quinta-feira, 13 de maio de 2021

4703) O suspense e as narrativas de ficção (13.5.2021)

 


Um conto de Isak Dinesen (pseudônimo literário da baronesa Karen Blixen), “Copenhagen Season”, se passa por volta de 1870, na época de ouro da nobreza da Dinamarca. (Digo “época de ouro” sem ter a menor idéia se era mesmo, mas quando a gente se refere a nobrezas européias qualquer época pode ser chamada de ouro, pela distância, ignorância e impaciência que nos separam.)
 
Ela começa descrevendo os hábitos sociais daquela casta nobre, que era em grande parte uma nobreza rural, de grandes senhores de terras, que dedicavam uma parte do seu ano à convivência social na cidade. Durante esses meses, caravanas de nobres se dirigiam para as cidades, com filhos, filhas, genros, noras, netos, servos, cocheiros, governantas, criados e criadas de quarto, palafreneiros, alabardeiros, sei mais o quê.
 
Era nesse período que quase todas as noites havia um baile no palácio não sei de quem, ou na mansão da família não sei das quantas, onde os jovens exibiam seus bigodes encerados e seus espadins, as moças os seus ombros nus e seus espartilhos. Valsava-se muito, como nos contos de Machado de Assis. Era uma época (diz a autora) em que a população feminina brilhava e coloria a cidade, que no restante do ano era masculina, severa, de trajes escuros.
 
Toda essa nobreza girava em torno de famílias, de sobrenomes. Não ter um sobrenome era sinônimo de não existir. Sobrenome era sinônimo de terras, de propriedades rurais, de trabalhos alheios e rendas incessantes. E ela dirige seu foco para duas famílias nobres, os Von Galen e os Angel. Eram famílias unidas por um casamento meio desequilibrante, porque os Van Galen eram muito mais ricos e importantes, os Angel tinham uma origem mais distante e menos abastada, mas uma paixão repentina uniu as duas casas nobres em matrimônio.
 
Ela começa então a descrever a prole que brotou nessa geração, a beleza dos Van Galen, e o caráter fascinante da família Angel, caráter que ela define como “uma imensa alegria de viver” e ao mesmo tempo uma tendência irreversível para a ruína e a tragédia.


Entre os Van Galen destaca-se a jovem Adelaide, considerada a mais bela de toda a corte, e sua beleza é descrita em termos que lembram os dos nossos folhetos de cordel. Todas as comparações possíveis com a natureza, o firmamento, as flores, as pedras preciosas, são chamadas à ação para descrever a beleza da moça.
 
Em seguida somos conduzidos a ver de perto um rapaz. Ele é Ib Angel, jovem e valoroso oficial do exército, primo-pobre de Adelaide e apaixonado em segredo por ela, desde a infância, consciente de que a distância de sangue entre os dois não lhe permitiria aspirar a sua mão, mas a relação familiar poderia pelo menos dar-lhe o consolo de serem amigos, serem próximos. A menos que ele vá lutar na guerra da Europa...
 
A certa altura, diz a narradora:
 
Perto do final daquela estação, Ib descobriu que se tornara, de forma inesperada, o herói do dia em Copenhague. Ao amanhecer, depois de uma noite de farra, ele travou um duelo de sabres com o adido militar da Suécia e Noruega...
 
E a história começa aí.
 
Fui conferir a contagem. A autora levou 21 páginas para começar a história. Que é o reencontro de Ib com sua prima Adelaide, na noite desse dia em que ele trava um duelo sem maiores consequências.
 
Só desse ponto em diante a autora começa a usar frases do tipo “Fulano levantou-se e foi até a porta”, “ Sicrana atravessou o salão para falar não sei com quem”, “Beltrano aceitou uma xícara de chá e sentou-se junto à condessa” – frases sobre ações que acontecem no momento em que são narradas. Até então, tudo eram rememorações, descrições, e mesmo quando surgia algum diálogo era uma frase antiga de alguém que ela citava para ajudar com um exemplo.
 
Qualquer manual de escrita criativa irá desencorajar um autor a passar 21 páginas enchendo linguiça antes de começar sua história. E de certo modo eles têm razão. Por que? Porque essa linguiça tem que ser de alta qualidade, de alto interesse, e acima de tudo temperada com uma variedade de sabores que dependem do “dom” da escrita, seja isso o que for, e que Ms. Blixen tem de sobra.

É possível, sim, passar vinte páginas descrevendo um ambiente social sem transformar isso num manual sociológico. Ela poderia ter escrito algo tipo:
 
No último quadrante do século, a ascensão econômica da burguesia rural, mais tradicionalista e de hábitos mais pragmáticos, a fez travar uma aliança de interesses com a burguesia urbana de Copenhague, mais cosmopolita e mais próxima aos centros de poder. As conflagrações militares da Europa contemporânea decorriam longe do país, mas no equilíbrio instável de forças entre monarquias e republicanos mesmo um apoio de pequena monta poderia fazer pender a balança para um lado. Jovens ambiciosos da nobreza e do oficialato dinamarquês viam nesse momento conturbado a possibilidade de uma ascensão social e política que lhes teria sido impensável em tempos de paz.
 
