(BT aluno)
Teve um professor meu de Geografia que sempre trazia um
mapa-múndi enorme, enrolado. Pendurava num prego grande que tinha por cima do
quadro-negro (era aquele quadro de pedra verde, embutido na parede) e usava uma
varinha para indicar as coisas que explicava.
Eu sentava na primeira fila, porque a distribuição dos
alunos nas “carteiras” (era o nome das bancadas individuais onde a gente
sentava e escrevia) era por ordem alfabética. E vi que ele sabia tudo, ou já
tinha acostumado, porque ele dizia, por exemplo, “Liverpool é um grande centro
portuário”, e tocava com a varinha num ponto, quase sem olhar. Depois eu
levantava e ia ver de perto, e era exatamente ali.
Uma vez ele estava falando das alterações do Homem sobre
o meio ambiente, falou dos canais, explicou a diferença entre o Canal da
Mancha, que é uma passagem natural, e o Canal de Suez, que foi construído por
Ferdinand de Lesseps. Falou do Canal do Panamá.
Aí disse:
– Para que serve o Canal do Panamá? – Olhou em redor,
olhou para mim, e tocou na minha carteira com a varinha. – Você.
Eu fazia a linha tímido-metido, não dava uma palavra
nunca, mas me sentia na obrigação de, em falando, botar pra quebrar.
– Serve para ligar o Oceano Atlântico e o Oceano
Pacífico, que são os dois principais – respondi.
– Correto – disse ele. – Do ponto de vista geográfico.
Mas por cima do ponto de vista geográfico, o ser humano impõe o ponto de vista
geo-político, ou geo-econômico. As necessidades reais das populações humanas. –
Ergueu a varinha, e demonstrou. – O Canal do Panamá acabou servindo como a via
marítima mais curta entre a Costa Leste dos Estados Unidos – indicou com a
varinha – e a Costa Oeste dos Estados Unidos. – Fez a varinha descrever um arco
de círculo.
– É o imperialismo norte-americano – falou um esperto, da
turma lá do fundo.
– Sim e não – disse ele, imperturbável. – Se fosse a
União Soviética, fazia a mesma coisa. É a necessidade de manter uma máquina
imensa funcionando, porque eles têm 250 milhões de bocas querendo comer três
vezes por dia. Por que foi que Vasco da Gama descobriu o caminho para as
Índias, arrodeando a África? – A varinha foi até a Península Ibérica, e desceu
o trajeto beirando a África inteira e subindo até a Índia. – Porque antes
existia um caminho mais curto por Terra, que era esse aqui. – Aí mostrou mais
ou menos o tal caminho que passava por Istambul ou Constantinopla, que a maioria
dos meus colegas pensava que eram duas cidades diferentes. – Mas a guerra
fechou esse caminho terrestre. Eles tiveram
que descobrir outro, que acabou sendo mais comprido, mas quebrou o galho. O
Panamá foi o contrário. Ele pegaram a peixeira e abriram uma passagem.
– Por que logo com o pobre do Panamá? – perguntou alguém.
– O Panamá era o trecho mais estreito do continente –
disse ele. – Eles podiam tentar abrir através do Amazonas, mas só iam terminar
no ano 3.000.
Tive outra professora de Geografia, essa eu lembro o
nome, era Dona Elaine, que eu já conhecia porque trabalhava com meu pai, foi
uma época em que ele era funcionário da Federação das Indústrias. Ela não usava
mapa, não usava varinhas, nada de efeitos especiais. Era uma coroa de cabelo
colorido, toda enfeitada, cheia dos anéis, dos colares. Sentava, olhava a
turma, cruzava os dedos das mãos e começava a contar uma história. Usava muitos
conceitos de economia que na época (eu teria uns 15 ou 16 anos) eu achava
chatos. (Aliás, acho até hoje.)
Foi ela que deu uma prova, certa vez, que nunca esqueci.
Chegou no dia marcado para a prova, organizou a turma, “você vai sentar aqui,
vocês três aí vão ficar espalhados, essa menina fica aqui na fileira da frente,
você vai pra ali...” E todo mundo caladinho,
obedecendo. Livros guardados. Caneta e papel na carteira, prontos.
Ela sentou-se, cruzou os dedos, olhou para a turma por
cima dos óculos, e disse:
– Quesito Único: “Fale sobre agricultura”. Podem começar.
Têm quarenta e cinco minutos.
Eu me virei como pude; preferia que ela tivesse dito
“fale sobre as possibilidades de colonização da Lua”, mas enfim.
