sexta-feira, 4 de setembro de 2020

4617) Primeiras Estórias: Os Irmãos Dagobé (4.9.2020)

 

 
Os valentões são uma galeria curiosa na obra de Guimarães Rosa. Como todo intelectual livresco, ele era fascinado por quem resolve as coisas no murro, no tiro e na faca.
 
A cultura de massas faz o que pode para desmoralizar a violência, reduzindo-a a mero sadismo gratuito, com um olho nos níveis de testosterona e o outro na bilheteria.  Perde-se a pulsão trágica do ato de matar, tão sombriamente compreendido pela tragédia grega, pelo romance de cavalaria, pelo romance policial noir, pelo filme de samurai, pelo cordel de cangaço...
 
Os quatro irmãos Dagobé, no livro Primeiras Estórias (1962) são quatro valentões que correspondem a uma fantasia do inconsciente coletivo masculino: o de um grupo de irmãos-de-sangue, todos da mesma origem, todos parecidos, todos diferentes, todos unidos por um sortilégio social que os privilegia e os separa da humanidade. Um bando de bróderes.
 
Dentro desse grupo homogêneo (porque vêm todos do mesmo DNA) e heterogêneo (porque o voluntarismo masculino que os acoberta lhes estimula o personalismo sem-freios), podem acontecer as mais imprevisíveis dinâmicas, geralmente conduzindo à tragédia, que é o desenlace fatal desse impulso pelo pelo poder e pela dominação recíproca.
 
Aí estão os irmãos Karamazov, com seu xadrez sanguinolento de religião e revolta.

 
Aí está o arquétipo de todos os faroestes domésticos, o seriado Bonanza, com o velho Ben Cartwright fazendo o pai bonachão e passador-de-pano para as estrepolias dos três filhotes (Ross, Adam e Little Joe). Quem não vive vendo esse filme?
 
Com relação a Bonanza, que eu assistia quando pequeno, lembro que Joseph Lewis, já diretor veterano, foi contratado para dirigir um episódio da série. E os quatro atores (“aqueles quatro palhaços”, recorda) resolveram desafiar a autoridade dele. Não ensaiavam direito, ficavam fazendo piadas e pregando peças uns aos outros, não obedeciam às instruções, etc.

Quando Lewis percebeu, disse: “Muito bem, vamos rodar a Cena 1”. Rodaram, e foi só palhaçada. Quando terminou, ele disse: “Copia. Cena 2, agora.” Houve um certo silêncio. Começaram a cena e a palhaçada recomeçou. Quando terminou, ele disse: “Copia. Cena 3, agora.”. Silêncio sepulcral no estúdio e Michael Landon (“Little Joe”) veio até ele. “Ei, você não vai copiar isso, vai?”  E ele: “Claro que vou. Me contrataram para filmar o trabalho de vocês quatro, e se o que vocês têm pra mostrar é isso, é isso que vai ao ar.”  Daí em diante não teve mais palhaçada: “fiquei com os quatro na palma da mão”. Ele terminou o episódio, embolsou o cheque e nunca mais quis trabalhar com “os quatro palhaços”.

 
O que é um valentão? É um cara que dá um empurrão no seu peito para ver o que acontece. Se você recuar um passo, ele avança um passo. E na próxima vez dá um empurrão maior, para ver se você recua dois. E se você não recuar? Aí você dá um salto no escuro, mergulha no Imprevisível. Às vezes vale a pena. Às vezes você leva uma pisa. Cada caso é um caso. Não existe fórmula. Boa sorte.
 
Os irmãos Dagobé de Guimarães Rosa são quatro valentões que aprontam naquela ribeira, “gente que não prestava”. Os quatro chamam-se Damastor, Doricão, Dismundo e Derval, o que não deixa de lembrar o famoso ensaio “Um lance de dês do Grande Sertão”, onde Augusto de Campos glosa Deus, Diabo, Demo, Diadorim...
 