Mas não, isso é sociologuês, não é prosa de ficção. Infelizmente, muita ficção por aí está repleta disso; a fantasia e a ficção científica, inclusive.

Ela não diz nada disso, ela vai mostrando as conversas nos salões, descreve um pouco dos hábitos rudes dos rapazes ricos criados em meio aos cavalos e das moças ricas criadas em meio às costureiras e bordadeiras. Fala das festas intermináveis, das discussões de salão de chá em que artistas envelhecidos e espertalhões se grudam na nobreza para divertir suas tardes infindáveis em troca de um pouco de prestígio e quem sabe de alguns trocados na bolsa.
 
Vinte páginas de descrição, de rememórias? Por certo, mas a autora de vez em quando nos dá um cutucão para dizer: “Aguenta aí, que vem história.” De vez em quando ela larga um aviso do tipo: “Na época em que transcorreu a história que vamos contar...” É como se dissesse ao leitor: “Sim, é muita descrição, mas lá na frente vai ficar mais animado.”
 
Atrair, e afastar-se um pouco. É o jogo de sedução das debutantes dinamarquesas, cobertas de pérolas e diamantes, e o mesmo jogo que a baronesa faz com o leitor. O leitor não se afasta porque quem se afasta é ela, dando-lhe algumas pistas de fatos ou ambientes ou personagens interessantes, e em seguida indo tratar de um segundo assunto. O leitor a segue até o segundo em busca de mais alguma migalha do primeiro. E quando ela, num roçagar de saias e num abanar de leque, dirige-se para o terceiro assunto, já é a lembrança do segundo que faz o leitor acompanhá-la, obediente, salões afora.

 
Há uma conspiração de forças que tende a afastar o leitor do texto o tempo inteiro: a preguiça mental, o desinteresse, o tédio, a lembrança de um afazer urgente, a proximidade do controle remoto da TV... O autor (a autora) deve lembrar-se disso o tempo inteiro e não parar um só instante de dar pequenos puxões na corda de atenção que liga o livro ao leitor. Não pode deixá-lo ir embora. Tem que prometer o tempo todo, como as jovens dinamarquesas prometiam algo o tempo todo, com o decote, o sorriso, o olhar por sobre o leque.
 
Ou (para usar uma comparação mais próxima da gente) manter a atenção do leitor focada numa história é como manter no ar uma pipa, coruja, arraia, pandorga. O vento quer levá-la embora. A linha quer mantê-la aqui. Na tensão entre os dois, a pipa se ergue, dança, volteia. Cada frase interessante do texto é um pequeno puxão nessa linha, aumentando a tensão e prendendo o leitor.
 
Alguma coisa vai acontecer, é um dos impulsos essenciais da literatura de ficção. É a percepção constante de que as próximas linhas, as próximas páginas, nos reservam algo que não sabemos exatamente o que vai ser, mas que vemos se preparando ao longo de tudo que lemos antes, daquilo que estamos lendo agora, “vem comigo, vou te mostrar”, diz o livro, e o leitor vai.

"A tua presença morena": 
https://www.youtube.com/watch?v=N3fX_RvGYv4&ab_channel=RicardoMaia
 
Uma canção antiga de Caetano Veloso, gravada por Maria Bethania, tem um verso que exprime bem esse processo: “A tua presença... mantém sempre teso o arco da promessa”. É um arco (arco de disparar flechas) submetido a um tensionamento, a corda é puxada para trás e todo o arco de madeira se contrai, ansioso para voltar à posição anterior. Há um termo em alemão, Spannungsbogen, que exprime exatamente essa idéia. (Spannung é tensão, suspense, e Bogen é arco.) 
 
A prosa de ficção bem sucedida é aquela que faz a gente agarrar um livro de 400 ou 700 páginas e ler até o fim, porque a cada passo recebemos gratificação suficiente pelo esforço dispendido até ali e ao mesmo tempo recebemos estímulos que nos fazem erguer a cabeça e querer saber o que existe mais adiante. O que vai acontecer depois.
 
Vi alguém citar uma frase de Jacques Derrida onde ele dizia que “todo título (de uma obra) é uma promessa”. Pura verdade, e já comprei muitos livros de autor desconhecido e temática ignorada porque o título me intrigou. Posso, contudo, ampliar esse conceito e dizer: Toda frase, todo parágrafo, todo trecho de uma obra literária é uma promessa. É uma resposta, e ao mesmo tempo conduz o leitor a uma pergunta nova. Que é sempre a mesma pergunta, a mais antiga de todas: “Eita! E agora, o que vai acontecer?”.
 

(Karen Blixen)




3 comentários:

CORINTIANO VOADOR disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Spannungsbogen. li o termo, pela primeira vez no livro "Duna", de Frank Herbert. "Até onde se pode distender o arco até soltar a seta?". Quanto mais tensão, mais fundo vai a seta. Talvez você tenha pescado o termo em seu intertexto íntimo?

Weracy Costa disse...

Por que lembrei do meu velho livro do sebo relido sempre como vez primeira O vermelho e o negro / Stendhal? Sonho meu - escrevinhar. Salve BT.