sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

4536) Leituras 2019 - 2 (27.12.2019)





Prosseguindo no balanço do ano – e lembrando mais uma vez que não estou fazendo uma lista de “melhores livros”, apenas livros cuja leitura me marcou.

Os inclassificáveis

Gosto dos livros inclassificáveis. São como uma bolota de mercúrio líquido, que a gente escorre para o côncavo da palma, tenta apertar entre os dedos e ela se esmigalha, escorrendo por entre as falanges, e para recompô-la basta arrastar esses respingos uns na direção dos outros. Lá está ela. A mesma coisa de antes. Nem se lembra que acaba de nascer de novo.

São assim alguns escritores, que mesmo quando vêm de um excesso de leitura parecem imunes à literatura de que são feitos dos pés à cabeça.

Viagem em volta de uma ervilha é uma história em quadrinhos com texto de Sofia Nestrovsky e desenhos de Deborah Salles (São Paulo: Veneta, 2019), narrativa meio fatia-de-vida de uma moça que convive numa casa pequena com uma gata, sendo que as duas passam por aventuras surrealistas, meio Carrollianas, regadas a poesia romântica inglesa e com transferências para universos paralelos onde as duas acabam se entendendo.


Gostei do livro também porque ele pertence a uma biblioteca gigantesca e invisível de obras que mostram uma coisa óbvia e desconhecida: qualquer tipo de narrativa, com qualquer tipo de personagem e de ambientação, pode ser criada através de quadrinhos. Digo algo tão óbvio porque mostrei esse livro a um amigo e disse: “Olha que legal essa história em quadrinhos”, e ele folheou, pensou, pensou, e disse: “Engraçado, eu pensava que as histórias em quadrinhos só podiam falar de super-heróis, mutantes, etc.”.

Um inclassificável que descobri este ano foi o autor Manoel Carlos Karam, que é uma espécie de deus-pequenino para uma turma de amigos meus. Eu perguntava: “Mas ele escreve romance, conto, poesia, o quê?” e a resposta era sempre: “Não dá para classificar, nem descrever.”

Karam é o rei do fragmento, dos estilhaços narrativos que se multiplicam página após página, trazendo-nos de volta ao que estava sendo contado antes, incrustando coisas totalmente heterogêneas e heterodoxas numa historiazinha que se anunciava normal. Seus livros têm algo daquelas coleções que Mario Quintana fazia de aforismos, piadas, historietas de cinco linhas, comentários mordazes ou surrealistas – só que, no caso de Karam, o sentimento que predomina não é o lirismo meio sardônico do poeta, e sim uma espécie de absurdismo gerado por sete noites sem dormir.


Comendo bolacha maria no dia de são nunca (São Paulo: Ciência do Acidente, 1999) e Pescoço ladeado por parafusos (Curitiba: Arte & Letra, 2013) são os dois exemplares que me fizeram coçar a cabeça, desacorçoado, e dar gargalhadas eventuais diante dessas micronarrativas que lembram aqui a prosa sonambúlica de José Agrippino de Paula, e acolá a desenvoltura amalucada de Campos de Carvalho.


O fantástico brasileiro

Esta tem sido uma boa década para o fantástico, a fantasia e a ficção científica produzida por autores brasileiros. Pra variar, eles se queixam o tempo todo, e têm mais é que se queixar mesmo, senão todo mundo pensa que eles são como os Desincorporados, do romance de Samuel Delany, os mortos invisíveis que ajudam na astronavegação das espaçonaves, só que ninguém os percebe.

Contos do sul (Novo Hamburgo: Echo, 2013)Simone Saueressig
Back in the USSR (São Paulo: Patuá, 2019) Fabio Fernandes
O Romance da Besta Fubana (Belo Horizonte: Itatiaia, 1984) Luiz Berto


Os contos de Simone Saueressig fazem parte de uma tendência narrativa de dar novas roupagens e novos contextos a alguns mitos populares: o saco, o lobisomem, etc. Eu mesmo já fiz uma incursão nesse território, com Sete Monstros Brasileiros (2014). Os seus “contos do sul” são sulistas na ambientação, em alguns detalhes saborosos da voz narrativa e dos diálogos.

Os contos se aproximam do que os norte-americanos chamam de Dark Fantasy. Aqui no Brasil se traduz isso por “fantasia escura”, mas eu prefiro traduzir por “fantasia tenebrosa”, e a defino como uma fantasia que se aproxima do horror e de uma certa brutalidade existencial. Não é aquela fantasia aconchegante que desde o início nos garante um final feliz, ou pelo menos satisfatório. É uma fantasia onde se conta a história de uma tragédia desencadeada pelo contato com a treva do sobrenatural.



Já falei aqui no blog, mais extensamente, sobre o romance de Luís Berto, um clássico subterrâneo mas vivíssimo do romance nordestino. A Besta Fubana é uma criatura mítica inventada por Luís Berto mas que não fica muito distante da “Pavoa Devoradora” que seu cúmplice literário Orlando Tejo inventou para dar um colorido fantástico à sua lenda sobre o poeta Zé Limeira. É um ser gigantesco e multiforme, que vive num lugar remoto do Universo e parte na direção da nossa galáxia com a finalidade precípua de semear o terror e o assombro na população de Palmares (PE).  

É um épico-satírico barroco-sertanejo, na linha de outros romances de Ariano Suassuna, Nei Leandro de Castro, Carlos Emilio Corrêa Lima, Aldo Lopes, e outros. O seu viés do fantástico não procura ter a menor filiação às correntes européias ou norte-americanas – filiação frequentemente buscada pelos romancistas do Sudeste.  Luiz Berto inventa as regras à medida que o jogo é jogado; não se preocupa com regras, porque seu romance é uma explosão rabelaisiana (ih, olha ai a Europa, erguendo-se do túmulo) de erotismo, escatologia, sátira política e exuberância animal.

Leia mais aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2019/02/4434-o-romance-da-besta-fubana-1422019.html

Na área da ficção científica brasileira, com a qual estou em dívida, pois confesso ter lido pouca coisa, destaco o Back in the USSR de Fábio Fernandes. É uma dessas sátiras amalucas descrevendo um futuro divergente onde graças à existência de técnicas científicas de ressuscitação John Lennon está vivo (é ele o protagonista do livro), e se envolve numa dessas tramas de espionagem política high-tech onde grupos terroristas ou anarquistas dissidentes uns dos outros se engalfinham em busca de objetivos políticos que nem eles mesmos entendem.

Narrativas malucas e desconjuntadas como esta não são privilégio de humoristas como o Monty Python: eu vejo semelhanças entre a trama delirante do livro de Fábio e obras de Stanislaw Lem como O Incrível Congresso de Futurologia ou Manuscrito Encontrado Numa Banheira, de John Sladek (The Muller-Fokker Effect) ou Rudy Rucker. É um absurdismo que só pode ser bem aproveitado se perdermos a ansiedade de que o enredo faça sentido, no sentido tradicional do termo. Não adianta ficar calculando: “Peraí... se A mandou matar B, por que então C disse a B que D ia matá-lo, quando o grupo de D se aliou ao grupo de F para eliminar, A, que deixou bem claro sua oposição a G...”

Melhor esquecer a lógica literária e embarcar na montanha-russa de surpresas, reviravoltas, alusões satíricas ao “mundo do lado de cá”, na vertigem das narrativas que se bastam a si mesmas.








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