Não se trata aqui de um pai e três filhos, mas de quatro irmãos, quatro matragas desordeiros e de maus bofes. O conto começa com um susto, uma “enorme desgraça”. O primogênito Damastor Dagobé foi morto a bala por um sujeitinho qualquer do povoado, “um lagalhé pacífico e honesto”, que se limitou a reagir a uma provocação e agressão por parte do brutamontes. Estava com uma garrucha velha no cinto e “despejou-lhe o tiro do centro dos peitos, por cima do coração”.



A quase totalidade do conto transcorre durante o velório, onde após cada leva de chuvinhas sucessivas chega mais gente, pra ver o acaba-samba em seu caixão, tomar o cafezinho de uso, e ficar pelos cantos fofocando sobre o tamanho da vendeta que se aproxima. O cara mata um Dagobé e deixa três vivos? Vai haver lugar no mundo onde um sujeito assim se esconda?!
 
Outro susto: durante a madrugada chega um recado do assassino, que se chama Liojorge. Manda dizer aos irmãos sobreviventes “que não tinha querido matar irmão de cidadão cristão nenhum, puxara só o gatilho no derradeiro do instante, por dever de se livrar, por destinos de desastre! Que matara com respeito.”  E pede licença para vir ao velório, desarmado mesmo, para mostrar sua boa fé e prestar homenagem ao morto e aos sobreviventes.
 
Rola um zum-zum-zum de perplexidade e desconcerto no velório, porque ninguém ali tinha jamais presenciado tamanha ousadia!  Fala-se até na velha tradição oral de que na presença do matador o corpo do matado volta a verter sangue...
 
Os irmãos não dão resposta pronta, mas recados continuam a chegar e Liojorge se dispõe a ajudar a carregar o féretro!  Aí é que ninguém mais arreda pé, porque o desfecho de uma situação tão inusitada ninguém quer perder.
 
E ele vem.
 
Alto, o moço Liojorge, varrido de todo o atinar. Não era animosamente, nem sendo por afrontar. Seria assim de alma entregue, uma humildade mortal. Dirigiu-se aos três: – “Com Jesus” – ele, com firmeza. E? – aí. Derval, Dismundo e Doricão – o qual o demônio em modo humano. Só falou o quase: “Hum... Ah.” Que coisa.
 
A franqueza e a coragem do matador põem em xeque o exército dagobé. O enterro segue, Liojorge, com “tranquilidade de escravo”, ajuda a carregar o caixão, assiste as pás de terra. E no fim Doricão, agora o mais velho, se pronuncia em sua direção: “Moço, o senhor vá, se recolha. Sucede que o meu saudoso irmão é que era um diabo de danado... (...) A gente vamos embora, morar em cidade grande.”
 
Tem ocasião em que é possível, sim, tomar um miúra pelos chifres, sujigá-lo, fazer com que se ajoelhe e peça desculpas. Nem sempre dá certo. Mas Liojorge, mesmo sendo apenas um pacato fazendeiro, era da aldeia, conhecia os caboclos. Teve sorte de que a agressão viesse da parte do mais velho. Se ele tivesse matado um dos outros três, a conversa seria outra. Mas do jeito como foi, ele acabou tendo que esmagar a cabeça da cobra.
 
Guimarães Rosa já nos previne disso, nos primeiros parágrafos, ao explicar quem foi o morto: “Este fôra o grande pior, o cabeça, ferrabrás e mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais moços – “os meninos”, segundo seu rude dizer.” 

E é desse jeito que circula o sangue por dentro da vida. Enquanto o valentão bate na cara alheia e pode ficar esgravatando os dentes, não vão faltar caras alheias onde bater. Um dia, ele enfrenta alguém com coragem para fazer o que ele não faria. E desarmado. O valentão, que não é nada mais do que isso, percebe que nesse desarmado um valor mais alto se alevanta. Ele resmunga mas abaixa a cabeça. Paga respeito. Foge para a cidade grande. Se civiliza.
 
Todo mundo respeita a mão que matou um, mesmo quando ela vem desarmada.
 

 
 






2 comentários:

Paulo Rafael disse...

Muito bom o texto, como sempre!

Fraga disse...

Seus achados ao redor de um tema são irresistíveis.