domingo, 14 de abril de 2019

4456) Os contos de Neveryon (14.4.2019)




Finalmente acabei lendo este livro de Samuel R. Delany (1979), que já tinha há muitos anos, e do qual me lembrei ao saber do relançamento (nos EUA) da série completa de “Neveryon”, em quatro volumes (tenho os dois primeiros).

O livro é classificado como do gênero “Espada e Feitiçaria” (“sword and sorcery”), mas feitiçaria não tem nenhuma. Delany pratica um tipo de fantasia bem peculiar, que eu chamaria de “Espada e Economia Política”.

Porque é disso que trata o livro (além de muitas outras coisas): ele pega uma sociedade primitiva, antiquíssima, e examina o modo como ela se organiza socialmente (nobres, escravos, bárbaros, pescadores, artesãos, guerreiros), economicamente (é a fase de transição entre o escambo e o dinheiro, o que provoca várias teorizações e discussões entre os personagens), culturalmente (já existe um sistema de escrita), civilmente (há comunidades poligâmicas, tanto de várias esposas para um homem quanto de vários maridos para uma mulher) e politicamente (as aventuras do enredo se dão, em grande parte, em função do que chamamos de “intrigas palacianas”).

São cinco contos sucessivos, com personagens que sempre reaparecem mais adiante. A estrutura do livro é em espiral, porque a história se amplia e ao se ampliar acaba puxando de novo para dentro um personagem que tínhamos conhecido numa história anterior.

Eu lhe disse isso antes de começarmos, e agora lhe digo novamente, mas o contexto desta experiência de algumas horas pode fazê-lo ponderar de novo o significado do que foi dito. (p. 230)

Esta fala de um personagem revela uma das vantagens dessa narrativa espiralada: cada vez que reaparece um personagem, um objeto, uma cantiga folclórica, um brinquedo de criança, um costume tribal, lembramos que já ouvimos falar daquilo 50 páginas atrás. Mas agora esse detalhe surge enriquecido pelo contexto do que foi dito ou mostrado neste intervalo.

É um desses livros que ganham, e muito, com uma segunda leitura. Que virá enriquecer o significado da história que imaginamos já conhecer, por ter lido o livro até o fim.

Se eu tivesse que situar um possível leitor diria que é um universo próximo de Game of Thrones (por ser a Terra, mas uma Terra sem nada da cultura da Terra, da geografia ou da história que conhecemos) e da trilogia de Earthsea, de Ursula LeGuin (com dragões, mas sem magia).

O livro tem um curioso apêndice (atribuído ao acadêmico “S. L. Kermit”) onde se sugere que sua origem seria um texto antiquíssimo conhecido como “o Fragmento Culhar” (ou Kolhare), um texto pelo menos quatro mil anos mais antigo que a epopéia de Gilgamesh e os poemas homéricos. Cópias desse texto (que Kermit compara em importância aos Manuscritos do Mar Morto) foram encontradas em quase todos os idiomas da Antiguidade, o que sugere ser ele uma espécie de “Ur-texto”, origem de toda a literatura.


(Samuel R. Delany, nos anos 1970)

Delany usa esse recurso borgiano (exibição de erudição acadêmica em cima de um fato totalmente imaginário) para refletir sobre a origem da escrita e da linguagem. Ao mesmo tempo, os trechos traduzidos do Fragmento Culhar correspondem a elementos dos contos de Neveryon, que acabamos de ler:

“...Eu caminho ao lado de uma mulher que conduz duas facas...”
“...O amor entre o pequeno bárbaro e o grande escravo de Culhare...”
“...A mercadora deixa de vender vasilhas de três pernas para vender vasilhas de quatro pernas...”
“...O espelho de metal polido distorce tudo que vejo à minha frente e atrás de mim...”

São elementos aparentemente indecifráveis, mas que surgem plenamente justificados no decorrer da narrativa.

Delany/Kermit afirma estar recorrendo à tradução do Fragmento Culhar feita por uma professora, “K. Leslie Steiner”. A certa altura ele lembra a afirmativa de Claude Lévi-Strauss de que todas as versões de um mito deveriam ser estudadas em conjunto, para poder compreendê-lo; e que a teoria freudiana do Complexo de Édipo não passava de uma versão moderna do mito, a ser estudada em conjunto com as demais.

Ele se vale disto para considerar a tradução de “Steiner” uma versão a mais dos mitos registrados no Fragmento Culhar, e se pergunta:

Se algum escritor se dispusesse a pôr estas histórias no papel, de verdade, que tipo de reflexão poderiam elas constituir, fosse do mundo moderno, fosse da nossa história passada?

Os “Contos de Neveryon” são apresentados, ficcionalmente, como uma tentativa de adivinhar que histórias estariam sendo contadas no fragmento de escrita mais antigo do mundo ocidental. Uma espécie de glosa e homenagem a esses “motes” preservados precariamente durante milênios.










2 comentários:

Paulo Rafael disse...

estaria correto o trecho: "tanto de várias esposas para um homem quanto de várias mulheres para um marido"?"

Abração

Braulio Tavares disse...

Me atrapalhei, Paulo Rafael. Já corrigi!