domingo, 23 de setembro de 2018

4388) Notas sobre a tradução (23.9.2018)



Se o original demonstra consciência da importância do ritmo e da melodia de uma frase, é preciso valorizar essas coisas na mesma medida. Não são muitas as vezes em que se pode conseguir. Mas sempre vale a pena procurar uma frase em português que tenha uma extensão aproximada, a mesma cadência, a mesma montanha-russa de sílabas fortes e fracas... e de preferência fechando a frase traduzida com um som que seja quase uma rima toante, uma resposta à terminação da frase original.

Isso vale para todos os textos, todos os escritores? Não. Só para a tradução de escritores que também escrevem assim.

Tem escritores cuja escrita é vagarosa, e tem que ser lida e assimilada vagarosamente pelo leitor. Nesses casos a tradução precisa acompanhar esse ritmo, onde cada palavra tem um peso maior.

E tem autores, no outro extremo, cuja prosa é veloz, direta, porque menos  mais do que a escolha individual de cada palavra o que conta é a rapidez da imagem ou da situação que essas palavras estão traçando. E o tradutor deve obedecer a essa rapidez, em vez de ficar passando noites em claro por causa de um sinônimo perfeito, aqui ou ali.

É bom traduzir com esse tipo de cadência em vista quando a prosa tem aquele ritmo encantatório, onde a musicalidade pesa tanto quanto o significado direto das palavras.  É preciso estar sentindo essa indução rítmica o tempo todo. De uma certa forma visível mas inalcançável, a frase da tradução tem que ter uma cadência parecida com a do original, de preferência meio que rimando com ele.

Se o original termina um parágrafo com três palavras curtas, convém usar três palavras curtas em português, mesmo que a tradução mais fiel ao sentido pedisse quatro palavras longas.

Se a frase se esvai de sentido antes de acabar, é aconselhável manter essa dissolução.

Se no transcorrer da frase aparece um termo científico pomposo que logo adiante sugere a alguém uma expressão de gíria, manter esse paralelismo.

Se o autor usa um termo estranho, reiteradamente, para se referir a algo, não se pode a cada vez trocar isso por um sinônimo. Se é sempre a mesma palavra no original, deve ser sempre a mesma palavra na tradução.

Traduzir é fazer algo que guarde com o original numerosas características texto-topológicas, se bem me exprimo. A verdade é que ninguém traduz palavras: traduz frase por frase. O tradutor lê uma frase inteira no original e tem que produzir uma frase equivalente, mesmo alterando as palavras do original, porque percebemos que naquele ponto era o ritmo da frase a coisa mais importante na mente do autor.

É necessário esse esforço todo somente para preservar algo da sonoridade do original?

Sim, se houve no autor original a intenção de produzir algum tipo de efeito sonoro (ritmo, assonância, aliteração, trocadilho, paralelismo, etc.).

Existem autores, talvez até uma maioria nas camadas medianas da literatura, para quem o importante é dizer, informar, contar, sem muita atenção para os aspectos “melódicos”, “harmônicos” e “rítmicos” da prosa.

Para traduzir estes, não é preciso ter tanto cuidado. Basta produzir uma prosa em português que não se afaste muito do tipo de prosa produzido por eles.

Para os autores de prosa mais cuidada, é preciso traduzir de uma maneira mais cuidada. É preciso fazer com que a impressão deixada no leitor em português seja semelhante à impressão que tem o leitor no idioma original.

Uma polêmica recente a este respeito aconteceu em torno das recentes traduções de Dostoiévski, feitas diretamente da língua russa. Durante anos, Dostoiévski foi traduzido no Brasil por via das traduções francesas, de modo que o texto brasileiro seguia de perto as escolhas verbais dos tradutores franceses.


Versões recentes feitas do russo mostraram um Dostoiévski de estilo menos clássico e mais brusco, com uma linguagem meio descuidada própria de quem escreve em folhetins, cheia de hesitações, repetições, palavras meio rudes. Quando tudo isso é reproduzido pelo tradutor brasileiro, o leitor acostumado com o Dostoiévski via francês acaba estranhando. A tradução fica menos “literária”, mas é mais fiel. 



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