domingo, 13 de dezembro de 2020

4651) Entrevistas Transcendentais: Julio Cortázar (13.12.2020)




Paris no outono. A surpresa de uma rajada de vento frio no dobrar de uma esquina. Um dia branco de luminosidade onipresente, algumas folhas arrastadas no chão. O ameaço de chuva me fez calçar o par de botas usadas que comprei num mercado perto da Porte de Clignancourt, e botar o casaco impermeável. Neurótico com horários, cheguei ao endereço com quarenta minutos de antecedência, mas me dominei e fui tomar um café na esquina, olhando de longe o portão de ferro que dava acesso ao pátio.
 
Um minuto após a hora aprazada toquei a campainha e ele me recebeu, trajando pulôver cinza claro, calça escura, sapatos silenciosos. O olhar era cansado e franco; o sorriso mostrava dentes precários, e a barba e o bigode lhe davam o aspecto de um Lon Chaney de bom coração. Meio encurvado, meio cerimonioso, desculpou-se por não falar português, o que não o impediu de, ao longo da conversa, citar versos inteiros e usar expressões brasileiras, sempre com propriedade. 

Falou no seu castelhano pausado, e algumas vezes, meio que por distração, num francês de tradutor. (Já observei, não sei se por auto-sugestão, que os tradutores profissionais falam as línguas que lhes são estrangeiras com um certo apuro, um certo respeito a cada palavra, como se “ser compreendido” fosse a prioridade absoluta.)
 
Sentamo-nos na sala onde duas portas lado a lado conduziam a uma varanda ampla com gradil. Deduzi que o pátio interno do prédio ficava do lado do quarto; ali, o balcão dava para a rua dos fundos que ele me mostrou com gestos largos, apontando a direção do bulevar principal, da estação de metrô onde saltei, mostrando o prédiozinho antigo onde moravam amigos, e o toldo do buquinista que costumava visitar.


(Paris)

Serviu um vinho, perguntou de onde eu era, onde morava, como era minha cidade, mostrou interesse real; conversamos sobre juventude, leituras de juventude, comparamos décadas. Perguntei-lhe sobre ficção científica, ele balançou a cabeça, sorrindo.
 
JC – Eu poderia lhe falar de Verne e Wells, principalmente o primeiro, que como deve saber é uma referência constante no que escrevo. Mas creio que a “ciencia-ficción” moderna me atraiu menos. Há talvez um excesso de detalhismo científico, do qual Verne já bastou para me cansar. Gosto dele pelo lado imaginativo, pois nos mostra mil planetas, todos aqui na Terra. 

Aqui na França, curiosamente, tem se escrito muito sobre certos aspectos iniciáticos, ocultistas, de sua obra; seu interesse por antiguidades, ruínas, lugares secretos, sua paixão pelos criptogramas... Verne começou como um divulgador científico, um arauto da Era da Razão, mas de certa forma a Ciência o ultrapassou, o deixou para trás. Creio que hoje ele está mais próximo de um Lezama Lima, do que de um Arthur C. Clarke ou outros cientistas que escrevem.
 
BT – Sim, sempre imaginei que a ficção científica norte-americana não lhe interessaria muito...
 
JC – Mas veja, nada há de preconceito nacionalista quanto a isto, porque como sabes uma das minhas grandes influências é Edgar Poe, que li muito cedo, e cuja obra em prosa traduzi. Poe tinha seu lado científico, sem dúvida, seus interesses astronômicos, mas se há uma ciência que lhe deve muito, em nosso século – refiro-me ao século 20, claro – é a Psicologia. Existe uma ciência da mente, e estamos mais atrasados nela do que na ciência das viagens espaciais. O próprio Freud afirmou que quem descobriu o Inconsciente não foi ele, e sim escritores como Hoffmann, o próprio Poe... 

Veja, não estou aqui defendendo a idéia de que a ciência deve invadir, catalogar e legislar esses domínios. Creio que sempre existirá um “mais além” onde nós, escritores, avançaremos com mais leveza e mais desassombro do que os cientistas. Mas se me identifico pouco com o termo ficção científica é justamente por isso, porque o que me interessa não é o que já foi definido pela ciência, o que já foi experimentado, catalogado, e sim o que está “do lado de lá”, o que nós outros apenas pressentimos, como quem ouve um ruído profundo e não sabe de onde vem.
 
BT – Em seu famoso paralelo entre a literatura e o boxe, o conto precisa ganhar por nocaute, mas o romance pode se dar o luxo de vencer por pontos. Tenho amigos e amigas a quem o boxe não agrada, provoca-lhes até uma certa repulsa. Como poderia traduzir isto para essas pessoas?
 
