terça-feira, 14 de agosto de 2018

4376) A mesa de vidro da madame (14.8.2018)




Fiz minhas primeiras traduções profissionais para  a Rio Gráfica Editora e para a atualmente combalida Editora Abril. Eu traduzia livrinhos de bolso com histórias de amor, e alguns de faroeste, que eram bem mais divertidos, e mais bem escritos. Assinava tudo com pseudônimo.

Nesse tempo, eu morava no Catete. Tinha um bar perto de casa onde eu ia às vezes tomar uma cerveja quando aparecia algum amigo em casa e a geladeira estava desprevenida. A gente sentava, ficava por ali tomando uma. Tinha uma turma de habituês onde fluía um papo interessante sobre futebol, sobre os acontecimentos do país e sobre a mecânica da rua.

Eu ia até contar outra coisa, especificamente sobre os problemas da tradução literária, mas vou fazer uma pequena digressão para falar sobre esse conceito, a Mecânica da Rua. Toda rua tem um fluxo de funcionamento, de administração confortável dos eventos rotineiros, e de assimilação segura dos imprevistos. “Imprevistos” são um carro que morre o motor ali e engarrafa tudo, ou um ameaço de incêndio no depósito de madeira, ou uma briga...

Tudo isso influi na nobre arte de fazer funcionar a Mecânica da Rua.

Nesse dia, na mesa vizinha, aquelas mesas Antarctica de metal, com pernas dobráveis em X, cercadas de tamboretinhos, estava rolando uma conversa de dois caras que eu conhecia dali mesmo, dois caras que faziam mandados e ajudavam em tarefas variadas.

O mais velho era um mulato forte, de bigode. Estava dizendo pro outro:

– Ela devia ter medido o tamanho desde antes, pra ver se subia no elevador.

O outro se chamava Sinval, era do Piauí e botafoguense. Disse:

– Zeca, a mulher compra uma mesa pro apartamento dela. Ela tem tantas pessoas pra almoçar, tantos metros de sala... Ela escolhe a mesa pensando nesse tamanho.

– Mas a mesa é de vidro, a mesa chega, os caras descarregam, e aí a mesa não cabe no elevador. Ela não pensou nisso?

– Mulher não pensa nessas coisas, ela pensa em como a sala dela vai ficar.

– Mulher pensa em tudo, mas ela confia que se tiver um problema, alguém resolve, porque ela tá pagando. Aliás, já que a gente ganhou, bora gastar.

Pediram mais cerveja, um tiragosto e como a conversa parou por aí eu tive que perguntar.

– Ô Sinval, e afinal de contas, a mesa voltou?

– Voltou nada. A gente viu de longe e foi perguntar. Eram só dois caras. Se coubesse no elevador eles levavam, mas pra subir cinco andares com um tampo de vidro redondo daquele tamanho, eles precisaram da gente.

– E deu certo?

– Claro. Era uma escadinha “miserave” de estreita, mas deu. O problema era que os dois caras são da vidraçaria. Eles acham que são as únicas pessoas no mundo que sabem que vidro quebra.

– Ficavam dando instruções – disse Zeca. – “Cuidado... não pode bater na parede... Bora dar a volta... não deixa escapulir...”

A madame era generosa, acabou dando aos dois o que equivaleria hoje a uns 50 reais e eles foram tomar uma. Mas isso me ficou na cabeça porque dias depois (nessa época eu já estava traduzindo para a Editora Récord, em São Januário) eu fui pegar um livro novo (oba, um Asimov!) e parei pra conversar numa das salas da revisão.

A moça me chamou e começou a me dar lições. Moça é um eufemismo, porque naquele tempo eu tinha uns 38 anos e ela já galgava a encosta dos sessenta, mas era muito delicada, muito fina, tinha unhas longas pintadas de cor-de-rosa com as quais ela percorria linha por linha, parando em certas palavras e fazendo uma marquinha embaixo, bem de leve.

– O senhor repetiu muito aqui – disse ela. – Observe. “Olhos”... “olhou”... “olhando...”  Em quatro linhas! É muito. Não concorda que fica feio?

– Sem dúvida – disse eu.

–  “Look” e “eyes” são palavras muito diferentes... Então eu tomei a liberdade de refazer a frase aqui... Tirei este, não fez falta... Troquei esse “olhou” por “percebeu”...

– Ficou bem melhor.

– Nem preciso dizer isso ao senhor, mas é o que eu penso sempre: repetição de palavras é um ponto cego na cabeça da gente. A gente faz e não vê que está fazendo.

Guardei essa para o meu caderninho. Eu estava nas fraldas descartáveis do ofício e ela já devia fazer aquilo há décadas, mas chamava um cabeludo como eu de “o senhor”; e se eu pudesse passaria tardes inteiras ali com ela, vendo a unha cor-de-rosa dela passar a borracha em meus pecadilhos de novato.

Escritor, tradutor: peça para ver a revisão dos seus textos; aprenda com elas. Sempre há o que aprender.

O que é a tradução de um texto literário? É o transporte de uma mesa de vidro que precisa chegar intacta até um quinto andar.

Tem uma equipe e ninguém está ali pra ser mais forte, nem mais expedito, nem mais habilidoso, nem mais inteligente do que ninguém. Todo mundo está ali com uma única missão: que o texto, seja ele uma fantasia romântica de Geneviève Sauvignon ou um policial de Raymond Chandler, chegue inteiro, em boas condições, ao leitor que o espera no andar lá em cima.

Tudo pode ser questionado, tudo pode ser discutido, ninguém ali é um pequeno déspota, ninguém ali é um sabotador do trabalho alheio. Todos estão a serviço do autor, do leitor e principalmente do texto. “Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era” – como já disse o poeta Drummond.










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