(Luisa Geisler)
Existem muitos tipos de censura. Tem a censura política,
a censura sexual, a censura religiosa...00
E existe um tipo de censura que seria, digamos, uma
censura comportamental. Proíbe-se um livro (filme, canção, etc.) porque nele as
pessoas se comportam de uma maneira que a autoridade proibidora considera
inadequada, ou usam uma linguagem inadequada.
Foi o que aconteceu há pouco tempo com a escritora Luisa
Geisler, convidada para a Feira do Livro de Nova Hartz (RS) e desconvidada dias
depois porque alguém da prefeitura local (patrocinadora do evento) achou que o
livro dela tem “linguagem inadequada”.
No livro, Enfim, Capivaras, um garoto mentiroso alega ter uma capivara de estimação. A
história conta as aventuras dele e de seus amigos, durante uma noite inteira,
tentando achar uma capivara de verdade.
O problema não é político, nem religioso, nem sexual. É a
atitude de “vamos proteger o jovem”. Diz
Luisa (“O Globo”, 14.11.2019):
Dentro disso, há personagens confusos sexualmente, relacionamentos mal
resolvidos, álcool, salgadinhos e, claro, capivaras de gravata em carrinhos de
mão. Os personagens falam como adolescentes falam. Usam gírias e palavrões. Não
pedem “por favor”, nem dizem “obrigada”. Eles se xingam. Alunos me informaram
que seus professores disseram que esse tipo de linguajar não pode existir em
livros. Não é apropriado.
Jovens ouvem palavrão e veem comportamentos
“inconvenientes” na televisão de casa, nas televisões da rua, no cinema, nas
revistas, nos vídeos de seus próprios celulares. Mais do que isso: veem na vida
real. Não é um livro que vai ensinar um adolescente a dizer “é bom pra caralho”
ou “vai tomar no cu”. É a vida.
As autoridades querem poupar os jovens de
ouvir frases terríveis como essas, mas proibir um livro não vai adiantar nada.
Milhões de jovens passam o dia ouvindo palavrão, mas não
dizem palavrão porque não gostam de falar assim – e estão certos.
Tem outros que falam, porque o palavrão os ajuda a expressar seus sentimentos – e estão certos também.
Cada pessoa cria seu próprio estilo de falar.
Tem outros que falam, porque o palavrão os ajuda a expressar seus sentimentos – e estão certos também.
Cada pessoa cria seu próprio estilo de falar.
Por outro lado, já vi argumentos no sentido contrário. Há
professores, pais, etc. que dizem: “A rua já está um horror, uma agressividade
enorme, todo mundo falando palavrão. Por que trazer isso para a literatura? A
literatura é um espaço que deveria privilegiar os bons sentimentos, os bons
exemplos, as boas lições.”
Quem quiser difundir o bom comportamento e os bons modos
tem uma solução muito boa: basta escrever e publicar livros onde isso aconteça,
sem a necessidade de proibir a leitura dos demais. Se, por essa lógica, basta um
garoto ou garota ler um livro onde aparecem palavrões para começar a usá-los, pela mesma lógica basta ele(a) ler um livro onde os personagens falam
linguagem educada para começarem a falar educadamente também.
A literatura não pode ser menos suja do que a vida real,
menos violenta, menos conturbada, menos chata, menos qualquer coisa. A
literatura é uma destilação da vida, mas não no sentido de pasteurizá-la, e sim
no sentido de se tornar um “concentrado” de vida. Um concentrado onde numa gota
(uma gota de 120 páginas, digamos) se encontra experiência suficiente de uma
vida inteira.
Como diz a autora do livro:
Acima de tudo: o que tem na realidade dos jovens em escolas municipais
hoje em dia? Muito mais do que palavrão e capivara. Quando vocês falam que uma
linguagem mais informal não merece ser sequer lida, estão dizendo que o jeito
que esse jovem fala é inferior, sem valor. Você fala que o rap não tem mérito
como parte da cultura. A linguagem é plástica e complexa na sua completude; o
mundo é plástico e complexo na sua completude.
Os livros são uma extensão da vida real. No dia em que
inventarem um filtro impedindo que a vida real passe para dentro deles, eles
serão impressos em branco.
A atitude de “vamos proteger a literatura” me lembra um
dado social muito curioso que eu observo desde garoto, desde meus 10 ou 12
anos, quando eu era tão inocente que não dizia “puta que pariu”.
Nas nossas casas de classe média havia, e há, o costume
de comprar móveis melhores para a sala de jantar: uma mesa grande de madeira
escura e boa, às vezes toda entalhada; cadeiras de espaldar alto, na mesma
madeira, combinando; uma cristaleira com frente e prateleiras de vidro, cheia
de jarras, sopeiras, terrinas, pratos, taças, xícaras, talheres de boa
qualidade.
A família comprava isso... mas não usava. Eu ia estudar
na casa dos meus colegas e quando era convidado para almoçar ou jantar era na
mesa grande da cozinha, que era onde a família comia diariamente. Às vezes eu
perguntava pela sala de jantar, e me explicavam: “São móveis caros, coisas
caras, só podem ser usados nas grandes ocasiões.”
Eu não sentia falta, porque me sinto super à-vontade numa
casa onde as pessoas se reúnem na cozinha, comem na cozinha, conversam, bebem,
riem, se divertem na cozinha. Acho super normal. Mas convivi muitos e muitos anos
com esses amigos e ficava espiando com o rabo do olho para aqueles cadeiras
soturnas, empurradas para baixo das mesas; para aquelas terrinas de porcelana,
aqueles copos lindos onde ninguém bebia, aqueles pratos onde ninguém comia.
Não devíamos fazer a mesma coisa com a literatura.
2 comentários:
Clap, clap, clap! E melhor de tudo: nada que li antes sobre o caso me trouxe interesse pela livro. Agora deu vontade de ler. Abrrr, meu caro.
Um salve aos porras e aos putas que pariram!
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