JC – É claro que me ocorreu falar do boxe porque faz parte de minha história pessoal, da história dos homens de minha geração, e mesmo reconhecendo ser um esporte muitas vezes brutal consigo ver nele um sistema que contém valores positivos. Além disso, tem uma dinâmica própria; uma relação entre tempo e energia, que foi o que tentei exprimir nessa comparação. 

Mas podemos dizer tudo isso de outra forma. Posso dizer, por exemplo, que vejo o conto como uma casa, um lar, um espaço fechado e intenso, que não necessita de alargamento, mas onde tudo converge para si mesmo, cada objeto que está ali se relaciona a todos os outros, pertence ao mesmo espírito, o espírito das pessoas que ali habitam. E uma cidade é um organismo imenso, aberto, que se espalha em direções muitas vezes imprevisíveis: é assim também o romance, uma forma de escrita aberta, expansiva, cujo crescimento se dá de maneira mais lenta e por isso mesmo responde às variações do tempo, responde às mudanças na alma de quem o escreve. Poderia dizer também, para que digas a alguma de tuas amigas, que um conto é como uma noite juntos para um casal que acabou de se encontrar, e o romance é como um casamento.  

BT – O conto é sempre um vislumbre, não?
 
JC – Sim, e volto a usar aqui uma de minhas imagens favoritas, a imagem da constelação, da junção de elementos díspares que às vezes nos é dado entrever. O conto curto, como eu o entendo, é algo como a fotografia, que às vezes registra de forma instantânea uma harmonia, uma simetria, uma relação entre elementos, algo que existiu naquele segundo e um segundo depois de ser fotografado não existia mais.


(Bruxelas)

BT –Um dos seus livros de juventude, Divertimento, tornou mais clara para mim uma imagem: seus romances são escritos sobre o que chamamos “uma turma de amigos”. Mesmo quando há um protagonista solitário, ou quando há casais amorosos em primeiro plano, a ação é ocupada por uma turma que convive intelectualmente.
 
JC – Sim, sempre dei importância às amizades pessoais e não apenas no sentido, digamos, das lealdades afetivas, mas da convivência crítica, do aprendizado conjunto da arte, da literatura, da vida enfim. Não sou um grande extrovertido, sou mais o tipo solitário. Não me agradam as festas ruidosas com multidões de pessoas, mas passei belos momentos na companhia de homens e mulheres cujo espírito tinha afinidade com o meu. Pessoas com quem eu me sentia capaz de dizer os mais terríveis gracejos, fazer confissões, compartilhar sentimentos profundos.



(Paris)

BT – Vemos isso, mais famosamente, no Jogo da Amarelinha, mas também em O Livro de Manuel, 62: Modelo para Armar, no próprio Divertimento... Talvez em Os Prêmios...
 
JC – Não, creio que Os Prêmios ocorre num outro plano, de pessoas aleatoriamente convocadas pelo Acaso para conviver no ambiente fechado de um navio. É outro tipo de dinâmica, com algo de confronto entre estranhos. Mas você tem razão no que se refere a esses pequenos grupos. Em muitos casos trata-se de exilados noutro país, uma condição que por si mesma os aproxima, os enclausura num relacionamento mais intenso, os força ao questionamento político, ao questionamento estético, existencial e tudo o mais.
 
BT – Com relação ao exílio, ele sempre envolve uma ruptura, mas em alguns casos, pode ser também um acesso a outras formas de evolução, de crescimento pessoal...
 
JC – Sem dúvida, porque, e isto se aplica a qualquer um, procuramos sempre tirar das novas circunstâncias o que têm de positivo. Em meu caso, o exílio inicial foi voluntário, ninguém me expulsou da Argentina, vim morar em Paris por vontade própria.
 
BT – Sua literatura tanto tem de parisiense quanto de portenha, não?
 
JC – Paris foi a cidade que escolhi para trabalhar e viver, e uma cidade que sempre me deu muito, e que se tornou o meu ponto de vista para observar o mundo, sem que com isso Buenos Aires tenha deixado de sê-lo também. Assim, se pode dizer que ganhei dois pontos de vista, mas sempre insisto em lembrar que toda minha literatura é feita no meu idioma natal. É com ele que me expresso, e que dialogo.
 
BT – Quando se tem duas cidades – a cidade de origem e a cidade onde se mora atualmente  – é forçoso ter esse ponto-de-vista duplo. Muitos, no entanto, devem tê-lo criticado por ter adquirido esse lado francês.
 
JC – Sim. Quando se tem duas cidades, é um pouco como quando se tem duas mulheres diferentes, duas amantes. Por mais que tu faças por uma, ela sempre vai imaginar que fazes muito mais pela outra. Cidades são como mulheres, e às vezes são ciumentas.
 
BT – Por que escolheu Paris? Alguma razão especial?
 