(BT professor)
Dez anos depois, o professor era eu. Barbudo, cabeludo,
de óculos, dava aula de Inglês e de Educação Artística, no Colégio Alfredo
Dantas (onde também estudei, dos 9 aos 12 anos). Era um tempo cheio de matérias
abstrusas. Tinha Estudos de Problemas Brasileiros, tinha OSPB (Organização
Social e Política do Brasil)...
Enfim – eu dava aula de Educação Artística, o que era
ótimo, porque o pessoal do Colégio dava carta branca e eu falava de cinema, de
poesia... Os alunos (turma mista) tinham 17, 18 anos, por aí.
Me lembro de ter passado uma aula inteira dissecando
aquele poema dos galos, de João Cabral, que eu dizia: “Hoje vamos ver um poema de
João Cabral de Melo Neto dedicado à torcida do Treze”, e eles vibravam.
Uma vez eu terminei de dar a matéria daquele dia. Parei
ali, de pé. Olhei em torno.
– Quantos minutos faltam? – perguntei.
– Cinco – disse alguém.
– Faltou assunto, professor?... – perguntou uma
bonitinha, jogando uma ironia.
– Como assim, faltou assunto?! – disse eu. – Vou dar cinco
minutos de aula extra, e o assunto são vocês que escolhem. Bora, escolham aí.
Astronomia, Poesia Concreta, História do Império Bizantino, Cirurgia Cardíaca,
Mineralogia...
Eles riam com as minhas tiradas. Aí alguém gritou:
“Mineralogia!”.
– Mineralogia – anunciei.
Fiz um fictício, fechei os olhos, pus as pontas dos dedos
na testa, concentrei, e eles fizeram um silêncio que nem eu esperava.
Abri os olhos, estendi um braço, teatral.
– Os minerais!... – falei, em tom meditativo. – O que
sabemos nós dos minerais?! Nada. Eles
nada nos dizem, eles não se manifestam, eles nos ignoram... Não são como os
animais, que interagem conosco, tem necessidades iguais às nossas. Não são como
os vegetais, que como nós têm o ciclo da vida. Os minerais vivem noutra escala
do tempo. O que para nós são 100 mil anos, para eles é um segundo. O que são
eles, então?! Talvez sejam deuses adormecidos, esperando o momento em que
evoluirão para estátuas, caminharão por fim nesse planeta que será só seu...
Eu tinha lembrado um livrinho de bolso, “O Falso
Planeta”, de Peter Randa. Saí por ali
enrolando, citei Augusto dos Anjos, que mesmo fora do tema sempre impressiona, e
fiz um fecho qualquer, bem dramático. Eles vibraram, alguns bateram uma
palmazinha.
Aí o eterno e infalível Engraçadinho da Turma dos Fundos
perguntou com voz desdenhosa:
– Cai na prova?...
Eu parei, estendi o braço na direção dele como se fosse
um rifle, dedo esticado, e disse:
– A prova é a vida, rapaz! A prova é a vida!
E nesse instante o Roteirista do Mundo me deu uma colher
de chá, e a sineta ressoou.
11 comentários:
Seus artigos, sem vc ser professoral, são sempre aulas saborosas.
Mas alguma sineta impede ultrapassar o formato hehe.
É bom quando ao terminarmos de ler um texto, nosso humor, imperceptívelmente, fica mais leve. Obrigado.
Tu não existe, Trupizupe! Sensacional.
Que texto vibrante e atual! Principalmente agora que quase todo mundo pegou recuperação, com grandes chances de tomar uma bomba definitiva...
Ótimo!!
Ótimo texto.
Quando fui professor de Matemática aqui em Natal, e estava entediado mergulhava em temáticas disparatadas e os alunos adoravam. As pedagogas quase sempre detestavam.
“Fiz um fictício “
Hehehe, onde vc arrumou essa tirada, cara?
Touché, Pura varimha de mestre..
SM Repentista, isso é uma expressão muito paraibana, só que lá dizemos "friquitício", e eu tive que deduzir retroativamente do que é que se tratava. É qualquer atitude exagerada, até melodramática. "Ela fez um friquitício de que estava chorando, mas eu vi que era esperteza pra ganhar tempo."
Muito bom! No fundo, é isso, ser professor permite diversas possibilidades. Acho que é o grande barato do ofício.
SM Repentista, te mandei um email anteontem (dia 16). Não tenho outro contato com vocmicê. abs
Cada texto desse Almanaque Fantasmo é um bálsamo. Não aquele "bálsamo" que a mãe de Brian de a "Vida de Brian" pensava, mas o outro, o que deixa a vida mais leve e cheirosa.
Postar um comentário