “Ora, vocês já têm a espinha
dorsal da narrativa.” E diz: “Está
vendo como as pessoas são naturalmente metafóricas?”
Resolvem desistir, em 3 de julho:
Borges janta aqui em casa. Tomamos uma resolução heróica: não vamos
escrever o argumento cinematográfico. O contrato a que renunciaremos, que não
vamos mais assinar, é de trezentos mil pesos de adiantamento, antes da entrega;
e mais setecentos mil em cotas posteriores, até a estréia do filme.
Entregaremos o resumo do filme, em versão revisada, e nos veremos livres desse
jugo.
Na noite de 8 de julho, Borges e o diretor vão jantar na
casa de Bioy que depois registra:
Falei para Muchnik: “Tenho uma boa e uma má notícia. A boa é que
terminamos o resumo do filme, e vamos entregá-lo para você usar como quiser. A
má é que não vamos escrever o roteiro [“el libreto”]. Como um cavalheiro, como bom perdedor, Muchnik aceita minhas palavras. Diz que estas dez páginas que já fizemos são o
essencial e que graças a elas poderão seguir adiante com o filme. Depois do
jantar nos reunimos no escritório e leio o resumo do argumento meu e de Borges.
Muchnik se declara satisfeito, feliz, conversa um pouco sobre o filme, sugere
detalhes e modificações lúcidas, e até um possível título: Invasión.
Mais tarde, Borges comenta: “É um cavalheiro. Não fraquejou em nenhum
momento. Quando se vir sozinho no quarto, vai começar a chorar. Nós lhe
entregamos um argumento que parece de Nick Carter ou de Nick Winter, e ele por
outro lado nos presenteou uma cena digna de Henry James: o fervoroso admirador
que descobre que seus ídolos têm pés de barro, que os seus colossos são chiquititos.
Eu também acredito que um homem que sabe pintar é capaz de pintar um gato, se o
encomendarem.
A verdade é que essa noite de diálogo franco fez bem ao
projeto, porque nos dias seguintes Bioy registra vários momentos em que, livres
da obrigação, eles voltam a trabalhar no argumento, melhorando-o aqui e ali. O
momento é conturbado, porque Bioy teve que cancelar uma viagem à Europa, e
Borges está sendo arrastado a um casamento onde as únicas pessoas otimistas
quanto ao resultado são sua mãe e sua noiva.
As coisas fluem, no entanto, tanto que em 18 de julho
Hugo Santiago Muchnik envia à dupla um novo contrato, e Borges comenta: “Que extraordinário é esse rapaz. Sua
bondade é admirável.” E em 21 de julho Bioy registra: “Mandaram o cheque do adiantamento pelas onze páginas de Invasión”.
Não fica muito claro como o trabalho avançou daí em
diante. Borges se casa com Elsa Estete em 5 de agosto (1967), e Bioy só volta a
tocar no assunto em 17 de maio de 1968: “Hugo
Santiago Muchnik vem tomar chá conosco. Começará a rodar Invasión no dia
27.” Em 14 de julho, leva aos dois amigos uma fita com a gravação da
“Milonga de Manuel Flores”, cantada no filme:
MILONGA DE MANUEL FLORES
(J. L. Borges / Anibal Troilo)
Para los otros, la fiebre
y el suor de la agonía,
y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
Manuel Flores va a morir
eso es moneda coriente
morir es una costumbre
que sabe tener la gente.
Mañana vendrá la bala
y con la bala, el olvido;
lo dijo el sabio Merlín:
“Morir es haber nascido.”
Y, sin embargo, mi cuesta
decir adiós a la vida
esa cosa tan de siempre
tan dulce y tan conocida.
Miro en el alba mi mano
miro en la mano las venas
con estrañeza las miro
como si fueran ajenas.
Cuantas cosas estos ojos
en su camiño habrán visto
quén sabe lo que verán
después que me juzgue Cristo.
Para los otros, la fiebre
y el suor de la agonía,
y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
O filme está em processo de conclusão, e os três começam
a pensar num segundo filme (que depois resultará em Los Otros). Em novembro, já estão trabalhando no novo argumento, e
Bioy registra o conselho dado por Muchnik: “Não
se deve contar o filme através das conversas. É para escrevê-lo como se fosse
um filme mudo, para que as legendas resumidas das cópias estrangeiras não
deixem de fora nada importante”. Nesse mesmo mês dão por terminada a
primeira versão do argumento de Los Otros.
O filme estréia apenas em 1969, e Bioy registra
comentários seus e dos amigos: o som está muito alto, a fotografia está muito
escura, os diálogos são meio recitados (pouco espontâneos), o final é
inconclusivo... O apanhado habitual das opiniões pós-estréia.
Bioy vê o filme, com Muchnik, em 24 de junho de 1969, e explica
a Borges sua avaliação com estas palavras, em 28 de junho:
Um dos principais defeitos do filme são os diálogos, demasiado
concluídos, corretos e sentenciosos. No próximo filme, vais precisar te conter
um pouco. Se não puderes, escreveremos do teu jeito e depois corrigimos, mas o
corrigiremos de um modo contrário ao habitual: cortando e estropiando as frases
que tenham saído muito perfeitas. Borges: Shaw demonstrou que o teatro
tolera perfeitamente os longos monólogos... Bioy: Em primeiro lugar,
cinema não é teatro; depois, boa parte dos monólogos de Shaw têm um tom redigido
de modo menos impecável do que os teus. Borges: Parece que Shakespeare
escrevia dois textos para cada peça: um para seu prazer de escritor, e outro
para a representação, o acting text. Acredita-se que de "Macbeth"
sobreviveu apenas o “acting text” e das demais peças o primeiro, o literário.
Por isso "Macbeth" é a melhor das suas peças.