JC – Não uma “especial”, mas várias pequenas razões que se foram superpondo. A familiaridade com o idioma, que eu já lia e falava, inclusive pela influência materna, pois minha mãe apesar de argentina de nascimento era filha de franceses, poderia inclusive ter sido uma tradutora, se tivesse vivido num ambiente menos machista e menos patriarcal.




(Banfield, Buenos Aires)

BT – Pergunto isto porque li alguns depoimentos seus, ou correspondências, falando de suas primeiras vindas à Europa, idas aos museus, etc. Lembrou-me um escritor brasileiro, Osman Lins, que quando viajou pela primeira vez para a Europa estabeleceu para si mesmo um roteiro muito rigoroso de estudo de Arte, obrigou-se a visitar tais e tais igrejas, tais e tais capelas, museus, galerias, às vezes indo a uma pequena cidade italiana ou francesa para admirar uma única obra, um mural... É uma dedicação metódica à arte que minha geração, pelo menos, não chegou a ter.
 
JC – Sim, esse tipo de dedicação era algo muito importante para mim naquela época. A apreciação da arte européia era o outro lado, por assim dizer, do nosso movimento de independência, de tentar nos libertar da mentalidade européia, do impulso tão argentino de negar a América e fingir que éramos europeus exilados. 

Paradoxalmente, a arte européia, a arte renascentista, a música sinfônica, a pintura, a grande poesia, a grande novela, nos libertavam desses laços puramente políticos, econômicos e militares que desenharam a colonização do Cone Sul. Há na grande arte européia – e em toda a grande arte, por suposto – um espírito universalizante que nos acolhe, a nós latino-americanos, e que diluindo essas fronteiras artificiais nos mostra que nossa arte portenha pode também empolgar o espírito de um rapaz na Espanha, de uma moça em Paris, de jovens na Inglaterra ou na Alemanha... Além da experiência estética em si, creio que era isto que eu procurava, e não só eu. 

É curioso que você cite o exemplo de Osman Lins, um escritor cujo Avalovara é um livro que muito admiro, porque sinto nele essa mesma pulsação universal e sem dúvida brasileira, porque o Brasil que ele descreve é um Brasil que, sem conhecer em primeira mão, aceito como verdadeiro, até quando não o entendo por completo.


(Paris)

O tempo melhora um pouco e Julio sugere que vamos até a rua ao lado tomar um café com croissants; dá a entender que é um pequeno ritual seu no dia a dia. Descemos juntos e cruzamos uma praça, enquanto tento sincronizar meu passo com o das suas pernas enormes. Na praça uma garotada na faixa de dez anos está brincando. Alguns correm na direção dele, gritando seu nome; entendo que são filhos de vizinhos seus. Estão jogando pião, e um deles pede a Julio que mostre algo.
 
Ele recolhe o pião, prende o cordão no alto, desce-o perpendicularmente e com habilidade vai enrolando em torno do corpo. Vira-se para mim.
 
JC – Conheces o jogo, certamente.
 
BT – Sim, joguei muito na minha infância, em Campina Grande.
 
JC (sorrindo, forçando o sotaque) – “Campiña Grande”... (Atira o pião, dá um puxão brusco, o pião gira repicando poeira no chão batido. Ele mostra o cordão, que agora pende, frouxo, de sua mão:) Alguém precisa escrever, um dia, “A arte de agarrar o pião pela ponta do fio”.

Devolve o brinquedo aos garotos, vamos tomar em paz nosso café, num pequeno bistrô onde ele é saudado com simpatia pelo casal idoso atrás do balcão. Despedimo-nos com um abraço pouco simétrico. Ele volta com seu andar compassado, cruzando as ruas de uma Paris que não existe mais, ou que existe menos do que as linhas com que foi contada.
 
 


 
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 

Augusto dos Anjos:

Philip K. Dick:

Agatha Christie:

 






3 comentários:

Maria Salet F. Novellino disse...

Amei!

Pia disse...

Bráulio,
Julio Cortazar é um dos meus escritores favoritos. Já li vários de seus livros (Histórias de Cronópios e Famas, Las Armas Secretas, Bestiários, entre outros) Acho que tb li Hayuela, mas só uma vez...
Nunca me esqueço do que ele disse, quando visitou Paraty, acho que na década de 1970, sobre uma flor:
Das coisas que me marcaram a infância, Xibungo - não sei se com X ou com Ch, mas tenho
certeza, ele também não o sabia - é uma. (sobre isso - não saber o nome - há algum tempo, acho que nos anos 70, Julio Cortázar esteve entre nós, e numa passagem por Paraty, perguntou a uma senhora acompanhante, o nome de uma dada flor, dessa das nossas. Ela, a senhora, não soube responder. Não se preocupe, disse Cortázar – ela tampouco o sabe...).
um grande abraço,
Pia

Leonardo Almeida Filho disse...

Que maravilha de texto, Braulio.