segunda-feira, 25 de novembro de 2019

4526) "Enfim, capivaras" e a sala de jantar (25.11.2019)




(Luisa Geisler)

Existem muitos tipos de censura. Tem a censura política, a censura sexual, a censura religiosa...00

E existe um tipo de censura que seria, digamos, uma censura comportamental. Proíbe-se um livro (filme, canção, etc.) porque nele as pessoas se comportam de uma maneira que a autoridade proibidora considera inadequada, ou usam uma linguagem inadequada.

Foi o que aconteceu há pouco tempo com a escritora Luisa Geisler, convidada para a Feira do Livro de Nova Hartz (RS) e desconvidada dias depois porque alguém da prefeitura local (patrocinadora do evento) achou que o livro dela tem “linguagem inadequada”.

No livro, Enfim, Capivaras, um garoto mentiroso alega ter uma capivara de estimação. A história conta as aventuras dele e de seus amigos, durante uma noite inteira, tentando achar uma capivara de verdade.

O problema não é político, nem religioso, nem sexual. É a atitude de “vamos proteger o jovem”.  Diz Luisa (“O Globo”, 14.11.2019):

Dentro disso, há personagens confusos sexualmente, relacionamentos mal resolvidos, álcool, salgadinhos e, claro, capivaras de gravata em carrinhos de mão. Os personagens falam como adolescentes falam. Usam gírias e palavrões. Não pedem “por favor”, nem dizem “obrigada”. Eles se xingam. Alunos me informaram que seus professores disseram que esse tipo de linguajar não pode existir em livros. Não é apropriado.

Jovens ouvem palavrão e veem comportamentos “inconvenientes” na televisão de casa, nas televisões da rua, no cinema, nas revistas, nos vídeos de seus próprios celulares. Mais do que isso: veem na vida real. Não é um livro que vai ensinar um adolescente a dizer “é bom pra caralho” ou “vai tomar no cu”. É a vida.

As autoridades querem poupar os jovens de ouvir frases terríveis como essas, mas proibir um livro não vai adiantar nada.

Milhões de jovens passam o dia ouvindo palavrão, mas não dizem palavrão porque não gostam de falar assim – e estão certos. 

Tem outros que falam, porque o palavrão os ajuda a expressar seus sentimentos – e estão certos também. 

Cada pessoa cria seu próprio estilo de falar.

Por outro lado, já vi argumentos no sentido contrário. Há professores, pais, etc. que dizem: “A rua já está um horror, uma agressividade enorme, todo mundo falando palavrão. Por que trazer isso para a literatura? A literatura é um espaço que deveria privilegiar os bons sentimentos, os bons exemplos, as boas lições.”

Quem quiser difundir o bom comportamento e os bons modos tem uma solução muito boa: basta escrever e publicar livros onde isso aconteça, sem a necessidade de proibir a leitura dos demais. Se, por essa lógica, basta um garoto ou garota ler um livro onde aparecem palavrões para começar a usá-los, pela mesma lógica basta ele(a) ler um livro onde os personagens falam linguagem educada para começarem a falar educadamente também.

A literatura não pode ser menos suja do que a vida real, menos violenta, menos conturbada, menos chata, menos qualquer coisa. A literatura é uma destilação da vida, mas não no sentido de pasteurizá-la, e sim no sentido de se tornar um “concentrado” de vida. Um concentrado onde numa gota (uma gota de 120 páginas, digamos) se encontra experiência suficiente de uma vida inteira.

Como diz a autora do livro:

Acima de tudo: o que tem na realidade dos jovens em escolas municipais hoje em dia? Muito mais do que palavrão e capivara. Quando vocês falam que uma linguagem mais informal não merece ser sequer lida, estão dizendo que o jeito que esse jovem fala é inferior, sem valor. Você fala que o rap não tem mérito como parte da cultura. A linguagem é plástica e complexa na sua completude; o mundo é plástico e complexo na sua completude.

Os livros são uma extensão da vida real. No dia em que inventarem um filtro impedindo que a vida real passe para dentro deles, eles serão impressos em branco.

A atitude de “vamos proteger a literatura” me lembra um dado social muito curioso que eu observo desde garoto, desde meus 10 ou 12 anos, quando eu era tão inocente que não dizia “puta que pariu”.

Nas nossas casas de classe média havia, e há, o costume de comprar móveis melhores para a sala de jantar: uma mesa grande de madeira escura e boa, às vezes toda entalhada; cadeiras de espaldar alto, na mesma madeira, combinando; uma cristaleira com frente e prateleiras de vidro, cheia de jarras, sopeiras, terrinas, pratos, taças, xícaras, talheres de boa qualidade.

A família comprava isso... mas não usava. Eu ia estudar na casa dos meus colegas e quando era convidado para almoçar ou jantar era na mesa grande da cozinha, que era onde a família comia diariamente. Às vezes eu perguntava pela sala de jantar, e me explicavam: “São móveis caros, coisas caras, só podem ser usados nas grandes ocasiões.”

Eu não sentia falta, porque me sinto super à-vontade numa casa onde as pessoas se reúnem na cozinha, comem na cozinha, conversam, bebem, riem, se divertem na cozinha. Acho super normal. Mas convivi muitos e muitos anos com esses amigos e ficava espiando com o rabo do olho para aqueles cadeiras soturnas, empurradas para baixo das mesas; para aquelas terrinas de porcelana, aqueles copos lindos onde ninguém bebia, aqueles pratos onde ninguém comia.

Não devíamos fazer a mesma coisa com a literatura.











2 comentários:

Fraga disse...

Clap, clap, clap! E melhor de tudo: nada que li antes sobre o caso me trouxe interesse pela livro. Agora deu vontade de ler. Abrrr, meu caro.

André Gustavo disse...

Um salve aos porras e aos putas que pariram!